domingo, 30 de dezembro de 2007

Sublime, conceito em transformação


Foto Boris Kossoy.

A história da idéia de sublime é bem antiga, vem da Antiguidade clássica e pode ser reportada a Platão: tudo que tendesse à idéia suprema do Bem seria sublime. Durante muito tempo, o sublime foi considerado o perfeito, o quase-divino, acima da realidade humana e de toda contingência. O sublime nessa acepção só poderia levar à serenidade.
A Longino, retórico grego que viveu cerca de 220-273, atribui-se – sem certeza – o Tratado do Sublime, que aponta entre os oradores de seu tempo os que teriam produzido as peças oratórias mais perfeitas, exemplos do sublime: aquilo que eleva a alma, que se aproxima da perfeição, mas entusiasma. Falando muito superficialmente, pode-se dizer que esse autor já apresenta uma diferença significativa em relação à idéia mais antiga do que seria o sublime, pois ele envolve nessa experiência uma sensação prazerosa. Em seu tratado, Longino – ou alguém que ficou conhecido como “o falso Longino” – já dizia, entre outras coisas, que o sublime é aquilo que surpreende, em contraste com o racional, em que se demonstra alguma coisa passo a passo.
O tratado de Longino se referia principalmente à oratória. Mas a questão não está centrada na matéria sobre a qual versam seus comentários e sim no conceito que ele abstraía dos efeitos excepcionais conseguidos por alguns oradores. A intermediação das palavras aqui não se refere ao texto dos discursos examinados por Longino, mas ao resultado arrebatador desses discursos sobre seus ouvintes. Aí se encontra um sinal de alguma ruptura, de uma qualidade que não mais se caracteriza pela perfeição irretocável e distante: o sublime não é mais somente contemplado, mas atinge o ouvinte.
Mais próximo da noção atual é o sublime sensualista de que Edmund Burke fala, num texto de 1757 chamado A Philosophical Enquiry Into the Origin of Our Ideas of the Sublime. A noção de sublime que Burke expõe quebra a serenidade e a tendência à paralisação que o conceito da Antiguidade sugeria; fala de um prazer paradoxal e complexo, o sublime no novo espaço de uma estética da “sensibilidade subjetiva". É um prazer ligado à dor, horror delicioso que ocorre quando temos uma idéia de dor e de perigo sem estar diretamente expostos a eles. Essa experiência estética do sublime, para Burke, não está ligada à elevação, mas à intensificação. Diferente do sublime antigo, intimamente ligado à idéia do belo relacionado à calma e à serenidade, àquilo que não se altera e fica na pura contemplação platônica, o sublime de Burke está ligado a extrema tensão e agitação. Não é mais a busca entusiástica da completude do Ser.
O conceito de sublimação, que Freud elaborou durante suas pesquisas sem chegar a fechá-lo, trata de um destino dado à pulsão, ou manifestação da energia da libido, que não busca diretamente sua satisfação primária, mas se desvia para outra finalidade, que hoje pode ser até mesmo uma atividade cotidiana ou de trabalho, contanto que seja feita em harmonia com o desejo subjetivo de quem a realiza. A condição do humano seria investir sem necessariamente encontrar o objeto que o satisfaça. Nessa tentativa, tudo pode acontecer.
As influências culturais, sociológicas e dos conceitos psicanalíticos trouxeram a idéia do sublime para o corpo, seus acontecimentos e apresentações. Ainda que o verbete sublime esteja ligado no dicionário a perfeição, condição do que é superior, em literatura e psicanálise ele está hoje encarnado e difundido no dia-a-dia, misturado ao grotesco, ao sofrimento e ao riso. Dessa idéia do que seja o sublime, são exemplos bem ilustrativos os filmes de Chaplin-Carlitos e as vicissitudes de muitos personagens da literatura de ficção.

quinta-feira, 27 de dezembro de 2007

Bolinha de pinball



Estranha relação aquela com o mar. Se ao menos fosse coisa do astral, se tivesse nascido em Peixes, Aquário, Câncer... Mas que nada, era de fogo, fogo duplo: Leão com ascendente em Sagitário – embora um Leão-quase-Virgem, que lhe rendera uns vestígios de obsessividade e a fizera fã de histórias de detetive. Não era um motivo de origem – além das origens aquáticas de todos nós, é claro –, mas um traço debussiano aprendido muito cedo nos discos que o pai ouvia a toda hora. E mais: ainda que nascida no Rio, nunca havia morado perto do mar. Não conhecia senão de ouvir falar a aporrinhação dos metais oxidados, da umidade, do cheiro de maresia.
Aprendeu o mar em contatos encantados, nas praias da infância, e as recomendações dos adultos a maravilhavam: então era perigoso, e perigoso passou a ser sinônimo de bonito, inefável, de não ter muita certeza de nada e olhar com uma desconfiança arrebatadora todas as coisas desconhecidas. Com o mar aprendeu o mistério das palavras – vá alguém confiar nas palavras. Aprendeu com o mar a ver as coisas pela luz que transforma tudo, das cores ao sentido. Entrar no mar a deixou "séria de ventura e aventura", como diz Clarice, e lhe ensinou que se pode experimentar uma ausência de limites sem se diluir no nada, ficando criança para sempre.
Nunca mais deixaria de ser criança, mesmo quando a maturidade lhe ensinasse a dura lição das impossibilidades. Aprendeu a vida embalada pela marola da calmaria, espancada pelo caixote inesperado, lutando contra a corrente e furando a onda verde para sair meio torta do outro lado, mais forte e mais humilde. Mergulhou na vida para confirmar o que já previa: para a vida como para o mar somos pouco mais que uma bolinha de pinball.
A diferença é que a bolinha vai e vem sem dizer nada e, tanto quanto se sabe, sem se alterar em sua natureza de bolinha. Mas com gente é diferente, já dizia Geraldo Vandré. Gente às vezes não consegue ficar à tona e pode mesmo escolher não ficar. Deve ter acreditado que entrando no mar daquele jeito voltaria ao perigo inefável, ao desconhecido arrebatador. Deve ter ido a busca, quando não havia mais nada para buscar em terra firme. Tinha mesmo fortes motivos para preferir o mar.

sexta-feira, 21 de dezembro de 2007

A rede



Mudaram-se na véspera de Natal. A ele doía como uma perda a conquista de tanto território, chão novo refletindo tudo e paredes espelhadas. Não gostava. Sentia calafrios desde que entrara, a cabeça estourava a cada movimento. Nem do balcão do quarto, que ela chamava de varanda, ele gostava, por causa da grade fria, escura, arabescos exatos que aprisionavam a paisagem em outro lado do mundo. A cama não o acolhia, e seu desejo gritava por uma rede que tinham deixado no velho apartamento numa ruazinha em Laranjeiras.
Tinha pendurado a rede onde pudesse ver as folhagens que quase entravam pela janela, e ali balançava debaixo dos galhos como quando era criança no Ceará. Estava aposentado por causa de uma doença de nome esquisito e tinha dado muita sorte com dinheiro: dias antes de sair a aposentadoria, caiu em suas mãos um prêmio de loteria, um prêmio grande o bastante para tudo aquilo que Angélica tinha inventado, e seus pulos de alegria o assustavam. Nunca mais dormiria sossegado, nunca mais teria uma rede debaixo das árvores do sonho. Na casa nova sua rede não combinava com a decoração. As árvores ficavam distantes, a paisagem não o incluía. Tudo era novo, lustroso e cheirava a tinta.
Ela queria que ajudasse a pendurar os quadros, empurrasse uns móveis detestáveis, atendesse ao telefone que não parava de tocar. Multiplicada em braços, dava ordens aos homens da mudança e tomava providências que lhe pareciam confusas, repentinas, que não chegava a entender. Nem queria.
Fechou os olhos com força diante da janela e quando os reabriu houve um segundo de espanto num ponto qualquer entre o estômago e o esterno. Um momento solto no fio do tempo. A paisagem se moveu e estacou como se brincasse. Sentiu náuseas, os calafrios voltaram. Um inimigo oculto teria sido mais confortável, pensou, passando a mão na testa. Havia um inimigo dentro dele, não era culpa de Angélica. Sua culpa não ia mais longe que as medidas da sala. Ela não sabia.
Estirou-se na cama sem lençol. Os olhos ardiam. Se ao menos dormisse! O pensamento ia além das palavras e lhe escapava. Percorria um terreno secreto para si mesmo, muita lama pelo chão e até o desejo da rede havia fugido, para sua aflição. Estava imóvel, mas dentro dele havia uma procura que o fazia girar e se agitar sem descanso num lugar tão interior que sua vontade não alcançava. Tinha medo dessa coisa incontrolável. Estava cansado demais para responder à voz alheia, amortecida por um ruído insistente entre ele e o mundo exterior. Desistiu de ouvir o que ela dizia, desistiu de tudo e deixou-se afogar numa penumbra morna de água.
Ainda notou quando ela apareceu na porta do quarto e perguntou alguma coisa. Viu seus olhos muito abertos e um silêncio escuro foi engolindo tudo – Angélica, a janela da prisão, o teto com uns desenhos intrigantes – até que não viu nem ouviu mais nada. Não ia passar o Natal naquela casa.
Quando o Natal o alcançou, balançava leve na rede do Norte, tão macia que era como não estar em lugar nenhum.

domingo, 16 de dezembro de 2007

Tempo de utopias

"Caminho dez passos, ela se afasta dez passos.
Corro cem metros, ela se afasta cem metros.
Por mais que eu a persiga, jamais a alcanço.
Então para que serve a utopia?
Serve para isso: para fazer caminhar."
(Eduardo Galeano)

Fim de ano é tempo de bons votos e festas que dedicamos à esperança.
Mesmo sabendo que o mundo continua o mesmo, ou muda muito lentamente para nossas expectativas, continuamos a acreditar que o ano que vem será melhor.
Mas para que isso aconteça, é preciso caminhar, ou seja, mudar as condições que levam o mundo a ser essa fábrica de sofrimento para os homens. Não só para os que estão lá longe, sobre os quais ouvimos e lemos notícias aterradoras de guerras e genocídio. Por diferentes que possam ser seus costumes e suas etnias, são feitos de carne e osso, capazes de amor e ódio – iguaizinhos a nós, que até há pouco acreditávamos que o Brasil era imune a guerras e catástrofes naturais, no temperamento pacífico e cordial de nosso povo e outras balelas desse tipo.
Temos tudo para provocar as iras de uma divindade justiceira - uma das piores distribuições de renda do mundo, hábitos coloniais arraigados, preconceitos e uma mentalidade em tudo parecida com a dos coronéis donos de terra do sertão do século passado. Sorrimos com superioridade dessas mazelas, principalmente nas megalópoles, acreditando que ficaram para trás.
Então tá. Vamos combinar que consideramos nossa doméstica igual a nós, respeitamos os garis de nossa rua tanto quanto nossos parentes e cumprimentamos diariamente os porteiros de nosso edifício, agradecendo toda vez que facilitam nossa vida ou abrem o portão do estacionamento. Não vale objetar que eles são uns grossos ou que estão sempre prontos a dar um golpe e nos passar a perna: são argumentos genéricos, que jogam no mesmo saco todo tipo de gente só porque se trata de serviçais. Podemos até sentir pena de pessoas desfavorecidas, mas isso não muda em nada sua condição, apenas nos redime da culpa (mesmo inconsciente) que essa condição nos provoca. Ter pena de alguém é como ter medo de chegar perto e se incomodar com seu infortúnio.
Respeito, atenção, gentileza e solidariedade, além de atestarem uma boa educação, fazem todo mundo se sentir um pouco melhor. É bem pouco. Mas é um começo, um modo eficaz de produzir bem-estar, e pode nos proporcionar surpresas muito agradáveis a respeito de gente que até então nos passava despercebida - e se sentia humilhada com isso.

O texto a seguir, também de Galeano, pode parecer desporporcional ao que está dito acima. Mas ele fala apenas sobre outra localização geográfica da injustiça. Nem mais nem menos cruel que a injustiça praticada entre nós; a grande diferença é o calibre das armas usadas e a oficialização da violência. Não estamos muito longe disso.


Pai libanês segura filho morto nos ataques de Israel

"Os terroristas se parecem entre si: os terroristas de Estado, respeitáveis homens de governo, e os terroristas privados, que são loucos soltos ou loucos organizados desde os tempos da Guerra Fria contra o 'totalitarismo comunista'. E todos agem em nome de Deus, seja Deus, Alá ou Jeová. Até quando continuaremos a ignorar que todos os terrorismos desprezam a vida humana e que todos se alimentam mutuamente. Não é evidente que nesta guerra entre Israel e Hezbolá são civis, libaneses, palestinos, israelenses, os que choram os mortos? Não é evidente que as guerras do Afeganistão e do Iraque e as invasões de Gaza e do Líbano são incubadoras do ódio, que fabricam fanáticos em série?
Somos a única espécie animal especializada no extermínio mútuo. Destinamos US$ 2,5 bilhões, a cada dia, para os gastos militares. A miséria e a guerra são filhas do mesmo pai: como alguns deuses cruéis, come os vivos e os mortos. Até quanto continuaremos a aceitar que este mundo enamorado da morte é nosso único mundo possível?"

Eduardo Galeano

quarta-feira, 5 de dezembro de 2007

O mesmo e o outro


Foto Jayme Serva.

Não há como fugir: os dias são iguais. São diferentes, é claro. Mas são sempre iguais em que se dividem – manhãs tardes noites madrugadas horas batendo martelo nos segundos, como um leilão do que você queria, mas só vai levar se perceber a música do martelo.
As cores mudam, tanto as do céu como as do coração, e os tons são inacreditáveis, de uma pessoa para outra e até para a mesma. A diferença na mesma pessoa é de mais claro-escuro, ton-sur-ton, e o fundo é meio repetitivo mesmo, fazer o quê? Cada um se faz repetitivamente recaindo no refazer do que mais procura evitar. E quando o sol aparece, por causa desse estado de mesmice aparente, pode dar a sensação de que tudo está igual.
O de fora pode estar igual. (Não no tempo que faz, que até o sol tem matizes e variações que só falta prestar atenção para ver: o sol não mostra sempre a mesma face, e às vezes está furioso e queima com raiva, mas às vezes acaricia a pele que nem homem enamorado.) Mas o de fora pode estar igual no que exigem da gente.
A coisa acontece assim: a gente se repete e recai e refaz o que já andou fazendo a vida toda. Quem vive a nosso lado também recai e repete. Quando alguém refaz seu refazer e ressoa em nossa alma, é a rotina. A rotina não é o que eu faço, mas o que os outros querem que eu faça, e eu faço, repetindo então – não o que eu quero e repito por minha própria conta, porque é meu e é dessa cor que eu sou, mas o que os outros querem que eu refaça por eles. Nisso consiste o poder de uma pessoa sobre a outra: ser capaz de ressoar sua própria repetição no outro. E quanto maior o poder, mais outros refazem a repetição do poderoso.
O que obviamente não é justo nem salutar para ninguém – nem os mesmos nem os outros.
Quem apenas ressoa o que o outro repete e refaz sem conseguir deixar de refazer é um candidato a passa humana. Quem não se libera da gaiola da repetição do outro, é pássaro morto dentro da gaiola sem ninguém para chorar por ele. Quem não olha em volta, procurando sintonizar o rádio para ouvir a melhor música que o outro é capaz de tocar, nem merece muito que se chore por ele.

quinta-feira, 29 de novembro de 2007

A história na gaveta



Estava no fundo do baú (metafórico – na verdade era uma prateleira de armário dessas em que a gente só mexe na faxina do Natal). Não sei em que ano foi escrito, mas deve ter sido há muitos, porque estava datilografado por Berta, uma amiga que passou por minha vida antes de 1990 – quando o primeiro XP entrou em cena lá em casa – como um cometa desses que aparecem de quando em quando e somem sem deixar vestígios. Berta era um barato de pessoa.

O original datilografado já era uma segunda via, porque a primeira foi manuscrita. Foi num dia de mudança que o encontrei, quase por acaso, e não me lembrava bem dele. Na confusão das caixas empilhadas e da arrumação na casa nova, só o reencontrei três dias depois, mas ler mesmo só em uma semana ou pouco mais. As primeiras emendas, a lápis, devem ter sido feitas logo que Berta me entregou as folhas, agora um pouco amareladas.

À medida que ia lendo, percebi por que me esquecera dele. Contava uma história perigosamente parecida com a de um parente distante, o que deve ter sido uma peça do inconsciente, e fiquei com medo que alguém lesse e o identificasse. Por isso ele dormiu tanto tempo fora de casa, quer dizer, fora das gavetas a que teria direito. Mas ali estava, um texto de 125 laudas batidas à máquina por uma profissional competente e caprichosa. Olhei-o durante algum tempo sem a menor idéia do que faria com ele. Publicar, nem pensar. O parente ainda existe, ainda poderia ser identificado como o anti-herói da história. O mais recomendável seria modificar alguns dados, lugares, tempo decorrido e acima de tudo características pessoais que, mesmo já alteradas para a história original, ainda tinham muita afinidade com as características reais do muso.

“Que maluca”, pensei com meus botões. “Como é que eu faço uma coisa dessas?” Deixei as folhas na primeira gaveta para voltar ao texto assim que tivesse tempo e fui tratar da vida.

Dois dias depois recebo um telefonema e não havia jeito de identificar a voz. Mas duas ou três frases foram suficientes: era ele, meu anti-herói. Uma pessoa que nem me passava mais pela cabeça voltar a ver. Primeiro porque estava morando longe do Rio – sabem onde fica Goiás Velho? Pois é. Segundo porque é um parente também longe – terceiro grau é quase não-parente. Sem saber o que dizer, soltei um que surpresa inexpressivo e esperei que me informasse o motivo do telefonema. Pois disse que estava de mudança para o Rio, tinha comprado um apartamento no Flamengo, ora em reforma, e queria saber se podia se instalar aqui em casa durante uma semana ou dez dias com a mulher e o cachorro. “Ouvi dizer que você tem um quarto vago.” Mesmo pensando depressa, não achei uma boa desculpa para evitar a fatalidade.

Moral da história: vieram, viram e gostaram tanto que ficaram hospedados no quarto que me serve de ateliê de pintura durante três meses. Além da mulher e do cachorro, que latia metade da noite em horários variados, vieram também uma cama desarmada e um horrendo jogo de sofá e poltronas que me atravancaram o corredor de entrada. Depois de um mês infernal, fui horrivelmente tentada pelo demônio da escrita a publicar o livro com a história dele sem trocar uma vírgula e fazer um lançamento em que fossem homenageados como queridos primos vindos de fora. Resisti bravamente e pensei que mais eficiente seria ajudar a concluir a reforma do apartamento do Flamengo. Que aliás ficou uma graça, com o jogo de sofá e poltronas logo na entrada e um pé de antúrios de plástico na mesinha de centro.

Os primos ficaram tão gratos que agora todo fim de semana vão almoçar lá em casa. O texto que Berta datilografou continua na gaveta, sabe Deus até quando. E o pior é que a história é ótima.

terça-feira, 27 de novembro de 2007

O armário e sua alma

Quieto ali, o armário de espelho enviesado, sisudo na sombra ao fundo do quarto, e o céu insondável a se contemplar no cristal como um longínquo olhar perdido.O guarda-roupa reflete mais do que sua vida cheia, elegantemente contida nos ângulos bem-acabados. Não seria mesmo de admirar se lhe ouvissem um pigarro de repente, uma tossezinha ligeira de cavalheiro distinto. Excelentíssimo senhor guarda-casacas, apesar de tudo carregando o céu na alma.

Pensaria, se um armário pensasse, nos brocados, pelúcias, casimiras inglesas e sedas italianas, sobretudos, peles, longos e demilongs que o teriam habitado. Dois séculos passados, outras terras, outras gentes. As festas, as danças, tudo tão longe e diverso. Uma farra de minuetos e valsas vienenses.

E as cenas, ante o espelho audaz e frio? Amores idos e bem vividos, impressos em luxúria, as faces desarmadas a todo flagrante, os corpos em movimento, contornos dotados de vida daquele tempo – não seria diferente de agora. Então o espelho audaz de faces desarmadas seria, além de tudo, um mordomo solene e discretíssimo, inteiriçado, enfarpelado, daqueles que tudo vê, tudo sabe e permanece mudo como só os armários sabem ser. Também um guarda-culpas.

quarta-feira, 7 de novembro de 2007

Ouro Preto - ladeira acima, ladeira abaixo



Quem não conhece a cidade senão de ouvir falar, não faz idéia. É muita coisa ao mesmo tempo. Pisar o chão dos setecentos, andar entre as paredes profundas e os tetos incríveis de lá, entrar num restaurante vertiginoso que ao mesmo tempo consegue ter os cantinhos e as mesas mais acolhedoras que alguém consegue imaginar, é uma experiência que devia fazer parte do acervo de vida de todo mundo.
Tudo bem que tanta igreja cansa, mas não precisa ver todas de uma vez ou nem todas. Algumas são imperdíveis, como Efigênia, Pilar, São Francisco. Mas tem o horizonte, o céu, as montanhas mais inacreditáveis, o cheiro de forno a lenha. E por cima de tudo, o clima, que mescla cultura refinada com juventude, agito com ecos tão antigos, cenários de romance com a dureza das pedras, brechós de objetos irresistíveis e artesanato com a mais descarada mercadagem pra turista ver. E haja grupos, conjuntos, tribos, eventos, festas, trampos, comidas e bebidas (e quase digo marijuana, mas me calo em respeito a Tiradentes e sua turma careta).
A cidade anda meio cai-não-cai, de modo que é bom se apressar. Além disso, tem favela crescendo. Uma pena. Um motivo de indignação, não pelos habitantes desvalidos, que não têm outra saída, mas por causa dos reponsáveis pelo bem-estar de seus eleitores, largados ao deus-dará, já que os governos não dão mesmo. E a pobreza se agrava. Não aquela pobreza de bem com a vida, que também tem muito por lá, mas a pobreza aguda, que torna as pessoas tristes e duras, e olha a vida com um olhar de ladeira abaixo.

domingo, 14 de outubro de 2007

Água que te quero água


Asfalto após a chuva. Autor desconhecido.

O tempo, corpo abstrato dividido por nós em anos, meses, dias, minutos e segundos, parece um ser sem existência, um nada – e no entanto é uma espécie de casa do Universo. O mar, metáfora aceitável do tempo, existe: é muita água, agita, embrabece, espuma e fura diques – que o diga a Holanda. Gota a gota, caminha de águas acima até os furos mais altos, e um dia pode carregar um país num bojo azul de gota. A água, que forma a maior parte do planeta em que vivemos, é tão essencial à vida quanto o tempo e toda a natureza que nos cerca.
Informam os entendidos que, se o calor dos humanos delírios de ambição continuar degelando calotas polares e geleiras, muitos litorais podem vir a ser engolidos, o que inclui nossas amadas cidades do Rio de Janeiro, Angra, Paraty, Arraial e Búzios, sem falar nas praias do Nordeste (não façam isso com Recife, Natal, Fortaleza, o Farol da Barra, Itapoã!), e o Sul (Floripa não, por favor!), os surfistas, a ilha do Mel, a serra do Mar com Morretes e Antonina, minha cidade de sonho, e tudo mais. Sem falar do resto do mundo: Nápoles, Veneza e as ilhas gregas, o Caribe, o Havaí... E não só as praias, que o litoral é mais do que esses paraísos do sol. Uma vez que o tempo é uma entidade abstrata, nós, entidades concretíssimas e operantes, preparamos uma armadilha para o futuro.
Na outra ponta da insensatez, jogamos água fora – a água de beber para humanos, animais e vegetais; a água essencial para manter a saúde, lavar nossas mazelas, conservar a vida na Terra. Já fomos avisados sobre a escassez que aumenta, mas isso teve um efeito desproporcionalmente pequeno sobre o desperdício. Incorrigíveis, continuamos achando que a água não tem fim, e poluímos, corrompemos, secamos nascentes e deixamos de aproveitar as chances de legar um mundo melhor para os que vêm por aí.
Enquanto isso, o tempo que parece passar por nós distrai o olhar e acalenta a vida, que vai se afogar ou morrer de sede. O tempo chega, pelo mar ou pela terra estéril, mas chega e nos afeta sempre. O que fazemos a cada momento, dia ou ano de nossa vida tem sempre conseqüências, boas ou más. Achamos que o tempo foi domesticado porque o prendemos no calendário e nos relógios, e que por isso temos algum poder para consertar depois as leviandades de agora. Mas nosso domínio sobre o tempo é ilusório; verdadeiro é nosso descaso.

quinta-feira, 27 de setembro de 2007

Solta o replay


Foto de Sebastião Salgado.

A gente aqui na pátria amada acaba encarando tudo que se repete, por pior que seja, com uma naturalidade assustadora. O crime, a estupidez e a violência – meu Deus do céu, que chatice falar nisso tudo. Miséria, falta de escolas, vida de biscateiro, mulher que apanha e fica calada, crianças que passam o dia entregues a si mesmas e à maldade alheia, porque o pai não está nem aí, a mãe diarista tem que ganhar o dia ou então ninguém come – tudo é encarado como destino, fatalidade. Ou então o que fazer é tanto, as carências tantas, que não sobra tempo e muito menos energia para reagir. E reagir como, onde? Apelar pra quem?
É difícil entender como pessoas que crescem e se tornam adultas vendo o mundo desse jeito conseguem se tornar gente de bem. No entanto muitos se tornam cidadãos úteis, que trabalham, lutam, correm atrás. No caminho desses, por pior que fosse, deve ter havido, em algum momento, alguém capaz de carinho, algum incentivo que mostrasse uma vida menos desprezível.
No item crianças, as coisas têm corrido muito mal também em famílias nem tão necessitadas. Nesses casos, não é dinheiro que falta. Faltam paciência e sensibilidade para educar, o que a escola sozinha, por melhor que seja, não dá conta de fazer. Porque o que torna alguém humano e capaz de ser e fazer outro feliz é aconchego, atenção, colo na hora certa e correção quando é preciso. Alguém que diga o que fazer nas horas incertas. Alguém que esteja sempre presente e com quem o pequeno possa contar para o que der e vier. Só se aprende confiança confiando, assim como só se aprende a amar amando. Quantas vezes faltam carinho, amor à cria. Criança atrapalha, precisa de tempo de convivência para experimentar coisas e se sentir protegida e segura, e nem sempre uma babá limpinha e bem paga resolve isso.
A educação continua na base do processo. É demorado, vai levar vinte anos pra dar resultado. Mas sem ela podemos desistir de melhorar. Nem daqui a cinquenta ou cem anos. Então esse primeiro passo tem que ser dado, mas não só. A questão educacional é uma aposta no futuro, uma ponte que teria que começar a ser construída agora, já que tudo que vinha sendo feito está dando errado, a começar pelas fatias vergonhosamente baixas do orçamento alocadas a esse setor.
A parcela da sociedade que percebe o que está acontecendo está aterrada e/ou perplexa. Mas existem os que, mesmo informados e esclarecidos, optam por tirar vantagem da geléia geral e agravam a situação, porque não lhes interessa que a justiça funcione melhor ou que o combate ao crime seja eficaz, porque vão perder vantagens inconfessáveis. Não interessa a essa gente implementar um bom sistema de educação para o povo, porque é mais vantajoso deixá-lo no lugar do cego no tiroteio, sem saber pensar, vendendo voto. Para esses a cadeia devia ser mais rigorosa, a pena mais longa. Surpreendentemente, não esquentam as poltronas em suas prisões especiais e comovem os juízes de um modo enternecedor. Até porque alguns juízes pertencem ao mesmo clube, o da mão molhada.
Os direitos humanos têm sido apontados por muitos como um texto risível, complacente com os criminosos e um empecilho para que se faça justiça. Talvez valha a pena rever esse texto com mais cuidado, refletir um pouco mais sobre o que está tão errado, se é o que a declaração diz ou o modo como tem sido interpretada e aplicada no Brasil. O texto é uma garantia para que não se saia por aí linchando e dilapidando os suspeitos e acusados de práticas criminosas. Seria também uma garantia para o cidadão acima de qualquer suspeita, caso fosse seguido de modo adequado e honesto. Infelizmente a declaração não só não é respeitada nem pela polícia, como tem sido usada por advogados inescrupulosos para livrar a cara de réus endinheirados com ou sem colarinho.
A cadeia e as casas para menores delinquentes têm sido ótimas escolas de crime. Também vai ser demorado construir presídios decentes com espaços destinados aos presos, para que possam aprender e exercer uma atividade útil. Alguém ouviu falar que construções desse tipo estejam em andamento? Enquanto elas não se concretizam, por que não usar a criatividade e ampliar o que já existe, ativar prédios públicos abandonados, inventar meios de atender a essa massa de gente sem ter que misturar quem rouba manteiga para os filhos com assassinos monstruosos? Custa dinheiro? E os impostos, pra que é mesmo que têm servido? A carga tributária só aumenta – e para isso trabalham governantes e legisladores – sem que em nada diminua a carência de serviços essenciais.
É repetitivo, eu sei. Mas nossos podres sociais também o são. Cansa ouvir falar desse assunto sem graça. Pior ainda é permanecer no atoleiro.
As coisas estão todas ligadas: crime, grossura, mão grande e ignorância são elos de uma corrente que nem sempre leva o meliante à cadeia, mas sempre leva à morte de muita gente – gente que muitas vezes nem tinha nada a ver com as tristes histórias da marginalidade, seja a das favelas ou a das classes A, B ou C.

sábado, 22 de setembro de 2007

Pode vir quente



É primavera enfim ao sul do Equador.
No Rio mandou se anunciar por um calorzinho bem carioca, e entra sorridente, clara, céu azul e brisa mansa. Chega das férias carregando flores, tintas e pincéis para mudar o colorido da cidade, que ultimamente a gente vê num degradê de cinza a negro.
Nós cariocas te saudamos, estação mais desejada no mundo inteiro. Se por acaso sentir um cheiro de pólvora, não se abale, não é nada. São incidentes banais do dia-a-dia – um túnel fechado aqui, invasões, um assalto com ou sem mortos ali, seqüetros de durações variadas, jovens larápios de uma eficiência sem limites, ases da motocicleta disputando uma olimpíada em que o prêmio não é o das medalhas, mas o que as vítimas carregavam na bolsa ou no carro. Às vezes uma equipe inteira de ladrões intrépidos que param o trânsito, fazem a féria até com certa graça, contanto que ninguém se engrace com eles, e deixam os pascaços zuretões e ranzinzas, como diria o Aldir Blanc.
Esperamos que tenha sido avisada e traga o carro blindado em vez da biga tradicional. Ah, e que não fique dando mole com sua cornucópia de madrepérola se derramando por aí. Um colete à prova de balas de fuzil também lhe seria útil, a ela e a nós, que tanto a invocamos e esperamos por suas flores coloridas. Não vá algum bandido atuado, iconoclasta e mau dar fim à estação mais querida e deixar o mundo para sempre mergulhado no inverno infernal da violência e da força bruta. Poetas, seresteiros, namorados, correi e ajudai a primavera a salvar nossas esperanças. Amém.

domingo, 2 de setembro de 2007

Identidade se conquista



Quando saí do país pela primeira vez, estava muito preocupada com o trabalho que havia deixado inacabado no Brasil. Era o final dos anos 80 e rolava uma olimpíada de conhecimento em Birmingham, Inglaterra. A empolgação do pessoal durante as competições e os eventos acabaria por me envolver na torcida brasileira.
Também aprendi muito com eles. Só mesmo simplicidade, disponibilidade e trabalho constante podem levar a um final que se possa considerar feliz sem ajuda de um QI (quem indica). Falo daquilo que para o próprio sujeito constitui um êxito, uma vitória sobre si mesmo, o resultado de uma luta cuja intensidade e duração só ele conhece bem.
Em qualquer tempo ou lugar, é preciso partir de uma escolha, com os pés em terra firme e um plano na cabeça. O dinheiro e o sucesso são resultados incertos, e é preciso que seja assim para que não se perca o estímulo inicial.
Em matéria de identidade, o que acontece às pessoas acontece também aos países. Usando seus próprios recursos e valores, os chineses, primitivos e submissos durante séculos, têm enfrentado a vida a seu modo, e nestes tempos de globalização têm crescido diante do mundo como uma nação de cultura multissecular e características inconfundíveis. Os astecas realizaram uma obra intransferível; os maias, capazes de tanta crueldade, deixaram as marcas de uma civilização admirável. Os povos nativos remanescentes das Américas, que não usaram os metais como os saxões e são economicamente menos importantes, nem por isso abrem mão de suas tradições. Misturados aos feitos culturais e civilizatórios, nem todos os atos foram louváveis, nem todas as intenções foram retas a nossos olhos. Mas é preciso entender que, na prática, mentalidades e convicções variam, evoluem ou se deterioram pelos séculos afora. É a identidade de cada nação e sua cultura que sobrevivem e importam à história como dados positivos.
Entre os próprios europeus, a Inglaterra se conservou imperial sem deixar de pertencer à modernidade; a França construiu um bom socialismo democrático e a Alemanha ressurgiu das cinzas e reconquistou a identidade, desperta dos pesadelos que a oprimiram. Portugal e Espanha poeticamente preservaram certo primitivismo, embora de características diferentes, o primeiro mais ingênuo que a segunda; e a Itália às vezes parece um Brasil mais antigo, sacana e bem-sucedido.
Durante meu tempo na Europa, me senti integrada a alguns aspectos desse mundo velho. Os códigos de lá me faziam sentido e seus valores eram familiares. Mas a minha geração, que nasceu e cresceu no Rio, com sua arquitetura, religiões, hábitos e ideais ainda alimentados por ilusões do tempo da colônia, experimentava às vezes um desejo meio enrustido e arraigado de chegar lá. Com o passar do tempo, alguns traços tipicamente cariocas se acentuaram, e o Rio pouco a pouco foi ganhando jeito de cidade adulta – incluindo aí a violência e os maus hábitos ambientais. Houve também o enfraquecimento de uma classe média que rapidamente perdeu parte de seu espaço. A cultura de cunho muito mais popular, genuinamente carioca, foi ditando modas, músicas, costumes.
A vida me convenceu de que pessoas, cidades ou nações têm que apurar sua identidade, se conhecer e se gostar para conseguirem realizar alguma coisa que mereça um lugar ao sol. No Brasil, parece que ainda não aprendemos a cultivar nossos valores – que são tantos, neste país enorme; conquistar direitos e cumprir os deveres da cidadania, que em muitos casos mal conhecemos, ainda é privilégio de poucos. As causas disso são muitas e complicadas, mas a que parece mais atuante é o comportamento da própria classe política e dos governantes que desconsideram as necessidades do povo e quase sempre se elegem para tirar vantagens que, quanto maiores para eles, mais acentuam as carências da sociedade. Às vezes me pergunto se esses políticos não são, eles mesmos, uma das mais tristes conseqüência da má qualidade do ensino e da cultura anti-ética que há séculos vigora entre nós. Isso não os absolve, mesmo que explique o fenômeno, porque caráter pode existir mesmo sem uma educação adequada.
Acima de tudo, nada justifica esse sentimento oceânico de auto-suficiência, que nos leva a acreditar no poder da trapaça, tão cultivado por aqui. Não é nisso que consiste o verdadeiro "jeitinho brasileiro". Somos criativos, inteligentes, temos jogo de cintura. Temos uma cultura rica, produtiva e diversificada, mais do que o suficiente para garantir uma imagem digna de respeito perante o mundo. Sem ufanismo nem devaneios. Quae sera tamen.

sexta-feira, 24 de agosto de 2007

Redescobertas



Encontrei um livrinho chamado Ilhas no tempo, de Ana Maria Machado, que reúne palestras e conferências da autora. Fala de livros, leitura e leitores, além de três personalidades, “modelos” que ela admira (e creio que nós todos): Ruth Rocha, Aluísio Carvão, Monteiro Lobato. Fala ainda de Robinson Crusoé, gancho para mostrar que é falsa a premissa de que os jovens não se interessam pela leitura.
Ilhas no tempo, o título, soa muito adequado a um fenômeno que parece ter tudo a ver com nossas vidas. Porque há um oceano de agitação, urgências, providências inadiáveis, telefones que chamam e têm que ser chamados, gente que solicita, precisa, pede ou manda. Intervenções de toda ordem que interrompem e alteram o ritmo e o tipo de dinâmica de cada um, que desviam a atenção que pretendíamos dedicar a outras coisas ou pessoas. Com que freqüência dizemos e ouvimos dizer que o tempo, o dia-a-dia de cada um, parece mais curto do que nunca, que não sobra nada, que não se consegue dar conta de tudo que é preciso fazer. O oceano do dia-a-dia nos engole, e afogados perdemos o pé e o fôlego e não chegamos a lugar nenhum senão aonde os outros – o sistema, a mídia, o mercado e até parentes ou amigos sinceros, mas às vezes equivocados – querem que cheguemos. E muitas vezes a lavagem cerebral é tão perfeita e eficiente que nos iludimos, achando que a vontade que nos mobiliza é nossa, quando na verdade estamos correndo atrás daquilo que esses outros nos convenceram a querer como sendo o melhor para nós. Modelos não faltam. E já que estamos no mar, seguimos a corrente sem dar em praia nenhuma.
O tempo no entanto, abstraídos os conceitos da ciência e da cronologia oficial, tem uma face amigável que é preciso descobrir e que não é senão a própria face de cada um de nós. Não se trata de fugir do mundo em que se vive, sem o qual não somos ninguém, no qual e para o qual temos muito a fazer. Mas de, “paralelamente, defender a própria bolha individual e íntima que deve cercar cada pessoa”, diz Ana Maria. E logo adiante: “Tentar recuperar o que Milan Kundera chamou de ‘o prazer da lentidão’.”
Não é fácil. Mas acredito que um pequeno truque pode ajudar: é convencer-se de que nosso tempo depende de nós, do uso que queremos fazer dele. E estabelecer como primeira meta a criação das “ilhas no tempo”. Para criar essas ilhas, é preciso parar de “correr atrás” e “conseguir se recolher um pouco, desenvolver a percepção embotada, desbastar as camadas de barulho e atordoamento, apalpar o mundo, sentir sua espessura, manter a conexão fundamental com o que é natural.”
Pode parecer muitas vezes que não estamos fazendo o que importa, o que é preciso fazer, o mais urgente. Ledo engano. Estamos fazendo exatamente o que importa acima de tudo: estamos sendo. E para quê? Para melhor entender e interagir com os outros seres. Para viver à altura do mundo e da vida que nos foi dada. Ou, usando um termo muito ouvido em nosso tempo, equilibrar o custo-benefício de nossa existência.
É uma questão de escolha: ser o replicante daquele(s) que se idealiza(m) e se alienar para sempre de si mesmo, seguindo a correnteza dos modelos fugazes que nos propõem aos montes a cada dia, ou buscar a si mesmo nessas ilhas criadas no próprio tempo – porque eu quero, acima de tudo, fazer desabrochar minha visão de mundo, sem a qual não tenho outra contribuição a dar a este mesmo mundo a não ser engrossar as legiões de clones náufragos que “correm atrás” todos os dias e todas as horas da vida.
Ora, direis, e os livros? Os livros, como outras atividades criativas e enriquecedoras, vêm na esteira dessa atitude fundamental. Fazem parte do processo de aperfeiçoamento e de crescimento de cada um. Mas cabe a nós decidir o que fazer do tempo, que não pára.

domingo, 19 de agosto de 2007

Visuais – os imaginários e os virtuais




Estou relendo Adolfo Bioy Casares, A invenção de Morel, em tradução de Samuel Titan Jr., editado pela CosacNaify em 2006.

Nestes tempos de delírios visuais, imagens vertiginosas que supostamente dispensariam as palavras e se autoexplicariam sem maiores delongas (uia!), este livro – um cult da literatura internacional, de trama considerada perfeita por Jorge Luís Borges, amigo de Casares, seu parceiro e admirador – é um exemplo de que o uso das palavras é uma fonte de recursos que as imagens por si sós nunca vão suprir. Ainda por cima fala justamente de imagens, tão poderosas que foram capazes de subverter a vida do protagonista, um fugitivo político da justiça que se esconde em uma ilha deserta.

Os enigmas de A invenção aguçam a atenção do leitor e o impelem a perseguir o fio da narrativa, que em alguns trechos parece perdido entre as folhas secas do chão da ilha. O caráter teleológico que alguns emprestam ao texto de Casares pode ser discutido. Dificilmente uma literatura tão perfeita e enxuta poderia visar outra finalidade que não ela própria. Mas para o leitor atento fica bem claro que estão em jogo fatores imanentes ao ser humano, como a percepção nem sempre confiável e a imaginação que se alia ao desejo para lhe pregar peças – às vezes de mau gosto.

Em jogo também está a questão da sobrevida ou da própria eternidade. Mas não se trata aqui de uma eternidade metafísica, e sim da projeção de uma idéia que tem fascinado o homem através dos tempos, idéia que teria impulsionado o personagem Morel em sua invenção maravilhosa e terrível. A fábula explora um ângulo fenomenológico da experiência da imortalidade, que quase sempre tem sido abordada com visada mística ou filosófica. Os personagens em cena se opõem à realidade que estariam manifestando pelo simples fatos de não serem senão espectros de si mesmos. É fascinante, porque é como um filme interferindo no roteiro de outro filme. Mais do que simplesmente descrever os fenômenos (o que Casares faz com perfeição e apelo para o leitor), o livro capta o que se poderia chamar a insustentável leveza da ilusão, parafraseando Kundera, e todo o sofrimento humano que ela implica.

O prólogo de Borges e o posfácio de Otto Maria Carpeaux dão o toque especial a esse primeiro volume da coleção Prosa do Observatório, coordenada pelo escritor e teórico de literatura Davi Arrigucci Jr.

quinta-feira, 16 de agosto de 2007

O bem, o mal e a coluna do meio




Quando terminava de ler uma crônica de Arthur Dapieve falando de Paradise now e Munique – dois bons filmes que tratam do conflito cronicamente agudo do Oriente Médio – parei no último parágrafo: “Em Spielberg, mais explicitamente que em Abu-Assad, vítimas e algozes convivem nos mesmos seres humanos. Dada a tendência a separar quem vemos na tela (e fora dela) entre mocinhos e bandidos, cheios de certezas, as dúvidas de ‘Munique’ são perturbadoras.”
O núcleo desse comentário de Dapieve equivale ao olho de um furacão capaz de levar o mundo pelos ares. As pessoas estão muito condicionadas a separar bem e mal, vítima e algoz com a facilidade com que se distingue o preto do branco (falo das cores mesmo, embora o tema admita alguma confusão de sentido – que aliás teria tudo a ver). É aí que reside a semente de toda polêmica, seja moral, religiosa, ideológica ou doméstica. Sem refletir muito, é fácil acreditar-se que só existe uma atitude correta diante dos outros e dos acontecimentos: separar certo e errado para depois se situar do lado de cá ou de lá, a favor – ou contra – de um(ns) ou de outro(s).
Já ouvi gente culta e informada dizer taxativamente que isso ou aquilo é bom ou mau e que fulano é ou não é do bem, antes mesmo de avaliar o que está por trás das aparências e circunstâncias. Bem e mal seriam campos simétricos e nítidos o bastante pra ninguém se enganar a respeito?
Para algumas pessoas, tentar entender o que os outros fazem, antes de obedecer ao primeiro impulso de rotular, é sinal de dubiedade de caráter. Admira-se facilmente quem fala de cabeça erguida, firme e sem dúvidas sobre seus juízos. Concordo que pode ser retoricamente bonito um discurso muito bem encadeado ou uma afirmação peremptória, que impressione os ouvintes. Mas será sempre verdadeiro?
A sensação de bem-estar e alívio que leva as pessoas a apoiar demagogos ou tiranos em potencial, sob a influência de seus discursos, é muito parecida com a reação de quem se deixa levar pelas aparências de um julgamento “definitivo” baseado em valores preestabelecidos. No fundo, ninguém quer correr o risco de pactuar com o mal, e na dúvida prefere entregar a decisão final a um terceiro que aparentemente tenha uma lógica irrefutável – embora já se tenha comprovado de modo exaustivo que nem só de lógica vive o homem e que a lógica não passa de um instrumento do pensar.
É fácil demais aceitar à primeira vista uma opinião que parece vir ao encontro da nossa. Mais fácil ainda cometer um erro e muitas vezes praticar ou ajudar a praticar uma tremenda injustiça por conta disso.
Há um lado muito sombrio nessa atitude – infelizmente muito comum. Ninguém se submete impunemente à opinião alheia. Quando se age desse modo, o que na verdade está se entregando a outro é uma importante parcela de nossa liberdade. Não se pode abdicar da liberdade como se ela fosse apenas uma questão de opção. Não é. A liberdade é um direito, e é preciso estar atento, porque um direito traz implícito o dever de exercê-lo de modo responsável e conseqüente. Simplificar o que é complexo e defender opiniões com base numa visão primária de certo e errado, de bem e mal, equivale para a sociedade à ação do cupim na madeira.
A questão do Oriente, onde como já disse alguém “só o passado é previsível”, pode ser uma boa dica para se ensaiar uma reflexão sem nenhum compromisso formal. Paradise now e Munique, cada qual a seu modo, são frutos de pontos de vista não antagônicos, embora contraditórios sob alguns aspectos. Representam bom subsídio para quem quer entender um pouco mais o conflito do Oriente Médio, sem qualquer pretensão maior além de exercitar o entendimento e a sensibilidade e afiar a capacidade crítica. Sem as quais periga tornar-se o que se costumava chamar um teleguiado – o equivalente a alguém que não pensa com a própria cabeça.

segunda-feira, 6 de agosto de 2007

De incunábulos e labirintos



Para os não eruditos ou iniciados, vale o recurso a pai Aurélio. Alguém me cutuca e pergunta de que terreiro. Vade retro, alma crédula. Falo do dicionarista mais famoso do Brasil, o Buarque, avô de Chico.
Incunábulo quer dizer origem, começo, livro impresso nos primeiros tempos da imprensa ou impresso produzido nos primórdios de qualquer sistema de gravar, compor ou imprimir. Vem do latino incunabulu, que significa berço. A palavra me pareceu tão engraçada da primeira vez que a li, que fui catar seu significado e nunca mais deixei de me ligar quando o assunto aparece.
Dito isso, vamos ao incunábulo que me inspira – o Hypnerotomachia Poliphili, de 1499. Ouvi meu pai fazer uma referência a esse livro nem me lembro quando, e fui à Wikipédia saber mais do que ele podia informar. Essa outra salvadora dos ignorantes e aflitos diz que é um dos livros mais enigmáticos da época renascentista. O título traduzido seria mais ou menos A luta amorosa de Poliphilo em um sonho, mas o autor é desconhecido, embora haja quem o atribua a Francesco Colonna. O jovem Poliphilo procura em sonho por sua amada Polia, uma ninfa. Isso o leva a passar por misteriosas florestas, cidades e labirintos onde encontra deuses, ninfas e outros seres mitológicos.
Lendo isso, imediatamente fiz a ligação de Poliphilo com a Ofélia do Labirinto do fauno, que acabo de rever. O filme foi co-produzido por México, Espanha e EUA, com roteiro e direção de Guillermo del Toro. Três Oscars e três indicações, uma indicação ao Globo de Ouro de melhor filme estrangeiro, faturou o Independent Spirit Awards de melhor fotografia, além de indicado para melhor filme; teve três premiações no Bafta, além de indicado para várias categorias; ficou com sete prêmios no Goya: incluindo diretor e ator (Sergi López, o sanguinário capitán Vidal) e a atriz (Maribel Verdú, aquela maravilhosa Mercedes).
É curioso como os lugares fantásticos atraem autores e leitores de todos os tempos. Mas Labirinto vai muito além da fantasia e combina com mão de mestre a mais crua violência da guerra Civil da Espanha com o mundo de magia em que Ofélia se envolve enquanto vive a dupla angústia da guerra que a rodeia e da perda da mãe.
A fantasia não é gratuita. O mundo imaginário da menina alegoriza a resposta do roteiro às questões mais cruéis que o mundo dito real nos impõe. Se você é daqueles que não suportam filmes de fantasia, não deixe de ver. Além do visual perfeito e oportuno, longe de ser uma fuga, o mundo de Ofélia tem tudo a ver com o que acontece fora do labirinto.

sábado, 4 de agosto de 2007

As rosas e o cimento



Toda vez que passo na esquina arcangélica das ruas são Miguel e são Rafael meu coração ensaia um pequeno vôo e meus pés querem tomar a direção da casa de varanda e jardim, hoje protegida por um muro áspero de cimento cinza. Tenho que fazer um esforço para desviar daquele portão e seguir meu caminho. Agora moram lá outras pessoas, a casa está meio decadente e perdeu o charme, seria doloroso vê-la de novo por dentro sem as flores, o cheiro bom daquele tempo e a luz que o riso de tia Anita parecia irradiar. Nem se justificaria entrar na casa dos outros, na certa iam desconfiar de assalto e eu ia parar na décima nona depê.
Tia Anita morava naquela casa com o marido, meu amado tio Marcelo, e o filho mais novo, por quem fui absolutamente tresloucada até os quinze anos, e que acabou casando com a vizinha, depois de se desiludir com uma menina que foi sua grande paixão. Mas isso é outra história. Tia Anita e tio Marcelo eram considerados pessoas abastadas. Não eram, hoje sei. Mas naquele tempo a medida para avaliar os bens de alguém não passava pelo que esse alguém efetivamente possuísse, mas por seu modo de viver, e a casa deles era uma delícia de conforto e bom gosto.
Tio Marcelo foi a ovelha negra de uma família tradicional de Botafogo, e os nomes de seus parentes estão gravados nas placas de muitas esquinas do bairro. Foi um boêmio incorrigível, os pais viviam sobressaltados por causa dele. Tantas aprontou que o puseram para fora de casa e ele teve que recomeçar a vida como funcionário dos correios, onde conheceu tia Anita, na flor dos dezoito, com os enormes olhos castanhos e os dentes perfeitos da família de mamãe – que eu, snif snif, não herdei –, ele, velho lobo mau de trinta e poucos anos, boêmio e pé-rapado. Fogo e pólvora não se encontram impunemente. Casaram em seis meses, literalmente babando um pelo outro. A mãe dele abençoou a nora, anjo salvador, e lhe declarou eterno amor de mãe. Herança, nem pensar: estava comprovado que o dinheiro estragava aquele estróina, e agora ele teria todas as razões do mundo para desunhar firme, ser homem útil à sociedade, comer o pão com suor – coisa que ele, um gourmet refinado, positivamente não faria. Mas enfim, se queria continuar com seus lagostins e torradinhas com caviar, que fizesse por onde.
Sem herança, eles eram a fome e a vontade de comer. Tio Marcelo, educado na Suíça, francês fluente, conhecedor de etiqueta e arte; tia Anita, educada aqui mesmo em colégio público de bom ensino, também traçava lá seu francês, lia muito e fazia versos românticos. Mas mãe é sempre mãe. A sogra lhes deu a mobília da sala, ébano e cristal bisotado, e o resto das duas famílias providenciou o que faltava, e não era pouco.
Tio Marcelo plantou rosas no jardim, quando mudaram para a casa da esquina. A mesa era posta com castiçal, talheres de alpaca e porcelana. Claro, ao longo dos anos ele pulou a cerca algumas vezes, mas o casamento não se desfez: tia Anita segurou todas as barras. Pareciam feitos um para o outro, e nem nos piores momentos se falou em separação. Tia Anita se foi dois meses depois dele.
Foi pela mão de tio Marcelo que muito cedo conheci os museus de arte e o teatro. Era louco por Balzac, me emprestava seus livros de poesia francesa e me apresentou aos licores italianos e ao vinho branco. Me falava de Veneza, Paris, Londres e de uma cidadezinha suíça que fui conhecer muitos anos depois, e eu o escutava fascinada, porque ele era um ator e tanto. Incentivava minhas aulas de pintura como se eu fosse uma vangoga em potencial.
Quando passo por aquela esquina celestial, parece que estou ouvindo o riso de tia Anita. Evito olhar o horrendo muro de cimento cinza, que me dá uma tristeza dessas que choram no meio do esterno, e na memória me aparecem as rosas com cheiro e tudo. Nem quero conferir. Devem ter cimentado o jardim também.

sábado, 28 de julho de 2007

Fajutos de souza

Às vezes difíceis de ser compreendidos, mal conhecidos pela maioria, autores muito badalados acabam sendo mal interpretados, e em torno de seus nomes nascem mitos, falsas imagens, anedotas e ditos apócrifos.
O fenômeno é da natureza desse que aflige nossas caixas de e-mail e até blogs das mais diversas procedências, quando lançam na rede textos fake assinados por nomes muito conhecidos, de preferência os de Clarice, Veríssimo, Jabor, Drummond, Quintana ou qualquer escritor muito popular.
A gente sempre se pergunta o porquê desse fenômeno. Talvez algumas pessoas precisem tanto se fazer notar que lhes sirva até mesmo um reflexo do brilho alheio. Parece francamente patológico, mas há gosto pra tudo nesta vida.
Pode ser que haja até boas intenções no comportamento de quem divulga mensagens desse tipo sem verificar sua autenticidade. A intenção pode sere divulgar o que supostamente significa riqueza cultural, sabedoria, pensamentos edificantes etc. Mas são boas intenções que vão para o inferno por inconseqüentes. O fato de associar nomes famosos e ilustres a um texto não lhe dá qualquer valor além do que ele tem, e que pode ser nenhum.
Por trás de toda ação sem causa aparente, existe um tipo de motivação, sabe-se lá qual das muitas possíveis, e essa história de assinar textos fajutos com nomes famosos parece pura e simples tolice. Um de seus piores efeitos é aumentar o clima de insegurança que predomina no lusco-fusco de mentiras, meias-verdades, golpes baixos e gestos suspeitos em que vivemos. Quem faz isso, seja lá por que for, contribui para banalizar ainda mais o engano e a falsidade ideológica, tristes figuras quase sempre encaradas com mais complacência do que seria de desejar.
Mas se a gente se propuser a examinar o caso mais a fundo, vai dar na raiz de onde brota o plágio, irmão mais velho do texto fajuto. Ambos são filhos da leviandade e do desprezo pelo outro.

Leituras



Imagino que leitura quer dizer alguma coisa que vai desde pegar um texto e juntar as letras, as palavras, perceber um sentido nesse texto, até fazer uma leitura dinâmica, transversa, de frente pra trás e vice-versa, e perceber um ou mais sentidos nesse texto, concordar ou não com ele ou simplesmente ficar sabendo o que alguém ou alguma instituição quis dizer com aquilo.
Existe também uma leitura de puro lazer, como algumas pessoas encaram a coisa – “adoro ler!” – sem maiores conseqüências. Nesse caso fica muito vago definir o que significa “ler”. Pode ir desde mera fofoca até folhetos de propaganda para alimentar um consumismo desenfreado; recreio para o pensamento, curiosidade, vontade de aprender ou conhecer alguma coisa ainda muito distante; viajar por lugares desconhecidos, auto-ajudar-se, aprender novas receitas ou busca de romantismo e emoções que o dia-a-dia em bruto não oferece muito.
Leitura pode ser distração, e geralmente é, mas pode também abrir caminho para uma quase cumplicidade com quem escreveu. Isso acontece quando o leitor se identifica com o que lê, se sente atingido por um modo de expressão, desperta para novas visões de si próprio ou das pessoas e do mundo que o cercam.
É nesse ponto, eu acho, que se abre um caminho que pode levar muito longe, a um jeito novo de conceituar a leitura, que a torna imprescindível, parte integrante do cotidiano. Pode formar um leitor que interage com o que lê, que se integra ao texto, pondo nele sua contribuição pessoal, suas vivências, todo o conjunto de suas experiências de prazer e dor, e conjuga essas experiências às que o autor expressa. Um leitor que se mistura subjetivamente ao texto e tira desse processo uma satisfação que pode ser chamada de estética.

terça-feira, 24 de julho de 2007

Reflexões à margem da tese


Foto Robert Doisneau.

Meditação primeira

Mim não pode ser sujeito de nada, portanto é inculpável e não se justifica que eu – eu, sim, sujeita responsável por tudo que digo e faço – fique ruminando os fatos e peculiaridades afetas ao mim. Mas se mim é inculpável, será por ser pronome oblíquo ou menor de idade? Mas por que seria menor de idade, só por ser mim? Haverá alguma afinidade secreta entre a obliqüidade e a cronologia? Ou será que em vez da idade, o que pesa aí é alguma imputabilidade legal, tipo índio, criança ou doente mental? Seria mim um psicopata acoplado à minha pessoa-eu? Mim me dá sempre a sensação de que está de esguelha, me olhando meio à sorrelfa, dissimulado ou talvez envergonhado de não ser eu. Mim pode ser um invejoso por natureza. Bastava no entanto que mim assumisse seu lugar sem maiores complicações, pois ainda que coadjuvante é um personagem necessário ao bom andamento do destino e dos acontecimentos. Talvez seu embaraço venha de ser sempre tutelado por uma preposição, concordo que é um mico, mas fazer o quê? Sem ela, a preposição, mim estaria desclassificado, ameaçado de desaparecer para sempre na primeira ventania mais forte. A preposição é assim como se fosse sua roupa. Mais uma razão para se conformar com ela e se ajustar a sua condição: já pensou mim, que vive grudado no meu pé, ter que existir completamente pelado?



Meditação segunda

Fora é um conceito relativo, um advérbio de lugar que todo mundo sabe o que quer dizer e uma palavra cujo significado exato nos escapa por completo.
Posso por exemplo considerar o lado de lá de minha janela como o lado de fora, mas, estando eu do lado de lá das grades, não estaria do lado de fora, e sim dentro da área do condomínio onde se encontra meu apartamento. Por outro lado, o que fica além dessa área – a rua, a pracinha em frente e o jardim do prédio fronteiriço além do resto do mundo – constituiria então o espaço a ser considerado o de fora. Saindo do jardim do condomínio em direção à rua, esta continuaria a ser chamada de “lá fora”. Assim como o próprio jardim também pode ser considerado o lado de fora do prédio, estando eu nele ou não. Será então o conceito de fora “aquilo que fica a céu aberto”? Mas há terraços a céu aberto que pertencem a uma residência, ficando então o morador à vontade nesse terraço por se achar dentro da sua casa.
Levando adiante o assunto, digamos que estamos dentro de uma cidade chamada Rio de Janeiro e que além dos limites de seu município fica o fora do Rio de Janeiro. Também é verdade que estamos dentro de um país chamado Brasil - embora fora de muitos outros lugares - e que fora do Brasil é o estrangeiro. Mas um estrangeiro está dentro do seu país de nascimento e domicílio, donde se pode inferir que o estrangeiro também está, assim como eu, dentro e fora ao mesmo tempo.
Quanto às galáxias que povoam o Universo, não há certezas radicais quanto a indivíduos dentro ou fora de coisa nenhuma, mas para nós eles estarão sempre fora – exceto se nossas naves intergalácticas conseguirem chegar lá, caso em que teremos caído dentro da galáxia também, só nos restando na qualidade de fora o espaço infinito que não sabemos se é mesmo infinito. Se esse tal espaço for infinito e chegarmos a visitá-lo, amiguinhos, não nos restará mais lugar para ficar de fora, e a partir daí teremos que reformular nossos dicionários, gramáticas, vocabulário, organizações e instituições governamentais ou particulares, pontos de vista e sistemas de física e filosofia, apagar a idéia do fora, seus termos escritos, falados e derivados, além de toda e qualquer de suas representações físicas, mentais ou espirituais. Seremos a partir de então criaturas definitiva e irremediavelmente dentro seja lá do que for, podendo-se inferir daí a difícil situação dos claustrofóbicos e mais ainda a dos foragidos, aí incluídos depósitos em bancos de paraísos fiscais.

quinta-feira, 19 de julho de 2007

A irresponsabilidade é explosiva

Sobre a tragédia de Congonhas no dia 17 passado



Nem sei bem até que ponto se pode falar desse assunto neste momento, em que o fogo ainda nem apagou direito lá no aeroporto. Mas é preciso falar. Não dá mais pra ficar quieto vendo aviões explodirem, enquanto interesses de alguns resultam em tragédias como essa de São Paulo. As vítimas são indenizadas, a lei se cumpre. E as vidas, quem traz de volta? E a dor, que dinheiro paga?
Até quando vamos acreditar em todas as mentiras, em todos os disfarces, em todas as palavras que encobrem a verdade? Inventamos rituais para neutralizar a revolta e a dor das perdas irreparáveis. Os responsáveis vêm a público e a mídia os apresenta de cara séria, tratando a tragédia como uma fatalidade, cheios de argumentos regulamentares, contornando as perguntas mais difíceis com "ainda não temos esses dados", "não podemos responder a isso". Cumprido o ritual de praxe, o povo deve se dar por satisfeito, e as repostas não vêm enquanto não se encontrarem fórmulas capazes de encobrir as verdades menos confessáveis.
E tudo vai continua na mesma. Assim como a impunidade e a leviandade de quem libera uma pista insegura depois de uma obra que não resolvia o problema. Mas a companhia tem que faturar, e há sempre um juiz venal pra atender aos interesses de quem o compra.

terça-feira, 17 de julho de 2007

Canalha, eu?!


Charge de Coletti.

Nossos heróis morreram de overdose, como disse Cazuza em outro contexto. Como tudo nesta vida tem sempre um lado proveitoso, cabe refletir sobre o assunto, aliás nem tão misterioso nem tão contraditório.
Pode ser que dessa vez a gente aprenda a lição: ninguém é só do bem. Todo mundo tem seu viés canalha. Verdade que alguns exageram. Mas uma coisa mais uma vez ficou clara: não é o hábito que faz o monge, mas pode ser que a ocasião faça o ladrão em muitos casos insuspeitados. E vamos parar com essa mania de explicar as coisas pela latitude. Pode-se estar à direita do meridiano e ser gente boa, assim como podem alguns mais a oeste merecer estima e consideração. E até, por que não, confiança.
As conclusões que pessoalmente tirei das sucessivas crises nas quais andamos chafurdando foram basicamente duas: é indispensável conhecer o passado de um candidato a qualquer posto eletivo, em vez de acreditar nele de graça. E caso não consiga acesso a informações razoavelmente confiáveis sobre o fulano, não votar nele. Ainda que seja preciso votar nulo, o que também é um modo democrático de expressão.
O que me parece antidemocrático e muito ruim, neste momento em que a gente sente tremer a terra pátria, é desacreditar de todos os princípios ou pior ainda, em nome de generalizações capengas desacreditar de tudo e achar que todo mundo é igual. Toda crise, por pior que seja, tem começo, meio e fim. Coisas piores já passaram – duraram até vinte anos, e quem não foi exterminado pôde ver sociedade e história execrando o que durante aquele tempo interminável foi a dura realidade da lei do mais forte.
Ao contrário: agora é que a gente precisa de princípios, de um conceito claro e nítido do que seja ética, que é ciência da ação, onde se analisam como e por que agir de um modo e não de outro. Agora é a lei do mais rico.
O que norteia a ética é a figura do outro, aquele que precisa ser levado em consideração quando se decide fazer alguma coisa. É esse o conceito que as autoridades não se lembram que é preciso incutir nos alunos em nossas escolas, nos currículos das academias que formam profissionais liberais, nos cursos de administração de empresa e marketing ou do que se chama vagamente formadores de opinião. Dá pra entender, porque ninguém dá o que não tem.
Toda carreira tem sua ética própria e específica para viver em sociedade, interagir com clientes, colegas, alunos ou superiores. Mas o princípio é um só, vale pra todo mundo, formado ou não, em qualquer classe social – contanto que seja gente: ser capaz de se pôr no lugar do outro e pensar duas, três ou vinte vezes antes de fazer o que vai atropelar os direitos ou as necessidades desse outro. Seja ele quem for, e ainda que não tenha um rosto conhecido pra nós, nem seja simpático ou estimado. E mesmo que a dinheirama que vai servir a esses direitos e necessidades esteja aí, à vista e ao alcance da mão.
Talvez seja esse o jeito mais eficaz de controlar o viés canalha que todos nós – mas todos mesmo – possuímos.

segunda-feira, 9 de julho de 2007

Paz, via de mão dupla


Foto Elliot Erwitt.

A violência não brota do nada. E não tem só uma ou duas causas nem caras. Não pode ser reduzida a fórmulas, como se tende a fazer nas horas de muita dor e muita revolta.
Entrar no mérito dessa questão seria produzir um ensaio. Mas o sentimento da impotência toma conta da gente quando se vêem figuras de algum destaque nos diversos setores de atividade e conhecimento aferradas a argumentos irredutíveis, perdendo de vista a questão concreta que nos desafia, como se suas augustas pessoas estivessem acima de qualquer interesse coletivo. As discussões sobre o assunto terminam muitas vezes num charco estéril de narcisismo.
As discordâncias conceituais têm que existir e devem ser analisadas para que delas surja alguma saída para a sociedade. Mas se fornecerem munição à prepotência e à vaidade dos envolvidos, perdem sua razão legítima e servem apenas para engrossar o arsenal das farpas, muito útil a quem pretende aproveitar a crise para se projetar ou – pior ainda – para tirar vantagem dela.
Será que isso não é também um sintoma de violência? Nem só os ditos bandidos são gente “do mal”. Todos nós temos essa aptidão, e não ponho nisso qualquer traço de religiosidade. Pode-se nunca ter cometido um crime na vida e ser insensível e até cruel no cotidiano. Todo dia se vê gente assim no trânsito, em brigas de trabalho, em família ou entre vizinhos. As represálias e a vingança parecem ter-se tornado no imaginário coletivo recursos legítimos contra quem, mesmo sem muita intenção, criar obstáculos a uma vantagem ou a um objetivo. A primeira atitude em qualquer circunstância é o antagonismo, a defesa ou o ataque, mesmo sem causa concreta.
Violência tem graus, mas não escalas que a tornem mensurável. É contagiosa, e não existe medicamento eficaz contra ela, a não ser que consiga uma mudança íntima, pessoal, pela qual alguém se disponha a ceder alguma coisa para se entender melhor com o outro.
O pior de tudo, no caso de cidadãos pacíficos e honestos, que de fato gostariam de amenizar o clima carregado em que estamos vivendo, é a omissão, a ilusão de se sentirem invulneráveis enquanto tudo estiver correndo bem com eles e suas famílias. Essa ilusão é filha daquele maniqueísmo tão banal e nosso conhecido que leva a dividir o mundo em pessoas boas e más como se já estivesse tudo resolvido. Nada está resolvido, nem vai estar nunca. Sempre há o que melhorar no mundo, mas isso só vai acontecer quando estivermos inteiramente convencidos de que paz não é sinônimo de estagnação e indiferença. E de que a mudança tem que começar dentro de cada um.

quarta-feira, 4 de julho de 2007

Carpe internetem



Ao contrário do que se repete por aí, a leitura na Internet não é atividade superficial, fugaz. Ou melhor, é tão fugaz quanto qualquer leitura de texto pode ser, dependendo do leitor. Ler um livro é um deslocamento no tempo e no espaço, uma caminhada ao lado de alguém que te conta uma história, fala de seus estudos, declama poemas. É desejável também que seja uma troca de idéias, um exercício de crítica. Às vezes a origem de um sentimento de empatia para com o autor, seus personagens ou suas idéias. Tudo isso se aplica também à leitura virtual.
A Internet é voraz. Rima, mas não tem nada a ver com fugaz. O lobo mau da rede se chama mercado e se apresenta em piscantes popups, vertiginosas imagens de mau gosto que invadem o monitor sem serem chamadas e solertes transbordam das caixas de correio se a gente se distrair.
Quanto ao mais, a Internet é a invenção mais espantosa, arrebatadora e brilhante de que já se ouviu falar em matéria de comunicação democrática – aqui no Brasil mais ou menos democrática, porque a maioria ainda não consegue acesso regular, que aos poucos vai ampliando seu alcance.
Noves fora a certeza de que todo mundo quer aparecer bem na foto, que às vezes aquela beldade arrebatadora é agora uma simpática anciã mas ninguém sabe; que aquele galã de olhar definitivo sofre de um mau hálito insuportável e não gosta de tomar banho ou que o pai amoroso não paga a pensão dos meninos, resta a certeza de que na outra ponta da telinha existe um ser humano em busca de trocas, amizade, consolo ou oportunidade de mostrar seu trabalho, que pode ser muito bom e de outro modo ninguém além da família e amigos mais chegados ia conhecer. Não é pouca coisa.
Tudo que se pede a um internauta é mais ou menos o mesmo que se pede aos viventes deste mundo de tantos deuses: que não seja incauto, não se deixe levar por informações ainda não comprovadas devidamente. Em suma, que não seja otário.
Munido desse comprovante de vacina, deite e role, carpe a rede. Se você tiver objetivos bem definidos, melhor. Há muito que aproveitar – leitura das edições mais atualizadas dos jornais sem sujar os dedos e mais: literatura, artes, ciência e tecnologia, informações úteis sobre praticamente todos os setores e assuntos, viagens, cultura em geral. São dados reais ao alcance dos olhos, da inteligência e da sensibilidade de quem souber aproveitá-los.
No caso de contatos pessoais, observadas as normas do bom senso, só se tem a ganhar. Todo mundo quer mostrar o que tem de melhor. As trocas podem ser muito agradáveis; está comprovada a possibilidade de fazer amigos e existem casos de amores que deram certo e começaram por contatos virtuais.
Claro que há o risco do excesso que, além da LER – lesão por esforço repetitivo – e vista cansada, pode reduzir a vida ao que se vê no monitor, e em vez de aproximar as pessoas separá-las por uma banda larga. Mas essa tendência a virtualizar a vida não é defeito da Internet. O defeito é de quem a põe a serviço de suas limitações, de sua preguiça ou neurose, quando ela deve ser justamente o contrário – um instrumento para ampliar a visão do mundo e alternativamente enriquecer a vida real de contatos humanos. Primeiro mandamento para quem quer se dar bem usando a Internet: a dita vida real tem prioridade absoluta.

sexta-feira, 29 de junho de 2007

Coisas do Rio


Centro Cultural Banco do Brasil, cúpula do hall.

Um certo atrevimento.
Uma ave desafiadora na proa de um barco.
Um poodle miniatura brigando com seu pé.
Passear com o cachorro na rua e deixar lembranças dele em todas as calçadas.
O poder dos pivetes de qualquer idade.
O descaramento de sair sem casaco num frio de dez graus.
Ignorar o guarda-chuva em qualquer tempo.
Cotias (em extinção) que não fogem das pessoas.
Saídas criativas de quem menos se espera.
Virar padrinho de um garoto de rua, ficar inteiramente eufórico por isso e depois perder o afilhado de vista.
Improvisar; programar só pra não cumprir.
Perder a hora marcada.
Conviver com o caos e a promiscuidade das ruas, dos bares, das boates com uma ponta de compassividade e uma leveza que recria pessoas e ambientes.
Apaixonar-se por um cachorro de rua e levar ao veterinário, tosar, dar banho e comprar ração.
Apaixonar-se de repente por alguém que nunca viu.
Fazer amizades instantâneas como quem mora no paraíso.
– Tudo é coisa de carioca.



Bom é ser magrinho




Nada como ser magrinho. Aproveito e entro num regiminho pra tirar as gorduras extras também do corpo. Não sou xiita em matéria de comida. Mas obedeço com certo rigor a alguns princípios sem os quais parece bobagem fazer dieta. O primeiro deles é abandonar as frituras.
· Carboidrato sem prazer, nem fucking. Ou é coisa muito boa, e nesse caso a gente se concede uma mordidinha pra sentir o gosto aos domingos e feriados, ou é assim-assim e não merece exceção.
· Verduras. Não tenho medo de ficar cor de Hulk, aproveito que gosto e como mesmo.
· Frutas, sucos e saladas mil. Se disserem (sempre alguém diz) que suco de laranja engorda, que abacate não deixa emagrecer, que banana engorda e faz crescer, não deixo de consumir nenhum deles. Manero, mas não abandono. Não sou partidária de abstenções absolutas, a não ser em casos como alcoolismo ou drogas mortíferas (embora não consiga abandonar de todo o cigarro).
· Perder peso devagar é o melhor meio de não recuperar o que se perdeu, a menos que se termine um regime pra fazer outro de engorda logo a seguir. Melhor também pra evitar um estresse desnecessário, já chega o que a vida impõe.
· Compensar a comida a menos com mais atividades que dêem prazer. A vida não merece que se abra mão de tanta coisa boa como o amor, o convívio com as pessoas a quem se quer bem, uma atividade criativa que não precisa visar o lucro ou a fama, um bom filme, peça ou livro. O trabalho pode ser uma das grandes alegrias da vida, quando se gosta do que faz.
E vamos viver a vida.

terça-feira, 26 de junho de 2007

Digressões alternativas



Quem não reflete por uma lógica que não seja a da razão; quem não vê nada além do próprio ressentimento; os sem indulgência, que não perdoam e são incapazes de sentir com o outro; os que têm sempre razão; os indiferentes; quem vira a cara pra não ver; quem pode e não ajuda, não suaviza, não dá a mínima – não sendo vilão de novela, ou é de uma burrice sem remédio ou não tem noção de ridículo.


Um dia que poderia ser igual aos outros pode virar uma aventura improvisada, quando se resolve ficar na praia, esquecer o relógio, criar o puro acaso que pode levar a encontrar alguém inesquecível; pode-se também fugir para o cinema, matar o trabalho, comprar móveis novos ou dormir até as quatro da tarde e depois ir dançar como se nada tivesse acontecido. Qualquer desses casos é um ganho para a biografia. Principalmente se resultar em demissão do emprego.


Há quem esteja programado para o desempenho de horas exatas, prestação de contas mesmo não solicitada, e o meticuloso cumprimento de toda e qualquer tarefa a seu cargo, ainda que a mãe morra ou o filho seja atropelado. Nesses casos mais severos, uma emoção liberada costuma ter o efeito de dois copos de caipivodka tomados de uma tragada. Razão pela qual certas pessoas preferem engolir a emoção com o café da manhã, sem atentar para o fato de que é impossível digeri-la, porque não se assimila ao bolo alimentar e uma vez engolida vira angústia, cresce dentro da barriga e atravanca o peito até a altura da garganta. Não atentam também para o fato de que, assim que o sono bagunça a programação do dia, ela pode voltar à tona como matéria-prima de pesadelo.
A boa notícia é que tem cura. Basta fazer amizade com a emoção e perder o medo dela. Só é preciso um bom treinamento.


Chorar sem se perder no desespero é como ser um regato secreto fluindo manso entre as pedras.





Umbigo: quase tudo que sei sobre ele



“Umbo, onis [...] provém do indo-europeu ombh, de onde também procede o termo grego omphalós, com o qual se formaram todos os compostos de uso corrente em linguagem médica, relativos a umbigo, como onfalite, onfalocele, onfalorragia, onfalotomia, onfalotripsia etc. De uma variante de ombh no indo-europeu, nobh, derivam o alemão nabil e o inglês navel, indicativos de umbigo.”
O texto é de um site médico. Mas o tema interessa a quase todo mundo, mesmo que seja só no terreno da linguagem e da etimologia.
Explicar a origem do termo pode ser interessante e útil, acima de tudo porque acena com detalhes reveladores e muito mais antigos do que a correta visão científica do apendicezinho com que todos nascemos e cuja cicatriz deixa um buraco menos ou mais estético bem no meio do ventre.
O termo já deu muito pano pra mangas, sobretudo depois que Sigmund Freud, em sua Interpretação dos sonhos, descreveu o que ele chamou de “o umbigo do sonho” – o momento do não-sentido, quando a história ou a imagem sonhada perde o pé da verossimilhança e abre espaço ao desconhecido, estranho e espantoso ambiente que nem o dito Freud conseguiu explicar: o inconsciente. Papai Sig já prestou um serviço inestimável ao mundo e à ciência com a descoberta de que a ele, o inconsciente, pode ser creditada uma legião de fenômenos e acontecimentos que de outra forma teriam que ser atribuídos (e ainda o são, apesar de tudo) a encostos, atuações, magia e outras fantasias que vêm ocupando corações e mentes e enchendo os bolsos de tantos semelhantes nossos pelos séculos afora.
Esse é o sentido mais rico da palavra, porque deixa entrever, ou entreperceber, alguma coisa de que ainda não se ouvira falar de modo tão direto e que, se não serve como sumidouro de problemas ou panacéia para todos os males do espírito – e até do corpo –, ao menos sinaliza que o essencial é muitas vezes (ou será sempre?) invisível para os olhos, como já lembrava o principezinho de Exuperry. Tudo bem, a intenção de Exuperry era menos objetiva. Mas a citação fits, porque o Pequeno Príncipe é um livro basicamente escrito com a imaginação e o coração. Um doce pra quem responder de onde procedem essas duas instâncias, mensageiras notórias do desejo humano.
Já me disseram que escrever sob a égide do umbigo talvez não leve a bons textos, porque o termo alude a tudo que diz respeito ao narcisismo e um texto composto sob essa inspiração sempre se arrisca a ser vazio de interesse para eventuais leitores. Respondi que respeitava o ponto de vista, mas que esse umbigo vai bem além do meu próprio. Todo mundo é dotado de algum narcisismo, necessário ao bom desenvolvimento, que só prejudica se assumir proporções patológicas.
Além disso, escolhi o nome do blog e do livro pensando no sentido freudiano da expressão. A idéia era essa, sem qualquer pretensão que não fosse isso mesmo: se Sig bispou um furo no sonho, por que não aproveitar a deixa e tentar achar o furo que levasse ao não-sentido, a parte mais importante de todo texto? Isso não significa um texto incompreensível, mas um texto que admite várias direções. Se o caminho estava desbravado, por que não entrar por ele?
Nenhum texto de ficção ou poesia tem um só sentido – tem sempre vários ou muitos. Por isso mesmo, porque não é uma “túnica inconsútil”, todo texto tem furos, emendas, costuras. O palimpsesto, imagem ideal de um escrito desses gêneros, deixa vazios entre suas camadas. Pensando nisso, sobretudo nos contos do Umbigo do Sonho, tentei tornar mais claros esses vazios, chamar a atenção para esses buracos. Se consegui fazer o que pretendia é outra questão, e ainda que não tenha conseguido, a idéia continuaria de pé.
O umbigo, esse buraco à flor da barriga, tem também seu lado engraçado. Leiam só o que encontrei:
“O pesquisador australiano Karl Kruszelnicki solucionou um problema realmente intrigante. A origem dos fiapos de tecido que se acumulam no umbigo. Para tal pesquisa ele estudou o umbigo de mais de 4.800 pessoas.
Os resultados do estudo:
· 2/3 das pessoas têm fiapos no umbigo;
· pessoas mais velhas tem mais fiapos no umbigo;
· maior incidência em homens do que em mulheres;
· existe uma relação entre a cor dos fiapos e a cor da pele; pessoas de pele clara têm fiapos claros;
· o tipo de pele não afeta a incidência de fiapos;
· a presença de fiapos está muito ligada à quantidade de pêlos na pessoa: muitos ou poucos pêlos diminuem a quantidade de fiapos;
· não existe relação com o porte físico;
· o azul é a cor predominante dos fiapos (assim como as roupas).
A pesquisa rendeu um prêmio IgNobel, que é conferido aos estudos mais estranhos e esquisitos (que não podem ou não devem ser reproduzidos).”
Como todos os temas do mundo, o umbigo nos lança seus sinais. Que os veja quem tiver olhos de ver.