sábado, 27 de fevereiro de 2010

Ser ou não ser, eis o mosaico



Foto Robert Mapplethorpe.
 
Quem pode dizer que está inocente do que acontece a sua volta? Não me atrevo. Nem mesmo posso ter certeza do grau de participação que me cabe em cada acontecimento. Mas que cada um joga seu dadinho nessa grande roleta que é a vida, isso joga sim. Nem me venham dizer que fui a única culpada de tudo que aconteceu a mim ou aos mais próximos, mas é mais que provável que, mesmo sem ter consciência disso, eu tenha atrapalhado a vida de alguém ou dado um empurrãozinho em quem já estava com o pé do lado de fora da janela.

É estranho olhar a vida por esse prisma. É como olhar o mundo através desses cristais facetados, em que as imagens se repetem e multiplicam em ângulos diferentes, cores alteradas, e deixam quem olha fascinado com a diversidade de formas, querendo dar conta de todas elas. É como ver de perto as imagens de Vic Muniz, composições de milhares de imagens mínimas que se perdem na visão de conjunto de cada quadro.

Mas, assim como cada um de meus semelhantes, eu sou um mosaico. Minhas escolhas envolvem fatores e condições que não estavam previstas ou não poderiam ser bem avaliadas antes de se tornarem uma contingência ao vivo.

Quantas vezes quis alguma coisa que deu em outra, errada ou não. Quantas outras vezes acertei em cheio sem querer muito, tateando um pouco no escuro, indecisa quanto ao lado a seguir. Amei alguém que poderia ter sido tudo, e encontrei outro que efetivamente foi tudo. Detestei pessoas que hoje seriam indiferentes e não tiveram qualquer peso em minha vida. Amei gente que não merecia, sofri por causas que não eram minhas, falei mal de pessoas que não eram más, prestei homenagem a quem não valia a pena.

Mas como o que se faz da vida não pode ser o que a vida faz da gente, insisto em ser sujeito de minhas decisões e seguir os rumos que prefiro. Tento amar muito, não sei se sou capaz de querer tanto bem quanto imagino. Tento me realizar no trabalho, mas ainda não encontrei os instrumentos certos – e pior, talvez nas cavernas onde ainda não consegui jogar luz, não queira encontrar. É preciso lidar com as próprias resistências e a idealização, ninguém vive sem elas. Então, se eu disser que sou cem por cento alguma coisa, estarei na certa mentindo. E se quiser aparecer com cara de anjo, vou motivar as pessoas a procurar meus cascos de coisa ruim. É da sabedoria popular: ninguém acredita em auto-elogio. O povo sabe das coisas.

sábado, 20 de fevereiro de 2010

A cidade é a terceira casa


Começa por uma casa, primeiro espaço, interface com o mundo. O primeiro móvel de que se tem memória, os pratos com aquelas figuras engraçadas, a cortina que fazia um barulhinho quando corria. Lá estavam os retratos dos parentes que a gente não conheceu, os primeiros livros, as histórias que a vó contou. Primeiras imagens, comidas, rostos e as paisagem da janela.
Depois se vai mais longe: a pracinha, os brinquedos e as calçadas, carros, árvores e postes, prédios de nossa rua e de outras ruas, muros, flores de um jardim. Logo se chega à escola, pátios, tombos, salas e colegas; os primeiros amigos, recreios e correrias, a merenda, a cantina e a viagem de volta com aquela mochila velha de guerra. A parada no caminho, a brincadeira na rua, chegadas e saídas. As idas ao médico, ao dentista, ao cinema, e logo o shopping, o carro do pai, as casas de amigos.
Repetimos nossos caminhos – a rua que gostamos de olhar, aquele prédio onde mora uma amiga, um garoto que nos olha diferente, o vizinho, o conhecido do pai ou da mãe. A pé, de bicicleta, na condução, as pequenas mudanças na paisagem, uma árvore cortada, uma trepadeira que se encheu de flores, uma obra na rua, o lugar onde outro dia um cachorro foi atropelado, a calçada onde uma velhinha caiu e ralou os joelhos. Da casa ao bairro e a outros bairros, caminhos aos poucos ampliados; parques e brinquedos desconhecidos, e visitas tios, primos, festas e compras.
O primeiro namorado, a cidade transfigurada, os lanches inesquecíveis, os cinemas de mãos dadas, o primeiro beijo, e descobrimos novos lugares, o restaurante do outro lado da cidade, os passeios longe de olhos indiscretos.
Da casa da infância passa-se à segunda, que é o bairro, e chegamos à terceira, a cidade, que decoramos, percorremos a cada dia, vamos reconhecendo como nossa, cada vez mais longe, e da qual saímos rumo ao mundo, quem sabe, outros países, pessoas que falam diferente, caras estranhas que aprendemos a reconhecer e até a amar.
É bom cuidar da casa, do bairro. É bom pertencer a um lugar. É bom amar a cidade onde crescemos e aprendemos a interagir com o mundo, com os outros. Compete a nós cuidar desse lugar que nos acolhe na volta de cada viagem, ainda que tenhamos passado anos longe. Sempre uma alegria voltar às origens. Não é propaganda eleitoral, não. Só estou nostálgica de um Rio que vai pouco a pouco se perdendo. Tenho medo que ele deixe de existir.

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

Nosso passado no Caribe





Como disse Ítalo Calvino em abençoadas palavras, as cidades se parecem muito com as pessoas. Umas são briguentas, irritadiças e perigosas. Algumas comem em excesso, algumas são rancorosas e outras existem que de tão lindas atraem muita gente, o que complica suas vidas e lhes tira o sossego. De risonhas paisagens, no entanto, parecem estar sempre de bom humor, dispostas a viver a vida até as últimas conseqüências. Acredito que o Rio de Janeiro esteja entre estas, sempre assolado por gente de todos os tipos e latitudes. Muitas dessas gentes não têm onde morar, não conseguem ganhar dinheiro e acabam engrossando as legiões inadimplentes dos moradores de favelas e bairros esquecidos de Deus e dos políticos depois que passam as eleições.
Diferente desse estatuto migratório e social, Havana é também uma cidade vital, alegre por natureza, embora não tão explicitamente quanto essa urbe sem superego que é o Rio. Superegos à parte, havaneses e cariocas têm em comum um passado colonialista quase fatal, a simpatia, o misticismo de raízes misturadas, o calor humano, a sensualidade e o jeitinho que quase tudo consegue, permite e encobre. Não é pouca coisa. Não depende de normas ou medidas governamentais.
Mas há um estágio desses dois povos que se encontra fora do tempo oficial, e que aqui no Rio tem hoje um sabor de coisa antiga que a gente vê em fotos cor de sépia e que as gerações chegadas depois dos anos 70 não testemunharam. Em Havana, ao contrário, essa fase perdura há décadas sem previsão de mudanças a médio prazo. O fato a seguir, narrado por um turista norte-americano, mostra que é forte o bastante para marcar uma semelhança fraterna, ainda que assimétrica, entre as histórias privadas de nossas cidades.
O turista em questão conta que seu despertador parou de funcionar quando estava em Cuba. Pensou em comprar outro no dia seguinte. Perguntou à dona da casa em que se hospedara onde encontrar uma relojoaria pelas imediações, mas a mulher abanou a cabeça sorrindo. “Não seja bobo. Pra que comprar outro? Leve o despertador a um relojoeiro aqui perto, ele conserta e pronto.” Mesmo sem fazer muita fé, o turista fez o que ela dizia. Entrou numa das lojas do ramo nas imediações e alguém lhe indicou uma bancada de madeira bem gasta, iluminada por uma lâmpada poderosa e coberta de ferramentas e instrumentos do ofício, diante da qual um profissional trabalhava, os olhos protegidos da luz por uma pala preta. O turista, um engenheiro americano, identificou quase todos os instrumentos espalhados sobre a mesa. O homem pegou o relógio de sua mão e o examinou curioso. “Nunca tinha visto um desse tipo”, comentou com grande interesse. Depois o depositou na superfície a sua frente e habilmente checou a bateria, removeu o miolo, os pinos, olhou tudo cuidadosamente e tornou a montar o mecanismo. Nada. O relógio continuava parado. O homem refez a manobra toda, ainda mais atentamente.
Dez minutos depois, o engenheiro, acostumado ao pragmatismo que o mercado cultiva com afinco e eficiência em proveito próprio, perguntou se não seria melhor desistir, e tentou convencê-lo de vez oferecendo-lhe de presente as peças de novo dispersas sobre a bancada. Disse-lhe sorrindo que não perdesse seu precioso tempo com aquilo, não valia a pena. Já ia se despedir do relojoeiro e voltar à porta da oficina, mas o homenzinho o olhou com um misto de espanto e leve indignação. “Como assim, desistir? O senhor não trouxe seu relógio para consertar? Estou aqui para isso. É com isso que ganho minha vida, fui treinado para consertar qualquer relógio, e mesmo esse, um pouco diferente dos outros que conheço, pode ser consertado. Palavra de profissional.” O turista ficou calado, respirou um pouco mais fundo e resolveu esperar. Percebeu que estava ferindo os brios do homem e que, além disso, ele jamais compreenderia que o dono de um objeto passível de conserto se dispusesse a gastar mais dinheiro comprando outro. Recostou-se pois à lateral da bancada e ficou olhando.
Se fosse um natural da terra, com certeza iria tomar um trago na esquina e aproveitar o tempo olhando as mulheres que passavam ou fumando um cigarro. Mas não era, e sofria dessa retidão esterilizante dos homens pragmáticos, que não sabem gozar as aparas de liberdade que o tempo às vezes nos oferece de graça. Ficou portanto ali durante quase meia hora, comprazendo-se em ver e rever tudo que havia na oficina, concentrado na destreza do relojoeiro, o qual, tendo montado e desmontado as peças vezes incontáveis, soltou um grunhido de discreta satisfação. “Achei”, anunciou sorridente. “Entrou um tiquinho de umidade na máquina e ela emperrou.” Remontou o relógio em poucos segundos e o pôs a funcionar diante do dono. Tudo em ordem: bateria, mecanismo com movimentos regulares, ponteiros deslizando sem problemas, alarme em absoluto sincronismo e sonoridade. Cobrou sete pesos – trinta centavos de dólar. “Foram os 30 cents mais divertidos que deixei em Cuba”, diz o americano, até hoje encantado com o episódio, recomendando que ninguém deixe de recorrer aos maravilhosos profissionais em que o país é pródigo, “só pelo prazer de ver seus objetos sendo consertados por esses experts”, além de aprender ao vivo o valor que podem ter as coisas usadas e vislumbrar o enorme potencial de reciclagem que deve existir no mundo desenvolvido, onde há muito mais o que consertar.
As cidades vivem simultaneamente em tempo diversos. Talvez Havana seja nosso passado morando numa ilha do Caribe. Porque já vivemos nesse tempo em que a maioria acreditava que as coisas usadas têm um valor intrínseco e é sempre melhor consertá-las quando é preciso, porque sai mais barato; porque os objetos quase sempre são para seu dono algo que escapa à visão do deus burro, ávido e imediatista que é o mercado; porque é útil para o povo que haja espaços de trabalho tão acessíveis como os de relojoeiro, sapateiro, costureiros sem grife, profissionais que podem viver de seu trabalho sem pedir nada a ninguém e sem precisar de formação acadêmica.
Pode ser também que o turista americano tenha sido tocado de modo decisivo por algo de que ele nem ousou se aperceber claramente, porque não lhe é familiar a não ser talvez mediado pela assepsia de palavras impressas ou imagens projetadas: a poesia do obscuro, do dia-a-dia sem glamour, do velho neo-realismo italiano ou dos romances russos.
Um estado de espírito que já vivemos intensamente, e subsiste apenas em uma faixa cada vez mais estreita da classe média baixa. O resto há muito já embarcou naquele trem de pobres festivos, consumistas e encalacrados, que preferem constar de todos os serasas da vida a cair de novo no limbo de uma vida sem dívidas e sem tevê de 29 polegadas.

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

O Deus dos leigos

Vista da cidade de Mariana, MG.
 
 
Não me considero autoridade no assunto. Nem por isso no entanto deixo de refletir sobre as religiões, um tema universal, que nenhuma cultura ou civilização deixou de lado.

Sempre tive grande dificuldade de acreditar, não propriamente em um Deus – “o Deus”, como dizia Clarice – mas no que alguém chamou com propriedade de os amigos dele. Para mim, todas as religiões são verdadeiros obstáculos a esse sentimento reconfortante que é a fé. Dogmas, promessas de castigo eterno e coisas no gênero me parecem muito mais um discurso humano do que divino, ao menos no que se refere ao único Deus que consigo imaginar. E na verdade, as religiões, todas ou quase, vivem e prosperam sobre os fundamentos da ameaça e de uma forma de chantagem – ou você acredita e obedece, ou – e lá vem ira divina, cólera do todo-poderoso e frases aterradoras tiradas do antigo testamento. Frases escritas por homens dos quais se afirma terem sido inspirados por uma luz divina.

O que me parece mais cruel nas religiões é a invasão da liberdade individual e, acima de tudo, a exploração do que há de mais vulnerável na natureza humana – a falta que todo homem carrega consigo vida afora, e o leva a se apegar a qualquer pessoa que lhe pareça apta a preenchê-la. Essa incompletude, a sensação de abandono, o medo da solidão e seus derivados deixam o homem à mercê de quem souber tirar partido deles. Todo homem é um indigente afetivo, incluindo os que se julgam mais espertos, se aproveitam da fraqueza dos outros e depois têm que conviver com a culpa e o medo de sanções. Encontramos gente assim em toda parte. Conhecemos esses seres confusos e escorregadios, que precisam viver sempre alerta para não serem apanhados em flagrante nas ações que sua esperteza os impele a cometer.

Sei bem que dentro de cada religião existe gente sincera e sensível, gente que chega a ser abnegada por dedicação genuína ao próximo. Fui educada dentro de uma religião, frequentei a igreja durante minha infância e juventude, participei de atividades das quais nunca me arrependi. Mas a gente amadurece e aprende a ser um pouco mais crítica em relação aos acontecimentos e ao comportamento das pessoas. Uma religião institucional, por mais respeitável, abre muitas brechas para a impostura, a hipocrisia e o preconceito. Das menos respeitáveis, essas que se inventam da noite para o dia, nem é bom falar. Mesmo porque, quase sempre o mau caráter de seus fundadores e arautos fala por elas.

Por tudo isso, e porque a gente sempre se sente um pouco órfã em relação a esse Deus que é mais um desejo intenso do que uma crença tranquilizadora, o poema do catalão José Palau mexeu comigo. Porque ele diz exatamente o que eu gostaria de ter dito, se escrevesse um poema a esse respeito. Ao menos pela beleza das palavras e das frases, que falam dessa humana necessidade de alguém maior em quem se possa descansar a certeza da plenitude.
  

Canto espiritual


Não creio em ti, Senhor, mas tenho tanta necessidade de crer em ti, que muitas vezes falo e te imploro como se existisses.
Tenho tanta necessidade de ti, Senhor, e de que sejas, que chego a crer em ti – e penso crer em ti quando não creio em ninguém.
Mas depois desperto, ou me parece que desperto, e me envergonho de minha fraqueza e te detesto. E falo contra ti que não és ninguém. E falo mal de ti como se fosses alguém.
Quando, Senhor, estou desperto e quando adormecido?
Quando estou mais desperto e quando mais adormecido? Não será tudo um sonho e eu que, desperto e adormecido, sonho a vida? Despertarei algum dia deste duplo sonho e viverei, longe daqui, a verdadeira vida, onde sonho e vigília sejam uma mentira?
Não creio em ti, Senhor, mas se és, não posso dar-te o melhor de mim a não ser assim: senão dizendo-te que não creio em ti. Que forma de amor tão estranha e tão dura! Que mal me faz não poder dizer-te: creio.
Não creio em ti, Senhor, mas se és, tira-me deste engano de uma vez.
Faz-me ver bem a tua cara! Não me queiras mal pelo meu amor
mesquinho. Faz com que, sem fim e sem palavras, todo o meu ser possa dizer-te: És.


José Palau, poeta catalão, traduzido por Augusto de Campos.