sábado, 21 de fevereiro de 2009

Ontem perdi o emprego




Todos estão se preparando ou começando a almoçar. Olho a cama desfeita e meu pé toca o chão frio, é primavera. Está entrando alguém pela cozinha. Chove há três dias, as ruas estão meladas, e ontem tirei um casaco do armário. A noite foi inquieta, o telefone me fez ter um pesadelo com duas caboclas e suas filhas, sorridentes, cevadas e com colares de pérolas, tentando tirar de minha mão o controle remoto da TV. Eu resistia e mandei que arrumassem a geladeira. Acordei com o último toque do telefone. Uma e vinte. Havia acabado de pegar no sono. Liguei a TV e fiquei ouvindo um ex-embaixador velhinho sem ver sua cara flácida e manchada. Meu estômago parecia desgostoso. Levantei e fiz um chá. Foi bom. Fiquei ouvindo Schöenberg bem baixinho e dormi de novo. Às dez acordei muito triste, depois de novo ao meio-dia. Saí da cama ouvindo alguém entrar, era Cida, a vizinha, que tem a chave para emergências – ai, desculpa, vim buscar uma panela – panela não é emergência, Cida. Ela sai, fecho a porta e penso que depende. Aí faço outro chá e torro o pão de ontem cortado bem fininho.

terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

A classe média por ela mesma



Tirando a bruxa do segundo andar e a muambeira do quatrocentos e três, nosso prédio é um lugar de pessoas de renda acima da média. Não sei por que razão insistem em deixar jornais velhos e garrafas junto à coluna da lixeira, quando já ficou decidido em reunião do condomínio que essas coisas deviam ser entregues diretamente na portaria para serem encaminhadas ao lixo reciclável. Dona Uiara diz que a Conlurb não separa o lixo, e por isso ela acha uma perda de tempo tantos escrúpulos.
O doutor Rocha, da cobertura, fez uma de suas raras intervenções na reunião, opinando com autoridade, para dizer que os costumes das favelas estão enfim chegando às habitações da classe média. Por falta de cultura, visão de mundo estreita e pela mediocridade e tendência à acomodação que há décadas nos caracterizam, cedemos cada vez mais depressa à mentalidade e ao modo de vida pobre, mas vigoroso, desses bárbaros. Ao zunzum que se seguiu a sua fala, acrescentou que, et pour cause, os favelados são hoje a força mais poderosa da cidade, que haverá de esmagar os preconceitos e pruridos da gente que se vê como socialmente superior por causa de suas posses. Não falo da força das armas e do crime, que também devem ser levados em conta – e como! – mas da força que emana dessa gente lutadora, corajosa e disponível – e contudo, infelizmente, semi-analfabeta – que compõe um estrato poderoso e revestido da autoridade que confere (hélàs!) a superioridade moral.
Triunfal, de dedo em riste, acrescentou que nossa classe é preterida pelo Estado, desdenhada pelos mais pobres, roída pela culpa de seu próprio imobilismo e preguiçosa demais para reagir a esse estado de coisas. Ruirá portanto por força do desemprego, da falta daquelas colocações das quais depende para viver, uma vez que lhe falta criatividade para mudar o rumo dos acontecimentos e nem escolher bons representantes lhe é dado; por força das drogas e da bebida que consome em excesso, do relaxamento moral com que solapa os fundamentos da família; ruirá também sob o desprezo dos mais ricos e poderosos e por força da ignorância, incúria e arrogância que embalam suas vidas na rede da inoperância. E, diante dos rostos assustados dos condôminos, finalizou, tonitruante: ai de ti, classe miserável, que atiras fora o que te foi dado pelo esforço e suor de teus antepassados! Ai de ti, porque não conheces a misericórdia nem a compaixão, porque és egoísta e maldosa e nada soubeste construir com tua miopia senão um reino de estúpidas pretensões sem alicerces na realidade.