sábado, 4 de agosto de 2007

As rosas e o cimento



Toda vez que passo na esquina arcangélica das ruas são Miguel e são Rafael meu coração ensaia um pequeno vôo e meus pés querem tomar a direção da casa de varanda e jardim, hoje protegida por um muro áspero de cimento cinza. Tenho que fazer um esforço para desviar daquele portão e seguir meu caminho. Agora moram lá outras pessoas, a casa está meio decadente e perdeu o charme, seria doloroso vê-la de novo por dentro sem as flores, o cheiro bom daquele tempo e a luz que o riso de tia Anita parecia irradiar. Nem se justificaria entrar na casa dos outros, na certa iam desconfiar de assalto e eu ia parar na décima nona depê.
Tia Anita morava naquela casa com o marido, meu amado tio Marcelo, e o filho mais novo, por quem fui absolutamente tresloucada até os quinze anos, e que acabou casando com a vizinha, depois de se desiludir com uma menina que foi sua grande paixão. Mas isso é outra história. Tia Anita e tio Marcelo eram considerados pessoas abastadas. Não eram, hoje sei. Mas naquele tempo a medida para avaliar os bens de alguém não passava pelo que esse alguém efetivamente possuísse, mas por seu modo de viver, e a casa deles era uma delícia de conforto e bom gosto.
Tio Marcelo foi a ovelha negra de uma família tradicional de Botafogo, e os nomes de seus parentes estão gravados nas placas de muitas esquinas do bairro. Foi um boêmio incorrigível, os pais viviam sobressaltados por causa dele. Tantas aprontou que o puseram para fora de casa e ele teve que recomeçar a vida como funcionário dos correios, onde conheceu tia Anita, na flor dos dezoito, com os enormes olhos castanhos e os dentes perfeitos da família de mamãe – que eu, snif snif, não herdei –, ele, velho lobo mau de trinta e poucos anos, boêmio e pé-rapado. Fogo e pólvora não se encontram impunemente. Casaram em seis meses, literalmente babando um pelo outro. A mãe dele abençoou a nora, anjo salvador, e lhe declarou eterno amor de mãe. Herança, nem pensar: estava comprovado que o dinheiro estragava aquele estróina, e agora ele teria todas as razões do mundo para desunhar firme, ser homem útil à sociedade, comer o pão com suor – coisa que ele, um gourmet refinado, positivamente não faria. Mas enfim, se queria continuar com seus lagostins e torradinhas com caviar, que fizesse por onde.
Sem herança, eles eram a fome e a vontade de comer. Tio Marcelo, educado na Suíça, francês fluente, conhecedor de etiqueta e arte; tia Anita, educada aqui mesmo em colégio público de bom ensino, também traçava lá seu francês, lia muito e fazia versos românticos. Mas mãe é sempre mãe. A sogra lhes deu a mobília da sala, ébano e cristal bisotado, e o resto das duas famílias providenciou o que faltava, e não era pouco.
Tio Marcelo plantou rosas no jardim, quando mudaram para a casa da esquina. A mesa era posta com castiçal, talheres de alpaca e porcelana. Claro, ao longo dos anos ele pulou a cerca algumas vezes, mas o casamento não se desfez: tia Anita segurou todas as barras. Pareciam feitos um para o outro, e nem nos piores momentos se falou em separação. Tia Anita se foi dois meses depois dele.
Foi pela mão de tio Marcelo que muito cedo conheci os museus de arte e o teatro. Era louco por Balzac, me emprestava seus livros de poesia francesa e me apresentou aos licores italianos e ao vinho branco. Me falava de Veneza, Paris, Londres e de uma cidadezinha suíça que fui conhecer muitos anos depois, e eu o escutava fascinada, porque ele era um ator e tanto. Incentivava minhas aulas de pintura como se eu fosse uma vangoga em potencial.
Quando passo por aquela esquina celestial, parece que estou ouvindo o riso de tia Anita. Evito olhar o horrendo muro de cimento cinza, que me dá uma tristeza dessas que choram no meio do esterno, e na memória me aparecem as rosas com cheiro e tudo. Nem quero conferir. Devem ter cimentado o jardim também.

4 comentários:

Anônimo disse...

Grato por dividir esse pedacinho de memória literária conosco. Mas tem gente que diz que rosas vencem o concreto...

Lord Broken Pottery disse...

Adelaide,
Delícia de relato. A nossa arma é o que a memória guarda. Como não gostar de quem amava Balzac e plantava rosas.
Grande beijo

Marcelo F. Carvalho disse...

Adelaide,
que coisa linda de se ler! "Literatura de memória" é mais gostoso. E o que Halem escreveu é correto, tem gente que diz que rosas vencem o concreto.
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Abraço forte!

Marcelo F. Carvalho disse...

Adelaide, desculpa avisar quando já fiz, sem pedir licença... Mas postei este texto no meu blog. Ele é, simplesmente.
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Abraço forte!