sexta-feira, 28 de agosto de 2009

Silêncio alternativo


Desenho de Luca Marietti


Quem devia ter ficado surdo no lugar de Beethoven era um escritor. Digamos Borges, por exemplo. Borges não podia ter ficado cego, o que deve ter atrapalhado a atividade dele, na dependência de alguém que pudesse escrever o que ele criava.
Mas a gente não escolhe o sentido que vai ficar mais fraco ou o que vai se perder.

Obviamente, o melhor de tudo é contar com todos os sentidos em plenitude. No meio da zoeira da cidade, no entanto, quando o trânsito agoniza embaixo da janela ou um martelo e uma serra dão conta da obra ao lado, às vezes penso em como seria bom poder desligar a audição, deixar de ouvir e mergulhar num silêncio total.

A gente ouve camadas de sons. Um ronronar distante de motores que nem se sabe onde estão, um barulhinho gostoso de folhas que se roçam com o vento, vozes que espetam o silêncio de repente. Freadas, buzinas, estouros, foguetes inexplicados. Ruídos que vêm do alto, do vizinho que arrastou um móvel ou pisou forte com o salto contra a madeira do assoalho, coisas que caem, louças que se quebram, águas que correm. Até tiros, às vezes, para lembrar onde estamos. E música. A música que pusemos pra tocar, que nos dá prazer; a música que o alto-falante toca lá fora, de um carro qualquer; a que alguém por perto resolveu ouvir bem alto, porque está no banheiro e o som no quarto.

Aí imagino ir deixando de ouvir cada camada dessas, começando pela banda que grita, apagando o som do carro, que parece arranhar todos os sentidos, e o próprio Tom Jobim que nos embalava. E logo somem os ruídos intempestivos, os gritos inexplicados, e restam as folhas farfalhando, o ronrom distante; mas mesmo esses vão se diluindo numa espécie de vazio, que cresce e se espalha. Não ouço mais nada.

Aproveitando essa paz em que nem o silêncio faz seu habitual zunido manso, fecho também os olhos e deixo as ideias chegarem à tona. A princípio um pouco assustadas como baratinhas flagradas pela luz, elas hesitam. Mas pouco a pouco vão emergindo de seu escurinho básico e se mostram. É preciso agir rápido, antes que o feitiço acabe, a mágica se desmanche e cada coisa volte a emitir seus ruídos e façam esquecer.

De repente, uma dúvida traz um susto nas asas: e se for pra valer? Se nunca mais Tom Jobim, nem Chet Baker, nem Brahms? Se não houver mais o ruído do mar, o canto dos pássaros? Não saber se alguém abriu a porta, não ouvir o chamado do telefone, não saber que o portão do estacionamento abriu às duas da manhã? Não mais a voz do amado, dos amigos, das crianças, essas que dão um fresquinho na alma?

Alívio: destamparam-se as orelhas. A camada das folhas subiu de tom: venta muito, a cortina voou lá pra fora e um trovão sacode tudo, aleluia. De vez em quando, esse oásis de silêncio total, que nenhum protetor de ouvidos pode dar, é um remanso, uma delícia de paz... Mas as ideias que vão chegar precisam de todos os sentidos. Elas não brotam do nada. E o mundo só existe para nós por esse aglomerado de estímulos que podemos escolher até certo ponto, além do qual é preciso aceitar, porque pior que tudo é rejeitar o que está a nossa volta e abrir mão do que a vida é capaz de oferecer. E que é tanto.

quinta-feira, 20 de agosto de 2009

Conviver é preciso

É inevitável. Às vezes desejável; outras, cansativo, tedioso e até irritante.
Convive-se em casa, nas calçadas, nos transportes coletivos – com sorte, num trem de metrô meio vazio ou num ônibus de horário mais tranquilo; ou então ocupando espaços impossíveis, sentindo os odores alheios, ouvindo conversas estranhas e até aturando o assédio de algum sem-noção. Convive-se no táxi, no avião, no mercado, no shopping, no clube, na boate, na igreja, no trabalho, na escola. É preciso aprender desde cedo porque, caso isso não aconteça, forma-se um ser anti-social ou uma daquelas pessoas que não sabem como lidar com o próximo e acabam se machucando muito pela vida afora.

Gente exige treinamento. Na falta dessa preparação para a convivência, alguma coisa essencial para uma vida satisfatória fica faltando e a consequência pode ser uma solidão difícil de aturar ou um comportamento pendular e muita insegurança. Ver os outros com olhos hostis sem um motivo sólido, apenas como uma forma de autodefesa, é um desastre para o convívio. Uma espécie de desvantagem de início, se olharmos a coisa como um jogo (e a vida tem um lado lúdico que não dá pra ignorar). Tenho visto pais que induzem essa atitude nos filhos ainda crianças, achando que com isso os tornam mais fortes para conviver. Ter uma atitude pejorativa para as diferenças alheias, pretender tirar vantagem em tudo e assumir o lado brucutu, que cada um de nós carrega, como exemplos para os filhos, podem pavimentar um caminho para a encrenca e estragar boa parte da vida deles.

Cada convivência tem seus lados amenos, agradáveis ou ásperos e indigestos. Quando predominam os últimos, é preciso saber onde se pisa para não sofrer as consequências em todo seu peso. Assim como é preciso estar preparado para poder tirar de uma boa convivência tudo que pode nos dar em termos de amizade, amor ou companheirismo. Coisas que só se aprende convivendo.

quinta-feira, 13 de agosto de 2009

Suco de gente

A noção de arte como “suco de gente” começou a frequentar minha cabeça a partir de um pensamento casual. Tinha tomado um suco de laranja delicioso e comecei a imaginar que aquela devia ser uma laranja diferente das outras, com mais recursos que suas semelhantes. Daí me veio a estranha ideia de uma laranja artista. Achei isso engraçado, mas logo esqueci.
Num texto sobre arte, a ideia volta à tona. Assim como a palavra “suco” sugere o melhor de uma fruta madura e gostosa, “artista” remete ao melhor de alguém. Mas como? – pensarão essas pessoas que exigem sempre expressões politicamente corretas. Então o fato de ser artista torna alguém melhor que os outros mortais? Afinal, nem todo mundo faz arte. E se a arte é o “melhor” de uma pessoa, fica implícito que o resto não tem esse melhor.
Nada disso. Há quem dê o melhor de si num consultório, num esporte, numa empresa, no comércio, na sala de aula, numa construção ou num almoxarifado. Ninguém é obrigado a ser artista para ser melhor em alguma coisa. A diferença está em que a arte é um dom que proporciona aos outros um motivo de prazer estético, ou seja, uma sensação intangível que se aproxima bastante da espiritualidade, porque, além de tudo, vem “de graça”.
Não que o produto da arte seja necessariamente místico, ao contrário: quase sempre a arte se refere e se alimenta da realidade mais concreta, do que se experimenta com os sentidos e nem ao menos corresponde ao que se convencionou chamar “o belo”. Sua afinidade com o que é espiritual vem do prazer que nos dá; porque o espírito participa do que dá prazer, mesmo que seja um prazer puramente físico. Isso parece um paradoxo dos mais empedrados; mas se desconectarmos a ideia de espírito do conceito religioso que ele costuma exprimir, vamos perceber com clareza que, ao nos suscitar um prazer autônomo e apontar para novos modos de entender e perceber o mundo, a arte enriquece nossa experiência de vida, afina a sensibilidade e amplia nosso repertório – ou seja, torna nosso espírito mais amplo e nos leva mais longe.
Mas é um pouco chato falar de arte com essa cerimônia toda. Porque a gente tem que viver e curtir arte no dia-a-dia, experimentar pelos sentidos o que ela tem de bom, em vez de só pensar nela. No quadro, no filme, no show, na música que ouvimos, no texto que lemos, no desenho de animação, no poema que nos toca fundo, a arte está ao alcance da mão. Tanto quanto o copo daquele suco da fruta mais doce, madura e deliciosa que nos faz tanto bem.

Imagem E.Manet. Carnations and clematis.

segunda-feira, 3 de agosto de 2009

Sorrisos





Há uma propaganda rolando na tevê, se não me engano de uma ONG que fala de uma vida melhor, em que as imagens bem escolhidas e esteticamente atraentes me fizeram parar e prestar atenção aos detalhes, coisa que raramente acontece em comerciais. O filme é bonito, mas no meio da sequência de pessoas de diferentes origens há um homem que bem pode ser um brasileiro comum, mulato, de óculos e camisa xadrez. Um rosto absolutamente comum, sem nada que o diferencie de milhares de homens do tipo, e que aparece apenas um ou dois segundos. O diferencial está no sorriso que exibe – aberto, franco, convincente. Pode até ter sido uma tomada ensaiada, e pode ser que o sorriso tenha sido fabricado para o momento. Mas é um sorriso que fala – fala de alegria, satisfação de estar vivo e até de auto-estima, pode?

Quando Chaplin compôs Smile, uma canção que expressa a força do sorriso (e que ganhou uma versão brasileira belíssima, na voz de Djavan), ele sabia o que estava dizendo. O sorriso tem uma força persuasória insuspeitada pela maioria das pessoas, e é capaz de conseguir mais que um arrazoado de meia hora, dependendo de quem sorri. Se alguém está insatisfeito, triste ou desanimado, deve experimentar um bom sorriso. Mesmo que a princípio seja forçado, auto-imposto, um sorriso joga um pouco de luz na escuridão e contamina um pouco as pessoas com sua mensagem. Por causa disso, é capaz de mudar para melhor o clima que cerca aquele que sorri. Ninguém sente vontade de se aproximar de uma pessoa cujo rosto é um prenúncio de lamentações e queixas. Um bom sorriso, no entanto, espalha simpatia a sua volta, e pode tornar os outros mais receptivos.

Não é preciso fingir uma alegria que não se sente na realidade. Uma alegria falsificada costuma ser um desastre e fazer do falsário um canastrão. Mas um sorriso não significa necessariamente alegria; pode-se sorrir por uma satisfação interior, por simpatia, por ironia ou por ter cumprido alguma coisa que nos parece importante. Pode-se sorrir por mil e uma razões, e quanto mais interiores elas forem, mais o sorriso será autêntico e convincente. Pode-se sorrir até por pensar em alguma coisa que nem existe, um desejo, uma idealização. Sempre que alguém sorri, sua musculatura facial assume uma tensão capaz de atrair o próximo. Primeiro, porque em geral o rosto de quem sorri melhora de aparência e se torna afável, agradável de olhar. E também porque um sorriso é um signo, indício de bem-estar, boa notícia, bom humor ou boa vontade para com o outro.

Então, se o estresse está alto, experimente um relaxamento muscular e sorria. Se a tristeza tenta morder você, sorria. E se alguma coisa vai muito mal e não dá sinais de melhora, experimente sorrir. Nem que seja na frente do espelho. Pode ser o começo de uma virada.