segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

A coluna do meio

O Bem, o Mal e a Coluna do Meio chegou àquele ponto da existência de um blog em que é preciso tomar um rumo definido. E tendo que tomar uma decisão pra valer, escolhi para ele a última opção – a saída de cena.
Agradeço aos leitores do blog, gente finíssima, sempre atenciosos, amigáveis e esclarecidos, que me deram bons momentos com seus comentários. 
Abraços e carinho a todos.

Veja este site:

"Brazil" "jooble.br.com"

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Viagens



— Se eu tivesse muito dinheiro, você aceitaria viajar comigo?
— Despesas pagas?
Olhou-a com ar meio canalha.
— É mesmo? Para onde?
— Paris, Roma, Londres...
— Londres não, os ingleses comem muito mal.
— Mas têm restaurantes de comida estrangeira. Têm lanchonetes e hambúrgueres.
— A água lá é péssima. Prefiro Paris. Roma é muito barulhenta. O trânsito é insuportável.
— Depende de por onde se anda. Barulho há em qualquer cidade grande.
— É diferente. Prefiro Paris. Pensando bem, por que não o Nepal? É belíssimo, o Nepal. Ou alguma aldeia indonésia.
— Ou ilha grega, Creta, Samos, Paros com a montanha de mármore. O céu da Grécia é divino, foi por isso que eles imaginaram aqueles deuses todos. Deuses brotando até do chão.
— São deuses de verdade, ao menos dão para entender, malandros e presunçosos como nós.
— Na Itália há cidades maravilhosas. Na França, na Espanha.
— Ah, a Espanha eu...
— Os castelos da Floresta Negra.
— As tortas.
— Os austríacos, os suíços. Itália por causa do vinho. E depois as aldeias européias sempre valem a pena.
Ele mastigava salaminho olhando-a de olhos meio fechados. O nome da Grécia lhe dava a sensação de estar com balas brancas de coco desmanchando na boca. Deviam ser aquelas casas caiadas contra o fundo do mar azul-topázio, azul-cobalto, azul-esmeralda, azul com ou sem espuma. Tão bom como balas de coco, ela não entenderia. Era meio obtusa às vezes e principalmente se julgava mais culta que ele. Os telhados cercando as enseadas, o topo arredondado de construções brancas, cortinas voando de janelas floridas ladeiras acima. Gatos pretos recortados contra muros caiados. Mar e telhados, azuis intensos e branco. Analisou-a com olhos isentos e registrou um acúmulo de gordura dispensável em suas costas e nos braços, que nela o agradavam acima de tudo.
— Estive em algumas agências, ela acrescentou.
— E quem você deixaria numa ilha deserta?
— Qualquer homem que me incomode muito. Fiz muitos cálculos, olhei preços de hotéis, albergues e tudo. Não quero ir sozinha.
Devia estar contente, teria a companhia de um cara descolado e alegre. Mas estava de repente insatisfeita, vendo os olhos dele mais curiosos do que ternos. À frente, a lagoa deslizava mansa para longe, picando a luz do poente em pedaços que iam diminuindo à distância. Ficaram abraçados, ouvindo os pássaros invisíveis da tarde. Entre os dois, um anjo decaído premeditava coisas.


Trecho de Como se livrar de Glória.
Texto reeditado

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

As palavras nos lambuzam



Chocolate é uma dessas coisas que se valorizam pelo nome. O poder da palavra, quase sempre associada à imagem, é mesmo a base de toda propaganda; a propaganda se nutre de palavras, e nós acabamos engolindo o que ela nos empurra pelos olhos e ouvidos.
Elas não querem nunca dizer exatamente o que dizem, mas como dizer sem elas? Por imagens, ideogramas? É possível até certo ponto Mas tudo sempre acabará em palavras, vozes ou letras, para nós que falamos línguas literais. Até no sonho, quantas vezes se levanta contra nós uma maldição de palavras inexatas, aflitivas, nem trevas nem luz, um meio-termo contra o qual não dá para lutar – não há como lutar contra o sonho e o que ele quer nos dizer.
Quem conhece todo o poder das palavras?
As línguas vivas, faladas ou escritas, usam as palavras de tal modo que sempre lhes acrescentam ou modificam o significado, e nisso parece consistir a presença da criatividade na linguagem humana. Mesmo as referências, os termos arcaicos, monossílabos ou textos mal construídos podem falar de modo estranho, mas são sempre passíveis de decodificação.
Palavras agradam ou não; podem ser entendidas menos ou mais rapidamente. Mas todas sem exceção descrevem arcos de significados, associativos, denotativos ou conotativos. Todas têm algum sabor, e o mais fantástico: nunca o sabor de uma será igual ao de outra. Às vezes uma mesma palavra pode mostrar muitas faces, se você parar, concentrado, à frente dela. Como já disse o poeta, muito analisada uma palavra acaba ficando nua na sua frente.
Para quem ouve ou lê, cada palavra se associa a uma cor, um cheiro, uma sensação, um fato de memória. E mais: as palavras são bumerangues de percursos desiguais, mas acabam sempre voltando às mãos ou à cara de quem as diz ou escreve.
Com licença, vou lavar as mãos lambuzadas pela propaganda enganosa desse chocolate, que nem era lá essas coisas. Argh.

Texto reeditado

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

Drogue-se



Entre as substâncias capazes de lhe provocar viagens inesquecíveis e nunca – mas nunca mesmo – uma bad trip, chamo sua atenção para algumas ao alcance de todos e que não lhe trarão nenhum prejuízo financeiro, moral ou neurológico. Olha só: se você estiver no Rio, vá até o Arpoador ver o pôr-do-sol. Junte-se aos viciados que quase todo dia se encontram lá para provar os efeitos do visual. A única despesa pode ser talvez a passagem ou o combustível, mas até o estacionamento é grátis e não há consumação ou couvert artístico. (E não venha me dizer que nada disso envolve “substâncias”: o meio ambiente está carregado delas, e as sensações que provoca mexem com suas sinapses sem destruí-las ou lesar suas funções, viu?)
Há outras drogas assim, naturais, inofensivas e até benéficas à saúde. Você pode por exemplo andar pela floresta e, no meio daquele silêncio absoluto (não é o absoluto o que se busca nas drogas?), ouvir algumas vozes que com freqüência parecem cintilar ou entoar alguma música de autor desconhecido, em geral deliciosa para os ouvidos e muitas vezes intrigantes, verdadeiros desafios de som. Acresça-se a leve brisa e o visual do lugar, e as sensações mais gostosas tomam conta de você e o tiram do ar.
Quer ver outra droga de efeito? Olhe para o céu com vagar e toda sua atenção. A qualquer hora ou lugar de onde possa. Analise as formas das nuvens mutantes. Procure distinguir as tonalidades que o céu apresenta, em especial de madrugada e à tardinha.
Sempre que puder, olhe também para o mar, de qualquer ângulo e a qualquer momento. Ele garante um tempo de paz ou arrebatamento em que você pode mergulhar sem medo e esquecer seus problemas, angústias, medos e contas vencidas.
Se ainda estiver acordado, for plantonista ou sofrer de insônia, ou ainda se gostar de pular cedinho da cama, viva a madrugada. Mergulhe nela inteiro, sinta seus cheiros, ouça os sons de seu silêncio; observe a luz, o céu, as árvores; escute e veja os pássaros.
Há ainda outras opções: a arquitetura de sua cidade, antiga, neoclássica ou contemporânea. A diversidade dos bairros, a beleza e o aconchego de certas ruas e ambientes. O desenho das montanhas, o sorvete da Shaika.
Outras opções podem lhe ocorrer em tudo lucrativas. Ler o que lhe dá mais prazer, por exemplo. Livros não faltam, nem bons autores. Livrarias ótimas, sebos perfeitos onde você se sente tão à vontade que pode até tirar os sapatos ou levar uma cadeira de praia para escolher com mais conforto. Sem falar de uma atividade que o envolva inteiro e que, mesmo não lucrativa, lhe dê um enorme prazer e o faça sentir-se realizado – pesquisas, artes plásticas, música, escrita, moda, teatro... ou economia, quem sabe?
E os papos com aqueles amigos do peito que curtem os mesmos assuntos? E os planos de reforma do apartamento, a vontade de fazer alguém muito feliz, a expectativa de um encontro que promete bons momentos? Se a questão é um bom afrodisíaco, vamos à praia no verão; dançar ou mergulhar na luz das noites de luar intenso em boa companhia também costuma dar certo.
A lista pode não acabar nunca, porque o melhor guia para conseguir acesso a um barato incomparável é sua própria imaginação. Sendo assim, vamos combinar que é uma burrice enfrentar as caras feias e os fuzis dos hômi. E se o que você mais deseja é o desafio do perigo, pratique um esporte radical ou entre para a polícia. Ou para a política, de preferência integrando-se a uma CPI bem cabeluda. Ou então se envolva na investigação do caso Celso Daniel.
Emoções e sensações prazerosas são um pressuposto da vida. E se a gente só as consegue adicionando uma droga ao próprio organismo, alguma coisa não está funcionando como devia. A vida não é simples, a gente sabe, e existem coisas capazes de interferir em nossa capacidade de aproveitar tudo que ela nos oferece. Mas nesses casos, será que a droga pode resolver? Por tudo que se sabe até aqui, quase sempre é um temível complicador.

NA - Texto reeditado.

domingo, 30 de janeiro de 2011

Pequenos nadas

                        ...
se vieres à minha procura
vem devagar e suavemente para não quebrar a porcelana da minha solidão.
Sohrab Sepehry. Irã, 1928-80.


Outros além do poeta iraniano já disseram, em palavras diferentes, que abordar uma pessoa não é para qualquer um. A começar pelo modo como se acorda quem está adormecido, evitando uma transição muito brusca do sono para a vigília, que faz disparar o coração de susto e começar mal o dia. A não ser no caso de dorminhocos notórios e contumazes, em geral basta um leve toque, uma chamada em voz baixa, e quem estava dormindo acorda sem traumas.
Chamar alguém aos gritos é, mais que uma questão de educação, uma agressão sem motivo. Excetuando-se as situações-limite, como estar preso por dentro, ameaçado de cair da janela ou com a casa em chamas, ninguém precisa pôr a boca no mundo para chamar a atenção dos outros.
Em circunstâncias normais, as pessoas gostam de ser lembradas e procuradas, mas nunca perturbadas por um chato inconveniente. Igualmente incômodo é ser lembrado sempre com intenções utilitárias, como empréstimos de coisas ou dinheiro (argh!), pequenos serviços que não nos competem ou pedidos que às vezes se tornam um transtorno para quem precisa obedecer a horários apertados ou desviar-se de seu rumo para atender ao pidão.
Pouca gente hoje em dia ainda se sente obrigada a aceitar encargos que não lhe dizem respeito. Deixou de ser embaraçoso dizer “não”, ao menos para quem vive nas cidades e tem o tempo contado para suas próprias obrigações, mais escasso ainda para o lazer e o cuidado de si. Mas ainda existe gente, tímida ou inadaptada aos hábitos urbanos, que não tem coragem de se negar a fazer o que lhe pedem. Às vezes viram verdadeiros servidores do outro. E sofrem por isso de um modo insuspeitado.
A abordagem amorosa é um caso aparte, mas nem por isso pode invadir a privacidade do ser amado, como se o fato de amar desse carta-branca ao apaixonado nesse particular. Há quem acredite – ou finja acreditar – que amar é pretexto suficiente para ignorar a necessidade que todo mundo tem de um tempo só para si. Nesse caso, mais que em qualquer outro, o respeito a nossa solidão pode ser motivo para firmar e fazer crescer o amor, um sentimento cada vez mais raro e valioso, que todos desejam e pouca gente conhece de muito perto e pratica de verdade.
Quanto mais íntimo se fica de alguém, mais é preciso estar atento ao tempo de que esse alguém necessita para respirar, cultivar sua paz interior ou refletir e tomar decisões sobre seus problemas. Se o ser amado não preza seus momentos de solidão e parece ter horror a ficar sozinho consigo mesmo ao menos um pouco todos os dias, pode ser que a porcelana de que fala o poeta esteja quebrada. E porcelana não dá pra colar. 

sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

Da urgência de viver


 

Em uma palestra proferida em 1987 para estudantes de cinema, Gilles Deleuze aponta nos personagens de Dostoiévski, filmados por Akiro Kurosawa, uma forma de agitação pela qual estão sempre vitimados pela urgência: “Tânia me espera, é preciso que eu vá”, ou “É um incêndio, é preciso que eu vá” – mas qualquer incidente ou encontro casual com alguém os leva a esquecer a pressa e o chamado. Isso acontece porque, ao mesmo tempo em que são presas dessa urgência, os personagens do autor russo “sabem que há uma questão ainda mais urgente, embora não saibam qual”. Essa noção de que há um problema mais profundo do que aquele da circunstância do momento paralisa os personagens e os desperta para alguma coisa que, embora não definida, é ainda mais urgente. O próprio Kurosawa tem em seus filmes essa marca dostoievskiana de criar personagens inquietos, que se metem em situações incríveis, mas nunca perdem o sentido dessa “coisa mais urgente” que está além de tudo e é a mais importante de todas.
Isso configura uma atitude basicamente filosófica diante da vida. Vamos dizer que os fatos do dia-a-dia são matéria de informação, e essa “coisa mais urgente” seja matéria de contra-informação efetiva, para usar as palavras de Deleuze, porque resiste aos fatos cotidianos e corriqueiros, vai mais além da opinião e da ação imediata.
A sociedade em seus mecanismos de controle não está além do cotidiano; muito ao contrário, dobra-se sobre o cotidiano para mantê-lo dentro de suas normas. O controle se exerce com objetivos pragmáticos, para conseguir resultados concretos. Por isso Deleuze define a arte como ato de resistência à sociedade de controle. Mas não é só isso. Ele se reporta a um conceito de André Malraux: a arte é a única coisa que resiste à morte. O exemplo que ele invoca é bem significativo: uma estatueta de 3 mil anos antes de Cristo ainda causa prazer por sua beleza, e no entanto passaram-se milênios de civilizações e culturas diferentes.
Considerando que a morte é um controle da vida, no sentido de uma limitação imposta, pode-se estender esse conceito até mesmo a gestos e símbolos de resistência que, se não são necessariamente obras ditas de arte, mantêm com elas uma afinidade de significação nos modos como se originam e como afetam a sensibilidade humana. Mas existe sempre, em toda obra de arte, um traço de resistência, de avanço em relação a sua época e de perenidade, no sentido em que ela vale para outro tempo muito além, talvez para sempre, o que é muito para se dizer. Por isso Paul Klee, o pintor, dizia que toda obra de arte faz apelo a um povo que ainda não existe.

sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

Sutilezas

                                       Imagem Cézanne. Vaso de flores.

Não há como fugir: os dias são diferentes, mas iguais no que se sucede – manhãs tardes noites madrugadas horas batendo martelo nos segundos. Os dias são como um leilão do que você quer mas só vai levar se perceber a música do martelo.
As cores mudam, porém, tanto as do céu como as do coração, e os tons são inacreditáveis, de uma pessoa para outra e até para a mesma. As diferenças na mesma pessoa são mais claro-escuro, ton-sur-ton, porque o fundo é meio repetitivo mesmo, fazer o quê? Cada um se faz repetitivamente recaindo no refazer do que mais procura evitar. E quando o sol aparece, por causa desse estado de mesmice aparente, pode dar a sensação de que tudo está igual. Mas até o sol tem matizes e variações, é só prestar atenção para ver: o sol não mostra sempre a mesma face, e às vezes está furioso e queima com raiva, mas às vezes acaricia a pele que nem homem enamorado.
As diferenças de uma mesma pessoa se devem a que os poros deixam entrar sempre o que lhes interessa mais. Além disso, o nunca tem muitas frestas. Se digo “nunca”, na mesma hora meus poros se abrem. Daí advém toda contradição do ser humano, e também suas repetições inesgotáveis e seus melhores prazeres.
Os dias podem parecer iguais naquilo que os outros exigem da gente.
A coisa acontece assim: a gente se repete e recai e refaz o que já andou fazendo a vida toda. Quem vive a nosso lado também recai e repete. Quando alguém refaz seu refazer e ressoa em nossa alma como repetição, é a rotina. A rotina não é o que eu faço, mas o que os outros querem que eu faça, e eu faço, repetindo – não o que eu quero e repito por minha própria conta, porque é meu e é como eu sou, mas o que os outros querem que eu refaça por eles. Nisso consiste o poder de uma pessoa sobre a outra: ser capaz de ressoar sua própria repetição no outro. E quanto maior o poder, maior o número de pessoas a refazer a repetição do poderoso. O que obviamente não é justo nem salutar para ninguém.
Quem apenas ressoa o que o outro repete e o refaz sem conseguir deixar de refazer é um candidato a passa humana. Quem não se libera da gaiola da repetição do outro, é pássaro morto dentro da gaiola sem ninguém para chorar por ele. Quem não olha em volta e procura sintonia para ouvir melhor a música do outro, chama-se submisso e nem merece muito que se chore por ele.