segunda-feira, 27 de julho de 2009

Aos pedaços









Sofrimento que ninguém descreve,
como um peso na alma [...]
é a dor das águas que o moinho moi, é a
dor que não sabe onde é que doi.

Dante Milano




Vivemos num tempo de fragmentação cultural e subjetiva. Um tempo em que a dor, a morte, o amor, a alegria, o sucesso e o fracasso das pessoas que a mídia escolhe para melhor vender seus produtos são tratados como peças de um game de proporções globais. A mesma pessoa, às vezes voluntariamente exposta, outras vitimada ou incensada por alguma espécie de notoriedade que a torna de interesse público, ganha faces diferentes e até contraditórias, segundo o veículo e o repórter ou comentarista.
Os fatos são avaliados, analisados, discutidos, dissecados, julgados e definidos por diversos critérios, em polêmicas que parecem sérias, mas na verdade perdem qualquer credibilidade quando se observa com isenção tudo que se comenta e sentencia a respeito. Falta lógica, falta objetividade e, como se o mundo se tivesse tornado uma torre de Babel, cada qual fala uma língua, sem entender nem se preocupar com a do outro, e todos são donos da verdade.
A intelligentsia-classe-média, representada pela mídia de mais recursos e poder, toma conta dos assuntos e manipula opiniões, às vezes respeitáveis, para dar ao público uma resposta capaz de aplacar inquietações, dúvidas e escrúpulos. Podemos dormir tranquilos. Afinal, quem somos nós, pobres anônimos, pra pensar diferente? Assim se encerra a polêmica e cada qual veste a opinião alheia a seu jeito, como quem veste uma roupa de segunda mão vendida pelos jornais, revistas, canais de televisão, noticiários radiofônicos.
Armado o jogo, vilões, mocinhos, princesas, bandidos, vítimas e algozes ficam nítidos e fáceis de entender. E o drama, a dor alheia, a notícia pungente da primeira manchete ganham um colorido atraente, confortável, divertido até.
O príncipe pouco romântico casou com a amante feiosa, mas como ousaram quebrar o padrão consagrado dos amores principescos, caíram num irremediável ridículo.
A moça que vegetava (será mesmo que vegetava? Alguém pensou e sentiu com seu cérebro, percorreu as terminações nervosas de seu corpo, experimentou as sinapses que ainda funcionavam nela?), a moça que para todos os efeitos vegetava foi eliminada aos olhos do mundo, sem ao menos gozar da paz e da privacidade que se supõem necessárias a quem vai morrer.
O papa Paulo VI entrou no período final de sua vida e foi filmado, fotografado, visto e revisto enquanto a agonia tomava conta dele em plena janela aberta do Palácio do Vaticano, ao vivo e em cores. E quando já nem esse espetáculo angustioso podiam oferecer, filmaram sua oração calada e humilhada de costas para as câmeras. Qual o sentido dessa notícia, dessas imagens?
Talvez essas figuras, configuradas para o consumo, travestidas de informação, sirvam como um bom suporte para a projeção das dores de cada um, dos conflitos subjetivos, anônimos, que não têm solução ou impõem tanto esforço, tanto desgaste e sofrimento.
Talvez assistindo ao tormento e à agonia alheios, deixando-nos envolver num drama, real ou inventado, que não é nosso, o tempo passe mais depressa e nos poupe de nossa própria dor. Talvez, chorando de pena daquela figura virtual, minha perda fique mais suave, o amor rasgado e o silêncio de uma ausência em minha vida se percam no burburinho que me cerca. Ou o trabalho mal-remunerado, o convívio desgastante, as frustrações, aquilo que grita e pesa dentro de cada um silenciem um pouco.
É tão mais duro e tão mais difícil olhar de frente o que se passa em nós! Temos desejos que nunca se realizam. Sentimos hostilidade por pessoas que não podemos agredir ou afastar; é tanta a ansiedade, angústia que não se sabe de onde vem, tristeza, depressão. Sem que se perceba, a vida individual fica ainda mais vazia diante do grandioso espetáculo das imagens misteriosamente importantes, belas, mágicas, que merecem retratos coloridos e sorriem sempre, inatingíveis. Mas não faz mal que nossos problemas fiquem ainda mais agudos, se temos um anestésico tão poderoso. Sofre-se menos, quando se faz parte da imensa multidão para quem a vida vai passando em branco

Foto Man Ray.

terça-feira, 21 de julho de 2009

Literatura


Foto do lançamento do Blog de Papel.

Literatura é um pequeno abismo portátil onde de vez em quando a gente se joga. Vicia mais que qualquer droga. Às vezes, dependendo do regime de governo, pode ser até proibida. Serve para viver a fundo as coisas em que uma pessoa sensata não mergulharia, ou porque são repulsivas, ou porque não têm importância nenhuma de ordem prática.

É mais fácil dizer o que a literatura não é: não é útil, não dá dindim, não é pragmática, nem lógica nem relaxa ninguém. E ainda por cima às vezes tira o sono. Para o senso comum, literatura é coisa de maluco mesmo.

Mas quem precisa do senso comum? Para quem escreve, ela é fonte de alguma coisa que fica entre a alegria, o consolo, o alívio, a autoafirmação, o bem-estar do espírito, o refrigério do intelecto e a inefabilidade de um lado e, do outro lado, o trabalho árduo e persistente, para o qual se precisa muito tempo, paciência e solidão. Com o tempo, é quase a satisfação de uma necessidade orgânica. Sem falar no prazer que é ver um livro publicado, lido e comentado. Mesmo que o escritor faça aquela cara de modesto (é mentira, nenhum escritor é modesto), ele estará se sentindo orgulhoso de sua obra, compensado por ver aquele filho de papel e tinta multiplicado, circulando nas mãos de amigos e estranhos. Para ele, cada exemplar é O Livro. Ou, como diria Cortázar, todos os livros, o livro.

segunda-feira, 13 de julho de 2009

Para que servem as flores?



O mundo é injusto e mau; pode ser cão para tanta gente que, se você está bem alimentado, aquecido no frio e refrigerado no verão, se dorme numa boa cama e tem uma família para amar e ser amado, nem consegue imaginar. Mas vamos admitir, o mundo é muito bonito. Tudo bem, não muda muita coisa. Essa beleza no entanto é grátis, e de quebra existem as flores: espatódeas, flamboyants, espirradeiras, acácias aos cachos, ipês amarelos, roxos e brancos, algodoeiros-da-praia, as flores da pata-de-vaca, que delicadas, os jasmins-do-cabo brancos e rosas, quaresmeiras carregadas, pessegueiros de flores tão belas, flores de ameixeira, de maçã e de laranjeira, sem falar nas outras árvores frutíferas que também florescem, algumas das quais lindamente. As flores são uma festa para os olhos, e se a gente prestar atenção, uma festa para os outros sentidos também – têm perfumes às vezes deliciosos, pétalas macias de formatos e cores divinas.

A luta pela vida é uma guerra cheia de batalhas perdidas, está certo. Trabalha-se durante a maior parte do dia e ainda sobra pro dia seguinte. Mas pense bem: podem-se aliviar as tensões de quem se quer bem e as próprias apenas com um gesto amigo ou amante, presenteando ou oferecendo ao menos uma flor a alguém e, dependendo do momento, ganhando o coração de quem já nos ganhou. Para isso existem os gerânios, belas-emílias, beijos multicoloridos, malvinas, lantanas ou cambarás de tantos matizes, margaridas brancas e amarelas, papoulas, camélias, violetas, rosas, rosas, rosas de abril e de todos os meses do ano, de todos os tamanhos, tipos e tons; tulipas, fores-de-maio, magnólias, maravilhas, dodôneas, verbenas, flores rasteiras com ou sem nome, flores do campo, palmas e lírios, copos-de-leite, cravos, cravinas e até cravos-de-defunto para os que já se foram; dálias e estrelítzias, amores-perfeitos, crisântemos e flores-de-cera, gérberas e kalanchoes, lisantos e begônias de inúmeras variedades, ciclamens, primaveras e prímulas. Tudo isso é bem capaz de amenizar as agruras da luta e do cansaço. Ao menos tornar um momento do dia, unzinho só, mais agradável e fazer sorrir um pouco.

Até nossa querida alcaparra, tão gostosa em um bom molho, dá uma flor bonita, assim como o cafeeiro e algumas ervas medicinais como as passifloras, belas e calmantes, e o boldo. O capítulo da fitoterapia é tão grande que não caberia numa crônica, mas é bom lembrar os florais de Bach onde reinam as virtudes curativas que elas, as flores, ainda nos oferecem. E a lavanda e a alfazema, entre outras, esses perfumes que fazem a gente se sentir mais limpa e delicada, têm flores bonitas, que crescem em forma de pendão.

E se você vai por seu caminho de sempre, meio murcho e sem muitas expectativas, mas súbito lhe aparece uma cerca coberta por buganvíleas, alamandas ou tumbérgias, epoméias, glicínias, jasmins-estrela, jasmins em cachos, alfinetes, hibiscos, damas-da-noite, madressilvas ou mimosas, brincos-de-princesa, lágrimas-de-cristo, flores de espinheiro, coroas de cristo, rubras como gotas de sangue, ou até essas florinhas plebéias, como a maria-sem-vergonha, os populares bom-dia e boa-noite – vai me dizer que essa beleza toda não mexe com você?

Sim, o mundo tem lá seus graves defeitos, a vida é dura, o amor é difícil de achar. Mas existem as flores, muitas, de mil formas e cores, com utilidades práticas e às vezes somente dedicadas a fazer sorrir e, quem sabe, mudar para melhor a vida de algumas pessoas – e isso já seria suficiente para justificar sua existência e estimular sua presença em nossas casas.

sexta-feira, 3 de julho de 2009

Nunca é uma palavra de muitas frestas

As cores, assim como os sons, variam quase ao infinito. Tons e tonalidades são muito mais numerosos do que se imagina. O sol tem matizes e variações, é só prestar atenção para ver: o sol não mostra sempre a mesma face – às vezes está furioso e queima com raiva, mas às vezes acaricia a pele que nem homem enamorado. Os dias podem parecer iguais naquilo que os outros – do trabalho, da família, do governo, da comunidade – exigem da gente; mas nossa paisagem interna muda a cada hora do dia. É bom ficar atento a essas mudanças.
As diferenças que uma pessoa apresenta ao longo da vida, dos anos e até das horas se explicam pelos sentidos, que deixam entrar sempre o que interessa mais no momento. Se digo “nunca”, e na mesma hora meus poros se abrem, é porque na verdade o nunca queria dizer outra coisa e não era tão definitivo como se supõe. Nunca é uma palavra com muitas frestas. Quantas vezes entendemos uma frase de um modo bem diferente do sentido que lhe quiseram dar, ou nosso olhar modifica uma imagem. É fácil enganar-se com as aparências; basta que nosso desejo (que tem raízes inconscientes) prefira se iludir ou interpretar a realidade a seu jeito.
Mais complicado é se comprometer com o sempre. Quem escolhe o sempre como norma de vida, às vezes precisa repensar suas posições, sob pena de virar pedra. Se decidi pertencer a um partido, uma escola filosófica, uma religião, minha opção pode valer – até para toda vida – contanto que eu não perca a capacidade de avaliar minhas posições com revisões periódicas. Se o partido mudar de direção e adotar posições com as quais não posso concordar, está na hora de discutir e, quem sabe, mudar de rumo. Modos de pensar, religiões e ideologias são obras humanas. Mesmo no caso das religiões, que se gabam de sua origem divina, as instituições são coisa de gente e falham; podem se tornar opressivas, formar pessoas preconceituosas e crueis, porque facilmente tendem ao que hoje chamamos de fundamentalismo.
Diferente de virar a casaca por conta de interesses imediatistas de dinheiro ou de poder, diferente de ser oportunista ou trair uma corporação por falta de lealdade, mudar nossas posições diante do mundo é um direito humano dos mais legítimos. O que não é justo nem salutar para ninguém é arrastar uma posição insatisfatória, permanecendo em um lugar que não seja o escolhido. Assim como a roupa deve ser agradável à vista mas também nos dar conforto e bem-estar, é bom ficar alerta e, se for preciso, procurar o solzinho que entra pelas frestas do nunca para ver mais claro. Ninguém consegue ser generoso ou solidário se andar pela vida dentro de uma camisa-de-força.

Foto H. Cartier-Bresson.