quinta-feira, 19 de março de 2009

Vencer na vida


Criança. Sem menção de autor.


Todo mundo ouve dizer que planejamento e organização fazem toda a diferença. As ciências de administração e gerenciamento, ligadas ao mercado, já provaram que sem planejamento e organização dificilmente uma estratégia funciona, por mais inspirada que seja.

A filosofia do mercado nos entra pelos ouvidos e pelos olhos a cada passo. Através da publicidade e da propaganda, engolimos o pragmatismo de seus princípios. Entram por osmose, pela repetição, pela atração das imagens. Às vezes cansam, são de mau gosto, mas o importante é que estão aí, e quer a gente queira, quer não, essas mensagens interessadas e interesseiras grudam na pele, e um dia descobrimos que seus valores já nos são tão familiares, que não há por que não concordar em que o pessoal das casas baiúca só quer o nosso bem; que se a gente usar o xampu da cantora de axé music vai ficar com aquele cabelo irresistível (que nem é o dela) ou que só o supermercado potiguara fará nosso lar feliz.

A novidade está em que, felizmente, nem tudo na vida está ligado ao lucro. Temos uma vida pessoal – mesmo influenciada no dia-a-dia pela propaganda e pelo marketing. Essa vida também exige organização, controle (em especial da grana que, dependendo de como lidamos com ela, pode ser mais volátil que éter sulfúrico). O dia parece curto demais para a quantidade de coisas que devem caber dentro dele. Então, haja organização, planejamento e atenção para não deixar o tempo e o comércio nos passarem a perna.

Mas – e há tantos mas quantas imagens existem dentro de cada um – temos também o lado moleque, que gosta de (boas) surpresas, adora uma novidade inesperada, fica entediado com facilidade e acha de uma monotonia insuportável ter que fazer todo dia a mesma coisa. O que fazer dessa pessoa sem nenhum juízo que habita até mesmo os presidentes de bancos centrais? Deixar que morra à míngua de alegria e virar uma múmia ambulante? Hobbies e diversões usuais ajudam a manter o moleque vivo, salve eles, mas só isso não chega. Mais importantes são os contatos humanos, as amizades, o amor, as emoções que é preciso guardar em segurança para evitar que se machuquem na impessoalidade do mundo.

O moleque gosta de colo e carinho genuínos e desiteressados; tem uma antena poderosa para captar a falsidade e a mentira, que o fazem sofrer mais que tudo quando vêm de alguém em quem se confia. E como o moleque é muito amigo do acaso, convém guardar um espaço para ele nas gavetas do dia. No começo é difícil, porque o acaso costuma passar fortuitamente e é preciso ficar atento. Depois, com o passar do tempo, aprende-se a usar o acaso nas doses certas, sem prejuízo da organização necessária. O acaso funciona em nossa rotina como óleo no motor. Junto com o acaso, costuma aparecer o espanto, e quando ele dá as caras é uma alegria só, porque o mundo fica novo. O espanto costuma soprar boas e novas ideias e renovar as energias que pareciam esgotadas.

A atitude estudada e autoimposta, que algumas pessoas assumem, e que ignora esse lado casual, é responsável por homens e mulheres-robôs, determinados a vencer na vida de qualquer maneira, que desprezam solenemente qualquer concessão ao moleque. Mas o que será mesmo “vencer na vida”? Acredito que seja poder fazer o que se gosta e se faz com mais prazer, mesmo que não seja o mais rentável, e persistir nisso. É complicado, em muitos casos até impossível, por questões de subsistência. Mas que nunca se perca de vista o desejo – ele garante a sobrevivência do moleque e o mantém alerta para o acaso, além de fornecer a dose necessária de esperança, que não precisa ser irrealista, mas tem que existir para que haja alegria em viver. E sem cartão de crédito, porque nada disso tem preço.

quarta-feira, 11 de março de 2009

Ultrassonografia




Andei fuçando uns comentários antigos e achei um que me chamou a atenção. Nem sei por que não lembrava mais dele e até me surpreendeu, nessa pequena volta ao passado de apenas dois anos. Primeiro porque nunca mais recebi outra mensagem dessa pessoa, que não vou identificar por motivos óbvios. Depois, porque me pareceu intenso e sincero. Com a imaginação ativada, começam as conjeturas – quem poderia ser? Será verdade ou ficção? O link que deixou naquele comentário não corresponde a nenhum site, o que pode indicar que seu dono desistiu de ter um blog, que se escondia em um falso personagem ou que não está mais entre nós.

Era quase um lamento, mas não pedia nada. Na terceira pessoa – ele – falava de não ter com quem trocar as opiniões mais importantes e não receber nunca o olhar ou o simples gesto de uma partilha; da falta que faz um abraço desses estreitos, que relaxam mais que qualquer sessão de ioga ou medicamento de última geração. Falava acima de tudo da necessidade que todos temos de achar quem ouça com atenção nossas preocupações, dúvidas e angústias; de um semelhante que nos acolha quando de repente o fato de viver sozinho pesa demais e a tristeza começa a fazer ruir as estruturas que nos mantêm em atividade.

Haverá com certeza uma meia dúzia de gozadores interpretando essa história como mera cantada ou artifício de um cara mimado querendo “aparecer”. Pode até ser, sabe-se lá. Mas o tom não era esse. A versão da cantada pode ser posta de lado, porque o comentário foi único e ficou lá, esquecido num canto do blog, coisa que não acontece em casos que tais. Uma cantada nunca vem só. Além disso, não havia indício de sedução, ao contrário: pra quem quer conquistar alguém, ser tão pouco convidativo nunca dá certo. Um texto meio seco que, embora sugira carência afetiva, fala em tese.

Hoje, relendo as doze linhas desse comentário, vejo um pequeno poema em prosa. Um poema bem construído, sem açúcar nem afeto, mas sem amargura. Uma pequena imagem que fala por si, e lembra muito a ultrassonografia de um feto, com o coração pulsando como uma pequena estrela no meio do corpo, que ainda não é quase nada, mas sem saber testemunha sua sede de carinho.

terça-feira, 3 de março de 2009

Leitura perfumada




Andei relendo as Histórias de cronópios e famas, do Cortázar, autor e livro pelos quais tenho especial ternura. (É engraçado como certos livros ficam amigos da gente – ou a gente deles, talvez seja mais realista dizer assim.) Cronópios então é um de meus melhores e maiores amigos-livros. Assim como os amigos-gente, eles também se mostram um pouco diferentes a cada vez que os encontramos. Não ficam mais gordos ou mais magros, mas envelhecem e amadurecem, física e emocionalmente. À medida que o tempo passa, vão firmando a imagem mental que temos deles, aprofundam os sentidos de seu texto e deixam perceber novos sentidos que antes nos escapavam. Pode-se dizer que vamos conhecendo melhor nossos livros a cada leitura, o que certamente tem a ver com nosso próprio auto-conhecimento e maturidade.
Reli as Histórias pela quinta ou sexta vez, e elas sempre me dão um enorme prazer e me fazem rir. Mas nessa última leitura descobri um atrativo inusitado em meu exemplar: sem eu saber como nem por quê, o livro ficou perfumado. Não que o perfume de minhas mãos tivesse passado para ele. O cheiro é outro: é meio madeirado, um pouco sândalo, um pouco poeira, com um toque bem leve de baunilha que o redime e o deixa realmente uma delícia. Um perfume com um bom fixador, porque impregnou o livro inteiro, de capa a capa. Um perfume masculino, com certeza – e que agora associei a Cortázar.