segunda-feira, 30 de setembro de 2013

Vida mansa






Sentou para escrever e respirou fundo. Mas quando ia começar a pôr na telinha o que lhe ia n’alma – enfim uma chance de usar essa expressão! –, o telefone tocou. Era a Geruza, amiga dos tempos do colegial (colegial era então o nome do ensino médio), que tinha descoberto seu telefone pela Norma, lembra da Norma?, que encontrou no supermercado. Ficou tão contente, a Geruza, e ela também, porque afinal não é todo dia que se recebe uma chamada assim para falar de um pedaço da vida que se desfrutou junto... Aí o celular chama. Pede licença à crise saudosista da Geruza e atende. É o bombeiro avisando que o orçamento do material ficou em seiscentos e oitenta pratas, o que somado à mão-de-obra dá um total de mil e quinhentas pesetas. Despacha o homem sem fechar nada, que isso não é coisa pra ser decidida apressadamente, e volta à Geruza, já recuperada e resgatada da beira das lágrimas (sempre foi tão sentimental, essa minha amiga) e agora conta novidades quentíssimas sobre a Marly, lembra da Marly? Pois é, minha filha, deixou o Leo, lembra do Leo?, e agora está sabe com quem? Você não vai acreditar.
Você – no caso ela – nem quer acreditar, porque isso não lhe interessa a mínima. Pra cortar o papo sem empanar muito a alegria da Geruza, diz que está atrasada para a hora do dentista e marca um encontro pro sábado à tarde no shopping.
Senta de novo para escrever e respira fundo. Na quarta linha precisa levantar para abrir a porta pra Rosa, a empregada, que esqueceu a chave. Pede a ela que atenda o telefone e a porta e anote os recados.
Senta de novo etc. Pela altura da décima linha chega-lhe aos ouvidos um estardalhaço do que parece um tiro, gritos e vidro quebrado que a arranca da cadeira de um salto, achando que chegou sua hora de testemunhar manchete da seção policial do dia seguinte. Corre à janela, mas ainda não vai ser dessa vez. Foi só um pneu estourado, os gritos são de dois motoristas alterados que nem sequer sacaram armas nem têm mesmo cara de quem vai sacar, e os vidros são lanternas em cacos sobre o asfalto.
Volta ao escritório e dessa vez respira fundo antes de sentar, pra ver se dá sorte e também pra reduzir o nível da adrenalina. Mais serena, senta de novo. Num relativo e abençoado silência de quinze minutos consegue fechar duas laudas no monitor, mas aí Rosa chama. É o carteiro, tem que assinar. Podia ser você mesma, viu? Quando for pra assinar... – ia dizendo, mas Rosa já sumiu da vista. O carteiro tem pressa e se irrita visivelmente porque ela não trouxe logo a caneta. O senhor não tem? – ela pergunta, e ele nem responde, se limita a lançar um olhar de desprezo de quem ouviu uma bobagem dessas que a gente nem responde. E como Rosa voltou para o tanque e de lá não escuta chamar, ela mesma vai para dentro pegar a caneta que teoricamente fica sempre no bloquinho junto ao telefone, no momento desaparecidos ambos. Procura dali e daqui, percebe que está mais preocupada do que devia com o estresse do carteiro, e resolve não se apressar mais. Como sói acontecer em tais casos, acha a caneta assim que relaxa a musculatura espatular e solta as cervicais. Volta à porta, à qual o carteiro se recostara acintosamente e agora coçava a barriga com aparente volúpia. Pega a folha amassada que ele lhe estende e assina bem devagar, pra ver a reação dele, que lhe dá as costas com a brusquidão de quem odeia.
O telefone toca, e como passava por ele bem na hora, atende. Não devia, porque é tia Malu, a solitária, que precisa contar a alguém o que de rotineiro lhe aconteceu na véspera, as gracinhas de sua cadela decrépita e a evolução dos males que achacam sua vida, o que leva em média quarenta e cinco a sessenta minutos cravados. Mas o que significa esse tempo, afinal tão curto, pra quem trabalha em casa, nessa vidinha mansa – uma vantagem que não é pra qualquer um, não é mesmo? É sim, tia, ela murmura abafando um suspiro. Nada como ter uma sobrinha tão boa como você, você sempre foi uma pérola, e me conhece tão bem, sabe desta minha vida, como fico sozinha, você nem imagina. Os filhos são todos muito egoístas, só pensam em suas famílias, suas ocupações... Têm que ganhar a vida, tia Malu – mas tia Malu não escuta, toda mergulhada em seus queixumes. Corta a arenga com um beijo e volta ao computador.
Onde estaria mesmo? Nem bem reencontra o fio dos pensamentos, ouve a campainha de novo, mas dessa vez decide ignorar tudo que não seja o texto a sua frente. Três minutos depois, porém, Rosa lhe aparece com uma cara estranhíssima, seguida de um sujeito atarracado e armado e de outro, comprido e de touca ninja. 

domingo, 29 de setembro de 2013

Conversa sem muito sentido




Antigamente eu me aborrecia quando o cós de uma saia ficava muito amassado na reentrância da cintura. Agora tenho mais com que me aborrecer.
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Hoje encontrei anotado numa orelha de apostila: “o que é espontâneo vive para sempre”.
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Naquele dia, precisava assistir ao jornal das quatro, que ia transmitir uma entrevista de Cosme, meu colega de faculdade. Nos tempos da universidade, Cosme era um adolescente magrinho, moreno, descendente de índios do Amazonas; meio rebelde, inquieto, de olhos negros puxados. Naquela altura, porém, já se tornara um caboclo barrigudinho de barbas compridas e grisalhas. O que não me saía da cabeça era que não seria justo deixar de vê-lo naquele dia. Porque talvez ele não vivesse muito mais. Porque talvez eu não tivesse muito mais para viver. Um mês depois recebi a notícia de sua morte.
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Tudo que se consegue saber do futuro com relativa certeza é o que a meteorologia prevê. O que é bem pouco, tendo em vista o percentual de erros na previsão do tempo.
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O mais alto a que consigo chegar é quando procuro de todo coração entender alguém. Nesses momentos me sinto no nível dos cristais de chuva.
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Deve-se perder o presente em nome do futuro?


terça-feira, 24 de setembro de 2013

Verdade e liberdade

Tantas verdades nos apelam, tanta beleza há na vida!
É preciso viver a liberdade.

segunda-feira, 16 de setembro de 2013

Sobre um conto de Cortázar




 Um tigre chamado palavra

A palavra e o sonho são atalhos de acesso ao inconsciente. Cada um a seu modo, guardam um vínculo com a imagem. Na linguagem do sonho as palavras se cristalizam em imagens, porque o caminho que elas percorrem é o da contramão da estimulação: do neurônio investido de volta à percepção. O sonho, a via régia para o inconsciente de que falava Freud, consiste de um conteúdo manifesto de imagens e às vezes palavras que são como recortes de uma colagem, fora do contexto regulamentar em que funcionam na linguagem.
Em “Escritores criativos e devaneios”, de 1908, Freud observa como
O escritor criativo faz o mesmo que a criança que brinca. Cria um mundo de fantasia que ele leva muito a sério, isto é, no qual investe uma grande quantidade de emoção, enquanto mantém uma separação nítida entre o mesmo e a realidade. A linguagem preservou essa relação entre o brincar infantil e a criação poética.
Júlio Cortázar pode ser considerado um exemplo de generosidade no que diz respeito à liberdade que se concede em seu texto. O clima onírico em que muitas de suas narrativas se desenvolvem está especialmente presente em alguns contos, em que o texto é condensado em palavras-imagens sem prejuízo da literariedade.
No conto “Bestiário”, a narrativa começa num clima que seria familiar e confortável. A menina Isabel, de nove anos, é convidada para as férias em casa dos Funes, no campo. A mãe e Inês, supostamente sua babá, relutam em consentir que ela vá, embora isso já tenha acontecido antes. O comentário “nem é por causa do tigre” acende um alerta: não é usual que uma casa de campo abrigue um tigre. Alguma coisa está portanto fora de ordem.
A expectativa de Isabel quanto às férias, o primo Nino e a viagem, toda descrita em imagens que parecem flutuar no texto, independentes umas das outras, são como tomadas de um filme. É pelo olhar da menina que Cortázar abre caminho para justificar e instaurar o não sentido.
O conto transforma um período de férias no campo em uma aventura que envolve figuras pulsionais: Isabel, fascinada por sua tia Rema, de mãos erogênicas; o marido de Rema, Luís, alienado nos livros e nas divagações intelectuais; um inimigo-recalcado, figura do desprazer – o cunhado Nenê, opressor e lascivo.
O ambiente se define através da percepção de Isabel, que com seu primo Nino se ocupa dos brinquedos que a casa triste dos adultos lhe oferece e tira disso todo o partido possível para sua idade. Sua alegria vem de tia Rema e suas intuições se consolidam “na hora da penumbra”, estado entre a vigília e o sono, mal-dormido por causa do calor e dos mosquitos. Com seu repertório infantil, a criança desconhece a linguagem da paixão, mas intui o alcance dos gestos que percebe.
O tom da história é catalisado pelo tigre invisível, alegoria da morte, que se esconde cada dia em um cômodo da enorme casa de campo. O tigre vai ser citado em diversas passagens, de modo que ninguém – autor, moradores da casa ou leitores – se esqueça de sua existência. Enquanto o capataz não avisa onde está o tigre naquele dia, ninguém sai de seus aposentos ou circula pela casa. Depois do aviso do capataz, um aposento ou área do jardim fica interditado por sua presença.
Há um enigma, figura muito cara a Cortázar: a explicação fica em aberto, o que exclui o conto do rol das histórias de mistério. Nem o autor menciona qualquer fato capaz de desvendar essa presença, nem o leitor estaria autorizado a criar uma hipótese de explicação para ela, pois lhe faltam dados, mesmo apenas entrevistos. 
A presença do tigre, diariamente lembrada e localizada, parece ser aceita pelas crianças – e adultos – sem que aparentemente perturbe a ordem da casa. A casa é grande o suficiente para acomodar o tigre, os moradores e seus interesses. Mas essa é a explicação formal de sua presença, a satisfação dada ao senso comum, porque, ao mesmo tempo, ele representa a possibilidade do pior e é uma ameaça latente à tranqüilidade da casa.
A história é um drama com doses de violência, sexo e ciúme que permanecem protegidos pelo silêncio do olhar infantil, assim como o tigre permanece oculto. O tigre é um significante perfeito, porque seu significado é ambíguo o bastante para dar o tom da história e arcar com todo o peso do que poderia torná-la uma narrativa “imprópria para menores”. Ao mesmo tempo, como o clímax aponta, ele fala também de uma pulsão destrutiva capaz de ser mobilizada até mesmo por um impulso amoroso.
A tristeza da tia, assediada e oprimida pelo cunhado, mobiliza a menina e a desperta para a possibilidade de uma solução que envolve o tigre, do qual a família todos os dias tem que se proteger. Por um ardil, ela trunca a informação diária sobre o lugar onde está a fera e consegue que o vilão da história entre na biblioteca e seja devorado. Isabel não perde a inocência, pois não usou diretamente qualquer meio violento – ao contrário, seu impulso é muito mais lúdico do que sério –, além de conseguir a muda gratidão de tia Rema. Sem culpa, a menina põe o que seria um princípio de realidade a serviço da satisfação de todos, principalmente dela mesma. Longe de espelhar uma visão maniqueísta de justiça, a solução encontrada por Isabel apenas deixa que aconteça o inevitável: ela não quer castigar o homem mau, mas acabar com o sofrimento da tia que ama. De quebra, confirma-se o que dizia Freud sobre a ludicidade como antítese do real, já que, por um recurso ficcional, o tigre é apenas uma metáfora no texto.
O “final feliz” criado por Cortázar tem no entanto implicações que exigiriam uma pesquisa mais complexa. Ele levanta por exemplo a questão do poder opressor, da tirania, do primado da força. Fala de uma ética violada e remete a um conceito de justiça utópico, onde os adultos estão limitados pelas convenções estabelecidas. Essas convenções, que criam um mal-estar, abrem brechas ao exercício do arbítrio. O princípio do prazer representado pela menina ignora o impasse e faz uma ligação direta do desejo à ação.



Goldschmidt, G.-A. (1988) Quand Freud voit la mer. Freud et la langue allemande. Paris, Buchet/Chastel (p.16-7).

sexta-feira, 13 de setembro de 2013

Javier Marías, um autor querido









Javier Marías. Seu Rosto Amanhã. Trad. de Eduardo Brandão. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

Sob o rótulo da espionagem, o discurso sinuoso do espanhol de Madri Javier Marías nos leva à observação do ser humano com suas muitas caras. Já intitulado como “o mais inclassificável autor espanhol contemporâneo”, reponsável por mais de 30 obras, Marías parece ter-se superado com a tríade em foco, que compreende Febre e lança, de 408 páginas, Dança e sonho, de 360, e Veneno, sombra e adeus, com 616. Uma trilogia fascinante.
Narrar, não contar o que se sabe, dissimular; observar, saber mais que o que se pode perceber, tornar mais agudos os olhos da mente, perscrutar à exaustão a necessidade de ir sempre além das aparências.. Acima de tudo, saber decifrar e usar a linguagem, tema explorado por Alberto Manguel em Uma história da leitura, pontuado ainda na questão do tradutor, profissão do protagonista. O texto brilhante e agudo desses três romances relativiza verdades, explora o paradoxo e utiliza elementos presentes às narrativas de nosso tempo com mestria.
O narrador, chamado por vários nomes, embora de base etimológica comum – Jacques, Jacobo ou Jaime Deza, Yago ou Jack, para resumir – dificilmente poderia ser separado o próprio autor, já que existem dados biográficos comuns aos dois. Longe de sugerir uma fragmentação do personagem, essa pluralidade de denominações nos fala mais dos disfarces necessários a um espião e das dubiedades com que o protagonista se vê confrontado. É possível ainda ver nessas diferenças a preocupação, bem típica de Marías, de explorar variações semânticas da linguagem. Seja como for, o tom de conversa adotado na narrativa, a ironia e certo neo-barroquismo, que se nota na presença da polissemia bem utilizada, parecem também ligados à complexidade da própria vida e do comportamento das pessoas.
O enredo não seria complicado sem as variações inesperadas que o tornam divertido, incomum ou violento. Separado da mulher, Deza vai de Madri a Londres para atuar cno magistério e trabalhar na BBC. O professor Peter Wheeler, seu amigo, especializado em história recente da Espanha, chama-o a participar de um grupo de espionagem que nem a inteligência britânica conhece ainda. Mais secreto, impossível. O que caracteriza esses agentes é a capacidade de conhecer as pessoas e entendê-las por seus gestos e atos falhos, e até pelas expressões. Uma forma de tradução muito útil a quem precisa saber até que ponto se pode confiar em alguém. Ao mesmo tempo, uma habilidade invejável, já que qualquer um de nós gostaria de saber mais do próximo do que suas palavras e atitudes deixam transparecer. Seu rosto amanhã, título da trilogia, se refere a essa capacidade de saber até que ponto alguém seria capaz de mudanças ameaçadoras.
De história de espionagem, Javier Marías transforma sua proposta em reflexão profunda sobre o ser humano, sua capacidade de fabulação, volubilidade e recursos de observação, dos quais parecemos saber muito pouco. Indo mais longe, pode-se atribuir a esse romance ainda uma impressionante exploração dos recursos da linguagem, mas não só: há também a questão da intertextualidade, ligando suas referências à Guerra Civil Espanhola e à Segunda Grande Guerra Mundial e a autores como Orwell, Fleming e a seu personagem James Bond. Do romance, diz ainda Vinicius Jatobá: “o mais interessante em Marías, além de sua visão sobre o tempo e memória, é a lentidão de seu olhar: demora páginas sobre objetos, sobre pessoas, reflete, inventa relatos para logo desmenti-los e os substituir por outros; cita obras alheias – Orwell, Benet, de seu pai, o filosofo Julian Marías –
dialoga com Shakespeare, com Proust, com Borges; retoma, recorrentemente, temas e motivos anteriores, relendo e refletindo eles em contextos diferentes.”