A língua portuguesa, a do Brasil em particular, vai sendo carcomida
com rapidez e eficiência. No ritmo que vai, breve estará etimologicamente
irreconhecível, gramaticalmente liquidada e sintaticamente mais deformada do
que madame depois da décima plástica.
Não falo de expressões e regionalismos, que são parte da bagagem de
qualquer idioma. Também não me refiro à gíria, às conotações que vão colando
nas palavras naturalmente e só enriquecem a língua falada e até a escrita, dependendo
do rumo escolhido. Estou pensando é na leviandade com que se escreve em alguns
casos. Ninguém é obrigado a saber tudo. Mas dicionários e gramáticas existem
para tirar as dúvidas que surgem na hora de redigir. E para o caso de projetos
literários, existem técnicas, assim como para tocar piano e fazer massagem.
Somos todos ignorantes em muitas coisas. Passada a Antiguidade, mesmo
os mais sábios entre os homens seriam incapazes de dominar todos os campos do
conhecimento. Depois de séculos de avanço e efetivas conquistas, nossa ciência
não deve saber ainda meio infinitésimo da realidade. Isso explica por que o
conhecimento se tornou tão fragmentário, dividido em especialidades cada vez
mais restritas, e por que são necessários conselhos regulamentares ou
instituições que disciplinem cada setor. Excetuando-se os espertinhos de
plantão, todo profissional que se preza sabe disso e respeita as normas de sua
atividade.
Uma coisa no entanto me intriga: por que profissionais competentes em
outras áreas acham que para escrever um texto não é preciso mais que juntar
letras? Escrever um bilhete de qualquer jeito é compreensível e até perdoável,
se você estiver com muita pressa. Uma carta, um parecer ou um artigo exigem um
mínimo de decoro, assim como, com mais razão, fazer literatura.
Ouvi o contista Luís Vilela falar sobre isso, revelando que alguns
jurados de concursos literários eliminam certos textos "pelo cheiro".
Diante de um conto ou poema que comece mais ou menos como "o astro-rei
subia no azul do céu", só resta um rápido exame para verificar se o texto
em questão é uma paródia, gênero válido e digno de atenção. Não sendo assim,
pode ser empilhado sumariamente com 80% das obras recebidas, todas escritas no
mesmo tom menor. Falta atualização, conhecimento do métier, e muitas vezes o
mais comezinho conhecimento da língua. Inspiração é um conceito meio mágico e,
a não ser que se esteja falando do processo respiratório, em geral má
conselheira. Tem que ser servida com molho de autocrítica, lastro de leitura e disposição
para a pesquisa. Sem o que a gente pode se perder nos labirintos do verbo e ir
parar no limbo cinzento e viscoso onde o astro-rei sobe no azul do céu e os
autores sobem no telhado.