terça-feira, 24 de julho de 2007

Reflexões à margem da tese


Foto Robert Doisneau.

Meditação primeira

Mim não pode ser sujeito de nada, portanto é inculpável e não se justifica que eu – eu, sim, sujeita responsável por tudo que digo e faço – fique ruminando os fatos e peculiaridades afetas ao mim. Mas se mim é inculpável, será por ser pronome oblíquo ou menor de idade? Mas por que seria menor de idade, só por ser mim? Haverá alguma afinidade secreta entre a obliqüidade e a cronologia? Ou será que em vez da idade, o que pesa aí é alguma imputabilidade legal, tipo índio, criança ou doente mental? Seria mim um psicopata acoplado à minha pessoa-eu? Mim me dá sempre a sensação de que está de esguelha, me olhando meio à sorrelfa, dissimulado ou talvez envergonhado de não ser eu. Mim pode ser um invejoso por natureza. Bastava no entanto que mim assumisse seu lugar sem maiores complicações, pois ainda que coadjuvante é um personagem necessário ao bom andamento do destino e dos acontecimentos. Talvez seu embaraço venha de ser sempre tutelado por uma preposição, concordo que é um mico, mas fazer o quê? Sem ela, a preposição, mim estaria desclassificado, ameaçado de desaparecer para sempre na primeira ventania mais forte. A preposição é assim como se fosse sua roupa. Mais uma razão para se conformar com ela e se ajustar a sua condição: já pensou mim, que vive grudado no meu pé, ter que existir completamente pelado?



Meditação segunda

Fora é um conceito relativo, um advérbio de lugar que todo mundo sabe o que quer dizer e uma palavra cujo significado exato nos escapa por completo.
Posso por exemplo considerar o lado de lá de minha janela como o lado de fora, mas, estando eu do lado de lá das grades, não estaria do lado de fora, e sim dentro da área do condomínio onde se encontra meu apartamento. Por outro lado, o que fica além dessa área – a rua, a pracinha em frente e o jardim do prédio fronteiriço além do resto do mundo – constituiria então o espaço a ser considerado o de fora. Saindo do jardim do condomínio em direção à rua, esta continuaria a ser chamada de “lá fora”. Assim como o próprio jardim também pode ser considerado o lado de fora do prédio, estando eu nele ou não. Será então o conceito de fora “aquilo que fica a céu aberto”? Mas há terraços a céu aberto que pertencem a uma residência, ficando então o morador à vontade nesse terraço por se achar dentro da sua casa.
Levando adiante o assunto, digamos que estamos dentro de uma cidade chamada Rio de Janeiro e que além dos limites de seu município fica o fora do Rio de Janeiro. Também é verdade que estamos dentro de um país chamado Brasil - embora fora de muitos outros lugares - e que fora do Brasil é o estrangeiro. Mas um estrangeiro está dentro do seu país de nascimento e domicílio, donde se pode inferir que o estrangeiro também está, assim como eu, dentro e fora ao mesmo tempo.
Quanto às galáxias que povoam o Universo, não há certezas radicais quanto a indivíduos dentro ou fora de coisa nenhuma, mas para nós eles estarão sempre fora – exceto se nossas naves intergalácticas conseguirem chegar lá, caso em que teremos caído dentro da galáxia também, só nos restando na qualidade de fora o espaço infinito que não sabemos se é mesmo infinito. Se esse tal espaço for infinito e chegarmos a visitá-lo, amiguinhos, não nos restará mais lugar para ficar de fora, e a partir daí teremos que reformular nossos dicionários, gramáticas, vocabulário, organizações e instituições governamentais ou particulares, pontos de vista e sistemas de física e filosofia, apagar a idéia do fora, seus termos escritos, falados e derivados, além de toda e qualquer de suas representações físicas, mentais ou espirituais. Seremos a partir de então criaturas definitiva e irremediavelmente dentro seja lá do que for, podendo-se inferir daí a difícil situação dos claustrofóbicos e mais ainda a dos foragidos, aí incluídos depósitos em bancos de paraísos fiscais.

2 comentários:

Marco disse...

Como diria Millôr Fenandes: "Livre pensar é só pensar". Suas reflexões sobre fora me fizeram lembrar um filme antigo do Woody Allen.
Carpe Diem. Aproveite o dia e a vida.

Anônimo disse...

Bem...
1)Primeira meditação: mim não me preocupa; como você lembrou, ele é inimputável. Fico grilado mesmo (que gíria velha!) é com o "o". É, o pronome oblíquo de 3ª pessoa! Mim pelo menos tem cara de "palavra"; o parece uma interjeição!

2)Segunda meditação: como você bem observou, fora é o referente-dêitico que mais olha pro próprio umbigo.

Gostei do texto! Um abraço.