sexta-feira, 24 de agosto de 2007
Redescobertas
Encontrei um livrinho chamado Ilhas no tempo, de Ana Maria Machado, que reúne palestras e conferências da autora. Fala de livros, leitura e leitores, além de três personalidades, “modelos” que ela admira (e creio que nós todos): Ruth Rocha, Aluísio Carvão, Monteiro Lobato. Fala ainda de Robinson Crusoé, gancho para mostrar que é falsa a premissa de que os jovens não se interessam pela leitura.
Ilhas no tempo, o título, soa muito adequado a um fenômeno que parece ter tudo a ver com nossas vidas. Porque há um oceano de agitação, urgências, providências inadiáveis, telefones que chamam e têm que ser chamados, gente que solicita, precisa, pede ou manda. Intervenções de toda ordem que interrompem e alteram o ritmo e o tipo de dinâmica de cada um, que desviam a atenção que pretendíamos dedicar a outras coisas ou pessoas. Com que freqüência dizemos e ouvimos dizer que o tempo, o dia-a-dia de cada um, parece mais curto do que nunca, que não sobra nada, que não se consegue dar conta de tudo que é preciso fazer. O oceano do dia-a-dia nos engole, e afogados perdemos o pé e o fôlego e não chegamos a lugar nenhum senão aonde os outros – o sistema, a mídia, o mercado e até parentes ou amigos sinceros, mas às vezes equivocados – querem que cheguemos. E muitas vezes a lavagem cerebral é tão perfeita e eficiente que nos iludimos, achando que a vontade que nos mobiliza é nossa, quando na verdade estamos correndo atrás daquilo que esses outros nos convenceram a querer como sendo o melhor para nós. Modelos não faltam. E já que estamos no mar, seguimos a corrente sem dar em praia nenhuma.
O tempo no entanto, abstraídos os conceitos da ciência e da cronologia oficial, tem uma face amigável que é preciso descobrir e que não é senão a própria face de cada um de nós. Não se trata de fugir do mundo em que se vive, sem o qual não somos ninguém, no qual e para o qual temos muito a fazer. Mas de, “paralelamente, defender a própria bolha individual e íntima que deve cercar cada pessoa”, diz Ana Maria. E logo adiante: “Tentar recuperar o que Milan Kundera chamou de ‘o prazer da lentidão’.”
Não é fácil. Mas acredito que um pequeno truque pode ajudar: é convencer-se de que nosso tempo depende de nós, do uso que queremos fazer dele. E estabelecer como primeira meta a criação das “ilhas no tempo”. Para criar essas ilhas, é preciso parar de “correr atrás” e “conseguir se recolher um pouco, desenvolver a percepção embotada, desbastar as camadas de barulho e atordoamento, apalpar o mundo, sentir sua espessura, manter a conexão fundamental com o que é natural.”
Pode parecer muitas vezes que não estamos fazendo o que importa, o que é preciso fazer, o mais urgente. Ledo engano. Estamos fazendo exatamente o que importa acima de tudo: estamos sendo. E para quê? Para melhor entender e interagir com os outros seres. Para viver à altura do mundo e da vida que nos foi dada. Ou, usando um termo muito ouvido em nosso tempo, equilibrar o custo-benefício de nossa existência.
É uma questão de escolha: ser o replicante daquele(s) que se idealiza(m) e se alienar para sempre de si mesmo, seguindo a correnteza dos modelos fugazes que nos propõem aos montes a cada dia, ou buscar a si mesmo nessas ilhas criadas no próprio tempo – porque eu quero, acima de tudo, fazer desabrochar minha visão de mundo, sem a qual não tenho outra contribuição a dar a este mesmo mundo a não ser engrossar as legiões de clones náufragos que “correm atrás” todos os dias e todas as horas da vida.
Ora, direis, e os livros? Os livros, como outras atividades criativas e enriquecedoras, vêm na esteira dessa atitude fundamental. Fazem parte do processo de aperfeiçoamento e de crescimento de cada um. Mas cabe a nós decidir o que fazer do tempo, que não pára.
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4 comentários:
Ola, o Halem indicou seu blog pq tb li (e não reli) A invenção de Morel, e escrevi uma coisinha de nada sobre ele; então vim aqui. E que delicia seu texto! Fiquei foi humilhada; meu textinho ficou ainda mais coisinha de nada... rs. E fiquei num contente em conhecer este teu espaço com tanta coisa boa. Um abraço.
Adelaide, e o sofrimento que é fazer as pessoas em torno de nós se convencerem de que não somos uns afadigados, uns desesperados por "fazer o tempo render"? Como você bem observou, essas "pressões" tornam o trajeto da existência bem chato às vezes. Não li este livro da A. M. Machado embora aprecie muito a autora e tenha descoberto recentemente seu lado de ensaísta, quando li o Texturas, do qual gosto muito. Mais uma dica colhida aqui pra anotar na agenda. Um abraço.
Tua prosa é sempre muito reflexiva. Gosto mesmo de vir aqui. Beijo
Milena, apareça pra trocar idéias. Você não tem um blog? Um beijo e obrigada pela visita.
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