sexta-feira, 29 de junho de 2007

Coisas do Rio


Centro Cultural Banco do Brasil, cúpula do hall.

Um certo atrevimento.
Uma ave desafiadora na proa de um barco.
Um poodle miniatura brigando com seu pé.
Passear com o cachorro na rua e deixar lembranças dele em todas as calçadas.
O poder dos pivetes de qualquer idade.
O descaramento de sair sem casaco num frio de dez graus.
Ignorar o guarda-chuva em qualquer tempo.
Cotias (em extinção) que não fogem das pessoas.
Saídas criativas de quem menos se espera.
Virar padrinho de um garoto de rua, ficar inteiramente eufórico por isso e depois perder o afilhado de vista.
Improvisar; programar só pra não cumprir.
Perder a hora marcada.
Conviver com o caos e a promiscuidade das ruas, dos bares, das boates com uma ponta de compassividade e uma leveza que recria pessoas e ambientes.
Apaixonar-se por um cachorro de rua e levar ao veterinário, tosar, dar banho e comprar ração.
Apaixonar-se de repente por alguém que nunca viu.
Fazer amizades instantâneas como quem mora no paraíso.
– Tudo é coisa de carioca.



Bom é ser magrinho




Nada como ser magrinho. Aproveito e entro num regiminho pra tirar as gorduras extras também do corpo. Não sou xiita em matéria de comida. Mas obedeço com certo rigor a alguns princípios sem os quais parece bobagem fazer dieta. O primeiro deles é abandonar as frituras.
· Carboidrato sem prazer, nem fucking. Ou é coisa muito boa, e nesse caso a gente se concede uma mordidinha pra sentir o gosto aos domingos e feriados, ou é assim-assim e não merece exceção.
· Verduras. Não tenho medo de ficar cor de Hulk, aproveito que gosto e como mesmo.
· Frutas, sucos e saladas mil. Se disserem (sempre alguém diz) que suco de laranja engorda, que abacate não deixa emagrecer, que banana engorda e faz crescer, não deixo de consumir nenhum deles. Manero, mas não abandono. Não sou partidária de abstenções absolutas, a não ser em casos como alcoolismo ou drogas mortíferas (embora não consiga abandonar de todo o cigarro).
· Perder peso devagar é o melhor meio de não recuperar o que se perdeu, a menos que se termine um regime pra fazer outro de engorda logo a seguir. Melhor também pra evitar um estresse desnecessário, já chega o que a vida impõe.
· Compensar a comida a menos com mais atividades que dêem prazer. A vida não merece que se abra mão de tanta coisa boa como o amor, o convívio com as pessoas a quem se quer bem, uma atividade criativa que não precisa visar o lucro ou a fama, um bom filme, peça ou livro. O trabalho pode ser uma das grandes alegrias da vida, quando se gosta do que faz.
E vamos viver a vida.

terça-feira, 26 de junho de 2007

Digressões alternativas



Quem não reflete por uma lógica que não seja a da razão; quem não vê nada além do próprio ressentimento; os sem indulgência, que não perdoam e são incapazes de sentir com o outro; os que têm sempre razão; os indiferentes; quem vira a cara pra não ver; quem pode e não ajuda, não suaviza, não dá a mínima – não sendo vilão de novela, ou é de uma burrice sem remédio ou não tem noção de ridículo.


Um dia que poderia ser igual aos outros pode virar uma aventura improvisada, quando se resolve ficar na praia, esquecer o relógio, criar o puro acaso que pode levar a encontrar alguém inesquecível; pode-se também fugir para o cinema, matar o trabalho, comprar móveis novos ou dormir até as quatro da tarde e depois ir dançar como se nada tivesse acontecido. Qualquer desses casos é um ganho para a biografia. Principalmente se resultar em demissão do emprego.


Há quem esteja programado para o desempenho de horas exatas, prestação de contas mesmo não solicitada, e o meticuloso cumprimento de toda e qualquer tarefa a seu cargo, ainda que a mãe morra ou o filho seja atropelado. Nesses casos mais severos, uma emoção liberada costuma ter o efeito de dois copos de caipivodka tomados de uma tragada. Razão pela qual certas pessoas preferem engolir a emoção com o café da manhã, sem atentar para o fato de que é impossível digeri-la, porque não se assimila ao bolo alimentar e uma vez engolida vira angústia, cresce dentro da barriga e atravanca o peito até a altura da garganta. Não atentam também para o fato de que, assim que o sono bagunça a programação do dia, ela pode voltar à tona como matéria-prima de pesadelo.
A boa notícia é que tem cura. Basta fazer amizade com a emoção e perder o medo dela. Só é preciso um bom treinamento.


Chorar sem se perder no desespero é como ser um regato secreto fluindo manso entre as pedras.





Umbigo: quase tudo que sei sobre ele



“Umbo, onis [...] provém do indo-europeu ombh, de onde também procede o termo grego omphalós, com o qual se formaram todos os compostos de uso corrente em linguagem médica, relativos a umbigo, como onfalite, onfalocele, onfalorragia, onfalotomia, onfalotripsia etc. De uma variante de ombh no indo-europeu, nobh, derivam o alemão nabil e o inglês navel, indicativos de umbigo.”
O texto é de um site médico. Mas o tema interessa a quase todo mundo, mesmo que seja só no terreno da linguagem e da etimologia.
Explicar a origem do termo pode ser interessante e útil, acima de tudo porque acena com detalhes reveladores e muito mais antigos do que a correta visão científica do apendicezinho com que todos nascemos e cuja cicatriz deixa um buraco menos ou mais estético bem no meio do ventre.
O termo já deu muito pano pra mangas, sobretudo depois que Sigmund Freud, em sua Interpretação dos sonhos, descreveu o que ele chamou de “o umbigo do sonho” – o momento do não-sentido, quando a história ou a imagem sonhada perde o pé da verossimilhança e abre espaço ao desconhecido, estranho e espantoso ambiente que nem o dito Freud conseguiu explicar: o inconsciente. Papai Sig já prestou um serviço inestimável ao mundo e à ciência com a descoberta de que a ele, o inconsciente, pode ser creditada uma legião de fenômenos e acontecimentos que de outra forma teriam que ser atribuídos (e ainda o são, apesar de tudo) a encostos, atuações, magia e outras fantasias que vêm ocupando corações e mentes e enchendo os bolsos de tantos semelhantes nossos pelos séculos afora.
Esse é o sentido mais rico da palavra, porque deixa entrever, ou entreperceber, alguma coisa de que ainda não se ouvira falar de modo tão direto e que, se não serve como sumidouro de problemas ou panacéia para todos os males do espírito – e até do corpo –, ao menos sinaliza que o essencial é muitas vezes (ou será sempre?) invisível para os olhos, como já lembrava o principezinho de Exuperry. Tudo bem, a intenção de Exuperry era menos objetiva. Mas a citação fits, porque o Pequeno Príncipe é um livro basicamente escrito com a imaginação e o coração. Um doce pra quem responder de onde procedem essas duas instâncias, mensageiras notórias do desejo humano.
Já me disseram que escrever sob a égide do umbigo talvez não leve a bons textos, porque o termo alude a tudo que diz respeito ao narcisismo e um texto composto sob essa inspiração sempre se arrisca a ser vazio de interesse para eventuais leitores. Respondi que respeitava o ponto de vista, mas que esse umbigo vai bem além do meu próprio. Todo mundo é dotado de algum narcisismo, necessário ao bom desenvolvimento, que só prejudica se assumir proporções patológicas.
Além disso, escolhi o nome do blog e do livro pensando no sentido freudiano da expressão. A idéia era essa, sem qualquer pretensão que não fosse isso mesmo: se Sig bispou um furo no sonho, por que não aproveitar a deixa e tentar achar o furo que levasse ao não-sentido, a parte mais importante de todo texto? Isso não significa um texto incompreensível, mas um texto que admite várias direções. Se o caminho estava desbravado, por que não entrar por ele?
Nenhum texto de ficção ou poesia tem um só sentido – tem sempre vários ou muitos. Por isso mesmo, porque não é uma “túnica inconsútil”, todo texto tem furos, emendas, costuras. O palimpsesto, imagem ideal de um escrito desses gêneros, deixa vazios entre suas camadas. Pensando nisso, sobretudo nos contos do Umbigo do Sonho, tentei tornar mais claros esses vazios, chamar a atenção para esses buracos. Se consegui fazer o que pretendia é outra questão, e ainda que não tenha conseguido, a idéia continuaria de pé.
O umbigo, esse buraco à flor da barriga, tem também seu lado engraçado. Leiam só o que encontrei:
“O pesquisador australiano Karl Kruszelnicki solucionou um problema realmente intrigante. A origem dos fiapos de tecido que se acumulam no umbigo. Para tal pesquisa ele estudou o umbigo de mais de 4.800 pessoas.
Os resultados do estudo:
· 2/3 das pessoas têm fiapos no umbigo;
· pessoas mais velhas tem mais fiapos no umbigo;
· maior incidência em homens do que em mulheres;
· existe uma relação entre a cor dos fiapos e a cor da pele; pessoas de pele clara têm fiapos claros;
· o tipo de pele não afeta a incidência de fiapos;
· a presença de fiapos está muito ligada à quantidade de pêlos na pessoa: muitos ou poucos pêlos diminuem a quantidade de fiapos;
· não existe relação com o porte físico;
· o azul é a cor predominante dos fiapos (assim como as roupas).
A pesquisa rendeu um prêmio IgNobel, que é conferido aos estudos mais estranhos e esquisitos (que não podem ou não devem ser reproduzidos).”
Como todos os temas do mundo, o umbigo nos lança seus sinais. Que os veja quem tiver olhos de ver.

sexta-feira, 22 de junho de 2007

Testando o óbvio


A. Peticov.

Você esbarra num sujeito de um metro e oitenta e dois, cabelos revoltos e ondulados ao vento, pele morena, olhos atentos em você, assim sem mais nem menos; e se ele fala com uma voz profunda e maviosa e diz perdão com um meio sorriso de dentes impecáveis e ainda por cima você sente o hálito fresco e perfumado, e ele é muito mais charmoso que modelo de publicidade de pasta de dente; e se ele então sorri por inteiro e pergunta se você está bem, você

a) diz que sim, obrigada;
b) diz que ele não se preocupe e fica ali, encarando o belo sem sair do lugar;
c) não consegue dizer nada e sai meio fugida.

Se numa festa em que você só conhece uma pessoa e ela não fica junto de você, te apresenta a um grupo e sai por aí, você

d) sorri amarelo e espera que falem com você;
e) puxa assunto sobre qualquer bobagem que lhe vem à cabeça;
f) pede licença delicadamente e sai pra um canto da varanda.

Se você vai shopping e tem que escolher um vestido pra assistir ao casamento de sua melhor amiga, você

a) escolhe um tom vibrante que chame a atenção, porque quer estar bem bonita;
b) procura um modelo discreto, caríssimo e elegantésimo que derrube todas as peruas presentes;
c) escolhe um tom discreto, um modelo alinhado mas simples, porque acha que só quem deve chamar a atenção nesse dia é a noiva.

As respostas são óbvias e dispensam explicações.
Agora em qualquer dos casos a resposta c – também obviamente – denota certa ou muita timidez, delicadeza de espírito daquele tipo que deixa você invisível ou alguma fobia social.
Tu sofre, né, amiguinha? Te cuida, viu? O mundo costuma ser muito cruel pra tais pessoas.


quarta-feira, 20 de junho de 2007

Impressões a posteriori



O que se quer dizer é sempre o indizível. Por isso a gente nunca pára de falar, inscrever, escrever ou pichar, entre outras coisas.

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Acho que felicidade é buscar sempre novos ângulos do que se é e inventar novos meios de fazer as coisas, principalmente as mais chatas.

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O mais difícil de tudo é aprender a jogar bem o próprio jogo. As regras são muito obscuras.

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Acho que amar exige tanto da gente que, se a gente não se amar o bastante, não agüenta.



Há pessoas espumantes, leves e doces. Há gente frutada, gente encorpada, madeirada, concentrada. Uns irradiam calor e conforto orgânico. Outros provocam dor de cabeça, acidez e gastralgia. E há pessoas que quanto mais vivem, melhor aprendem a viver. A gente humaniza muito os vinhos.






Estou lendo O vôo da madrugada, do Sérgio Sant'Anna. Não percam, vale a pena. É um livro de contos, textos com vida própria. Impressiona a unidade que ele conseguiu imprimir ao todo. Mais ou menos como uma família de muitos membros, onde nenhum é muito mais feio ou mais bonito que os outros, mas todos e cada um têm personalidades atraentes, cada qual a seu modo.
Isso não quer dizer que os contos de Sérgio sejam encantadores por serem light. Às vezes nem são gostosos de ler. Há em cada um deles um silêncio profundo, uma textura de treva que torna tudo natural, que chega mais longe do que a narração de um fato ou estado. Uma espécie de insondável que no entanto soa muito familiar ao leitor ao mesmo tempo em que o assombra um pouco. Os fatos são meros pretextos para chegar mais longe, e ele chega. Às vezes incomoda, outras comove ou assusta. Sempre contido, a mão hábil, a palavra leve, uma escritura elegante, sem apelações, nenhum excesso – e um efeito de mestre.
Quando leio um texto assim, fico um pouco ouriçada e me mudo por um tempo para o clima em questão. Tenho que me policiar pra não parecer meio maluca, mas não resisto. Certas leituras exigem uma resposta, sem o que a gente estaria perdendo muito de seus sentidos. Mesmo porque cada um de nós é uma mistura de dia e noite, e minha metade dia às vezes acorda de muito má vontade, vira pro outro lado e continua dormindo.

domingo, 17 de junho de 2007

Paralelos










Imagem Blue Molleskin.
 


A denominação do grupo se deve ao fato de que os escritores cariocas andaram sempre caminhando separados, cada um na sua, embora com o mesmo objetivo, e a idéia era contrariar a geometria promovendo o encontro desses paralelos.

Foi uma idéia que deu certo, facilitou a divulgação do trabalho desses meninos, que de outro modo levariam mais tempo e enfrentariam obstáculos difíceis, às vezes quase impossíveis, de se vencer sozinho. O grupo esteve na Flip, ajudando a selecionar autores que participariam da oficina de novos talentos do Milton Hatoun. Não é pouca coisa. Em novembro a editora Agir lança um livro tipo revista com os contos de 17 jovens da Paralelos.


Não aceitei o convite de Augusto basicamente porque, além de não estar enquadrada na categoria "jovens autores", me faltaria tempo para assumir qualquer compromisso naquele momento. Mas gosto tanto deles, que a visão do grupo reunido me enche de alegria e certa ternura.

quarta-feira, 13 de junho de 2007

O argentino de Arraial d’Ajuda



Se eu soubesse que pedaço da África me esperava em Arraial d’Ajuda há tanto tempo, teria chegado antes.
Sabia dos mares verdes da Bahia, Salvador do mercado, do elevador Lacerda, capoeiras, acarajés e vatapás - dos quais tanta gente de má-fé me dizia que ficasse o mais longe possível, e eu felizmente não dei a mínima e convivi com eles na mais completa intimidade do tubo digestivo e só me fizeram bem, só me deram alegrias e prazeres inesquecíveis. Itapoã, Abaeté, as igrejas, Pelourinho, tudo isso eu sabia. Sabia portanto que a África estava lá de corpo presente em sabores, ritmos e rituais, nas roupas que fazem um dos encantos de lá, no temperamento negro daquele povo lindo, que celebra a vida todo o tempo. A África da Bahia é um continente de alegria, é a realização do melhor dos sonhos do cativeiro.
Mas o pedaço da África que se espargiu docemente em Arraial d’Ajuda foi o mais suave. Lá se pode refletir sem despertar assustado com cento e tantos decibéis explodindo de um trio elétrico acionado em hora inesperada. Lá se pode contemplar. Aliás, Arraial d’Ajuda é fruto de uma contemplação constante - do mar, das praias, do céu aberto, amigável até na tempestade, dos povoados e casarios coloridos que parecem de mentira para adoçar a vida. Pintores, escultores, fotógrafos, decoradores, sutis chefs de cozinha e donos de restaurante com vocação para a beleza e os prazeres da gula encontraram lá a química do clima ideal e as pessoas mais cordatas e suaves para ajudá-los na missão de tornar essa África baiana um paraíso diferente de todas as idéias preconcebidas que a gente possa ter sobre o que seja o paraíso.
E não fica só nisso. Logo ali, pouquinho adiante, fica Trancoso, cidadezinha quinta-essência, onde Portinari encontraria nos Coqueiros o cenário mais perfeito para passear a poesia e a paz de seus cavalos pela praia. Depois de experimentar o mar de Espelhos, Coqueiros e Nativos, nada mais indicado e salutar que subir para o Quadrado, a grande praça das delícias, e sentar nas mesinhas espalhadas debaixo de árvores maternais, em volta do imenso gramado plano com a igrejinha branca, irresistível, lá no fundo, recortada contra um céu esbanjado que se exibe com certo descaramento, sabendo que o mar está logo ali embaixo.



Walter Merlini é um pintor argentino, conhecido em seu país, onde foi um livreiro influente e de onde saiu por causa da recente crise econômica. Atualmente ele e sua mulher, Sandra, são donos da pousada mais charmosa de Arraial d’Ajuda, a Tubarão, ao mesmo tempo ateliê e exposição permanente dos quadros dele e da decoração descontraída e poética de Sandra. A pousada, onde se pode ouvir boa música da discoteca de Walter e fazer a sesta na rede da varanda de seu aposento, fica no largo onde termina a rua Bela Vista, que começa ao lado da matriz da Ajuda.

quinta-feira, 7 de junho de 2007

Pensamentos deslizantes e outras perturbações


Paula Mastroberti. Mendigo Quix.

Fulano usa terno e gravata.
Beltrano usa camiseta e sandália de dedo.
F é sério e trabalha dia e noite. Até o lazer de F existe em função dos negócios.
B solta pipa o dia todo e à noite toma cerveja fiado.
F tem bens de família.
B nunca teve família.
F estudou em Londres e na Alemanha, é PhD em economia e ciências políticas.
B estudou até o meio da segunda série e foi avião do tráfico.
F é politicamente correto em palavras e ações.
B é objeto de políticas sociais e come na Central a R$ 1,00.
F é cidadão exemplar e zela pela higiene e segurança nas áreas públicas.
B mija na rua.
F passa as férias em Paris e Angra.
B foi ao piscinão um fim de semana aí.
F tem passagens aéreas e estadia paga em hotéis cinco estrelas quando viaja a serviço.
B dorme embaixo da marquise do supermercado quando bebe demais.
F deu um rombo de 200 milhões há dois anos, mas ninguém ficou sabendo.
B foi em cana porque bateu a carteira de um gringo no calçadão.


Paula Mastroberti. Sancho Shop.

Alguns amigos defendem a idéia de não deixar os livros criarem poeira na estante. Acho muito simpática a idéia de agitar novos leitores, mas desisti de seguir as campanhas pela alta rotatividade dos livros. O máximo que consegui foi marcar um prazo de dois anos para os três que tenho preguiça de começar, mas que ainda não perdi as esperanças de ler; e para mais uns tantos que os outros acham que eu devia ler; ou mesmo uns três ou quatro que eu acho que teria obrigação de ler mas nenhuma vontade. Não são muitos, e se nenhum deles me vencer pelo cansaço, começarão a circular depois de esgotado o prazo. Mas os outros, que li e quero sempre reler, ou que gosto de folhear como quem faz festa num gato de estimação, esses – tsk, tsk, tsk – desculpem os defensores da doutrina, mas não vou liberar não.

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Dos anos que ela passou comendo alface com arroz integral restaram-lhe uma figura comprida, um pouco desengonçada, e o apelido carinhoso de página virada.

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Encontrou-a assistindo à sessão da tarde com um saco de amendoins na mão.
— Ah, é você (olhar de desdém). Então, pensou no que eu te disse?
— Não.
— E veio aqui fazer o quê? Buscar o carro?
— Não. Estou de moto.
Curto silêncio.
— Vim olhar de novo essa casa. Vim...
— Você nunca se preocupou com a casa. Vivia dizendo que era apertada, que...
— Não exatamente – ele diz, voltando-se para ela. Não é pela casa.
— Então é o quê? Os móveis? Vai querer ficar com algum?
— Não. Por que não vamos ao cinema? Está passando um filme do Almodóvar ali no Estação.
— Já vi. Nem é tão bom assim – ela respondeu, mastigando sem tirar os olhos da TV.
Ele deu meia-volta e saiu sem fazer barulho. Nunca mais voltou.

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Adivinha quem vem para o jantar.
Acertou quem disse a vitela desfilando um longo de molho de cogumelos.

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A culpa dos conflitos de agora entre extremistas de todos os quadrantes da Terra é do Criador. Se ele tivesse inventado a comunicação por satélite em vez de descansar no sétimo dia, essa fase convulsiva da história já estaria encerrada, porque das duas uma: ou as tribos já teriam se estranhado tudo a que tinham direito e se acostumado com os usos umas das outras, superando os conflitos étnicos e religiosos e guardando as energias para brigar por dinheiro e suas metonímias; ou o mundo o já teria ido pelos ares (gulp!) e a gente nem teria nascido.

‘Prefiro o rumor do mar’



Prefiro o rumor do mar é o poético nome de um filme dirigido pelo italiano Mimmo Calopresti, selecionado para a 24ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo em 2000. O nome do filme, que aí no cartaz aparece com a palavra "barulho" em vez de rumor, não bate com o título da versão a que assisti.
Dadas as velozes condições em que vivemos, um filme já meio antiguinho. Tive a sorte de ligar a tv no momento em que começava e poder assistir a um raro exemplar de cinema sem efeitos especiais nem atos terroristas gratuitos como os que passam aos montes na telinha. Nem me lembro de ter ouvido falar dele. Talvez seja eu a desinformada. Mas desconfio que nem passou nos cinemas daqui.
Ganhei o dia. Gosto de histórias que façam refletir, e essa é uma. Um jovem calabrês chamado Rosario vem trabalhar em Turim, onde encontra outro adolescente, Matteo, de uma família de gente blasé. Aos poucos descobre que, entre os adultos, até os gestos de aparente solidariedade escondem um comodismo esmagador, e que mesmo quem parece disposto a ajudá-lo, ou simplesmente deixar que viva em paz, está na verdade à espera de bajulação e submissão, moedas de troca que ele não traz de sua terra. Diante do individualismo, dos hábitos egoisticamente cruéis e da frieza das pessoas de um meio tão diferente de seu lugar de origem, ele se encolhe como um caracol na casca e sofre calado até o momento em que, não agüentando a barra, volta a sua aldeia natal.
Um roteiro singelo para mostrar a imensa complexidade de personagens muito reais e o sofrimento que os homens infligem aos outros e a si mesmos e nome de uma forma equivocada de narcisismo. Sem dramalhões nem inverossimilhanças, o medo de amar e os álibis convencionados como defesa contra a aproximação de outro ser humano estão todos lá. De negação em negação, chega-se ao beco sem saída da pior das solidões.
A comentarista Elizabeth Missland dá outras informações sobre o diretor Mimmo Calopresti, que aos 45 anos exibiu Prefrerisco la rumore del mare em Cannes, na mostra Um Certo Olhar.
Mimmo está bem consciente do que pretende com sua obra, filmada em 19 semanas entre a Calábria e Turim: “Devemos ter coragem para enfrentar o público e a crítica. O Norte e o Sul são pontos cardinais de uma geografia sentimental, uma classe burguesa confusa e pedante, uma geração jovem à procura de sua identidade, mas sobretudo a história de pessoas que reivindicam o direito de serem donas de seu destino.” Essa diretriz está subentendida no verbo escolhido para o título do filme: “eu prefiro” – “Palavras um pouco insolentes, que significam claramente gosto disso e não daquilo. Cada um de nós tem, num dado momento da vida, a chance de morrer e recomeçar. Em meu filme, a ocasião justa é o encontro desses dois jovens, tão diferentes cultural e socialmente, mas capazes de se respeitar, de desencadear nos adultos uma crise, ao desmascarar suas hipocrisias e suas fraquezas.”
Outros filmes de Calopresti exibidos em Cannes em 1995 e 1997 são La seconde volta, selecionado entre outros, e La parole amore esiste. Alguém se lembra de tê-los visto aqui no Brasil?