terça-feira, 27 de novembro de 2007

O armário e sua alma

Quieto ali, o armário de espelho enviesado, sisudo na sombra ao fundo do quarto, e o céu insondável a se contemplar no cristal como um longínquo olhar perdido.O guarda-roupa reflete mais do que sua vida cheia, elegantemente contida nos ângulos bem-acabados. Não seria mesmo de admirar se lhe ouvissem um pigarro de repente, uma tossezinha ligeira de cavalheiro distinto. Excelentíssimo senhor guarda-casacas, apesar de tudo carregando o céu na alma.

Pensaria, se um armário pensasse, nos brocados, pelúcias, casimiras inglesas e sedas italianas, sobretudos, peles, longos e demilongs que o teriam habitado. Dois séculos passados, outras terras, outras gentes. As festas, as danças, tudo tão longe e diverso. Uma farra de minuetos e valsas vienenses.

E as cenas, ante o espelho audaz e frio? Amores idos e bem vividos, impressos em luxúria, as faces desarmadas a todo flagrante, os corpos em movimento, contornos dotados de vida daquele tempo – não seria diferente de agora. Então o espelho audaz de faces desarmadas seria, além de tudo, um mordomo solene e discretíssimo, inteiriçado, enfarpelado, daqueles que tudo vê, tudo sabe e permanece mudo como só os armários sabem ser. Também um guarda-culpas.

3 comentários:

Vais disse...

Olá Adelaide,
tem toda uma fantasia que envolve os armários, não?
São os amantes que se escondem, é aquela caixa de recordações guardada bem lá no cantinho pra ninguém achar, os monstros que saem para pegar as crianças, e numa brincadeira de esconde-esconde, ainda são ótimos esconderijos.
Gostei
Beijo

o refúgio disse...

Muito legal, Adelaide. Sabe, uma vez escrevi uma história de baú. "teu armário" me lembrou dele.
Um beijo.

ana v. disse...

Que belo texto, Adelaide: visualizei de imediato os pesados armários de casa de avós, testemunhas mudas de erotismos passados e de um fausto que se foi... que bem que você escreve!
Um beijo