domingo, 7 de dezembro de 2008

Não tenho medo de errar


Foto Claudio Edinger.


Devia escrever mil e quinhentas linhas dessa frase – não tenho (muito) medo de errar. Medo de errar, como todo medo, pode ser um sentimento destrutivo quando trava, imobiliza, faz perder muito tempo, embaça a alegria, caso em que é um sinal de burrice, neurose e/ou muita insegurança diante da vida.

No entanto o medo de errar pode até ser construtivo e mesmo necessário, porque faz você se instruir, aprender, aguça a curiosidade. Medo bom é o que empurra para frente, ativa a adrenalina e leva à ação. Em qualquer momento da vida, em qualquer circunstância, medo é como cavalo, que sob controle é útil e agradável, leva longe e poupa energia, mas se em vez de ser conduzido passa a conduzir, adeus passeio ou viagem tranqüila. O que em geral acontece quando se tem medo de ter medo.

Um teste para avaliar a qualidade de nosso medo é ficar atento ao grau de curiosidade que ele é capaz de desencadear. Se nos atiça a descobrir mais, se faz pensar e pesquisar, como fazem poetas e artistas, a quem tudo interessa para ampliar seu espaço de criação, ou o cientista, que progride porque pesquisa e experimenta, sempre aberto a mudanças e diferenças – se for assim, que esse medo seja bendito. Assim como acontece com a curiosidade das crianças, que têm que superar o medo do desconhecido (que no caso delas é a realidade à qual estão sendo apresentadas a cada momento) para se desenvolverem de modo saudável.

O medo de errar que não ousa, prende as pernas, cala a boca e ata as mãos, só faz sofrer. E pior ainda, destrói o que há de mais fértil nas pessoas.

Daqui pra frente, quando eu errar, me avisem. Cheguem com carinho, sem sarcasmo – um pouquinho de ironia pode, mas sem perder a ternura. Quem quer o bem do outro, diz sempre a coisa certa.

quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

Lembranças do útero



Adélia Prado. Filandras. 2 ed. Rio de Janeiro-São Paulo, Record, 2002. 155 p.

Filandras, de Adélia Prado, é um passeio por uma região de Minas Gerais. Não a Minas de BH, cidade grande que diluiu aquele jeito ingenuamente esperto, ou espertamente ingênuo, de ser que ainda persiste nas pessoas do interior. Não a Minas histórica, monumento tombado pela ONU, com ares de superioridade cultural. Nem a Minas do vale do Jequitinhonha, produtor de um bonito artesanato e torturado por muitas fomes.
A Minas Gerais de Adélia é a da infância feliz, dos rituais familiares repetidos e no entanto tão doces de lembrar. A Minas da fartura sem culpa, da comida caseira feita para o prazer de ver em torno da mesa as faces queridas, ouvir as vozes confortadoras trocando histórias de um mundo onde o grande luxo consiste nas certezas sem arrogância, na fé transparente e humanizada, no corpo instalado na vida como quem participa de uma festa.
Adélia escreve em estado de graça. Não porque se aliene da realidade dura do mundo e se recuse a sofrer com ele, mas porque aceita, com naturalidade e sem medo, fruir a vida e as alegrias que apesar de tudo ela pode dar. Escolheu dividir o que tem de melhor – o sentimento de uma poesia pacificada e pacificadora que diz sim ao amor, à amizade, às diferenças e ao prazer. Mas o que move essa aparente – e efetiva – simplicidade é uma personalidade estruturada com a firmeza dos alicerces das casas seculares de sua cidade.
Para quem está acostumado à austeridade e à frieza da cidade grande; às mensagens permeadas de violência que esse convívio nos manda todos os dias; à indiferença, ao primado das aparências, aos apelos do consumo, esses textos podem soar como a referência a uma espécie de paraíso impossível, em que muitos não acreditam mais ou nem chegaram a experimentar – a não ser talvez como uma lembrança confusa do útero materno.




O pé-sujo dos livros

Ainda que a gente se encontre desse jeitinho – através de nossas máquinas quadrilaterais, vocês diante de seus monitores em Carangola de Minas, Cruz Alta do RS, no Canadá ou no Nepal, e eu aqui no Rio de Janeiro –, sem precisar do corpo presente do livro impresso, estamos falando de textos, e por extensão de livros.
Precisamos deles em miolo e capa, e é uma pena que o tempo seja tão curto, os livros tão caros e que aquele livro que a gente queria tanto, mas tanto, não se encontre em mega nem pequena livraria nenhuma. As livrarias exibem os estoques de última geração que as editoras desovam e que às vezes nem chegam a vender, porque a divulgação e a propaganda andaram mais devagar que a produção. Mas sempre há um jeito de dar a volta nas leis frias do mercado. No caso dos livros, funcionam trocas, e-books, empréstimos, livros comprados por um grupo que irá partilhá-lo, doações ou sebos.
Leitores inveterados, obsessivos, pesquisadores, sem grana ou curiosos vão aos sebos da cidade onde moram e esquecem do tempo descobrindo exemplares que nem planejavam comprar, mas que uma vez descobertos viram objetos de desejo. Sebos – incluindo as feiras do livro – têm isso de bom: além de gastar muito menos, com sorte a gente encontra aqueles esgotados sem chance de nova edição. Em matéria de clima e rituais, o bom sebo está para a livraria assim como o pé-sujo está para o bar da moda.
As bibliotecas podem quebrar bons galhos sem despesa ou quase. Mas o livro que você traz pra casa não vai dormir em sua estante por mais de quinze dias. E se daí a três, quatro meses, ou até alguns anos depois, você ou alguém próximo precisar dele? E se te der uma louca vontade de rever aquele personagem, ouvir a música daquele texto? Livro é um objeto um pouco misterioso e tem isso em comum com as pessoas: se você for além da capa e tiver a curiosidade de conhecer o que existe dentro dele, pode ter boas surpresas. Por isso tudo, às vezes deixa saudades.

Se você digitar “sebos” no Google, vai achar à direita da página uma lista de patrocinados que é uma festa. Além dos outros todos – virtuais inclusive, que você consulta sem sujar as mãos. Para sebos do Rio de Janeiro, o site http://www.ruavista.com/sebos.htm traz uma boa lista.

domingo, 9 de novembro de 2008

Saber não é compreender


Desenho de Escher. Reptiles.

Quem aprende e quer saber, mobiliza recursos que podem incluir números, teorias e construtos mentais. Uma pesquisa bem orientada, uma análise menos ou mais aprofundada podem formar especialistas e mestres competentes.

Saber sobre o assunto da manchete “Insegurança derruba preços dos imóveis”, por exemplo, supõe conhecer dados do mercado imobiliário, dados de sociologia em diversos ramos, psicologia e economia em vários níveis. Saber alguma coisa é sempre multidisciplinar, pressupõe uma atitude acadêmica e não abre mão de estatísticas e que tais. Saber é, por definição, eximir-se por abstração, tornar impessoal um fenômeno ou um feixe deles. Saber pode render entrevistas, livros vendáveis, nome em destaque, respeitabilidade e certo charme midiático. Saber é duro, frio e multifacetado como um labirinto em cujos corredores ninguém se perde, porque traz marcados os passos e aponta direções de forma nítida. Um labirinto sem Minotauro.

Saber é importantíssimo em todos os momentos da vida, em qualquer situação. Mas não pode ser entendido como compreender, que vem por outras vias. Saber é sempre a posteriori, mas compreender pode ser simultâneo. E é um labirinto passível de perdição. Pode até dispensar parte dos saberes, o que nem sempre é conveniente, mas pode. Compreender, num primeiro momento, é para uso interno, mas quase sempre mobiliza e frutifica em ações. Compreender é também mais arriscado que saber. Usando um exemplo muito concreto, compreender é como um trem que descarrila e só se entende exatamente por quê depois que se encosta a cabeça no chão, ao lado dos dormentes, e se vê o ponto exato onde se deu o desencontro, passa-se o dedo no lugar do desnível e se percebe o grau do impacto, o jeito melhor de evitar que se repita e outros pequenos detalhes, aparentemente irrelevantes, mas que fazem parte de um todo que vai muito além e, paradoxalmente, fica aquém do saber puro e simples.

Compreender não é respeitável nos sentidos usual e oficial do termo. Compreender é querer ir adiante. Ter vontade de ser, identificar-se. Estar ali presente, inteiro, e deixar desprotegido o coração. Compreender dispensa desdobramentos constrangedores, depoimentos compulsórios de pessoas que sofrem, formulários e presença da mídia, porque registra tudo sem precisar exibir o óbvio nem enfraquecer as imagens espontâneas com simulacros que visam um alto ibope para o canal da reportagem ou a revista que esmiuçou a vida alheia. Compreender é sempre pelos cinco sentidos, sem falar nos sete da sensibilidade mais fina. Por isso dispensa pronunciamentos oficiais e aguça a empatia, a intuição, o sentir com, o ver com olhos de ver.

Não é que o saber seja inútil. Longe disso. Mas ele só vale na relação com os outros quando ajuda a compreender, quando tem interesse em compreender, existe em função de compreender. Há quem ignore isso. Há quem negue isso – e aí já entra a malícia humana – e se escandalize com tais assertivas. Mas é que sem esse – digamos – pressuposto, saber é nada na ordem natural das coisas, ordem à qual pertencem o bem-estar, o desejo humano, a paz e outros bens infungíveis.

Saber que não visa compreender é um disfarce, um virar a cara e fingir que não vê. Saber assim produz apostilas, ensaios, monografias, livros e publicações especializadas; anais de congresso e seminários. Se ninguém no entanto avocar esses dados para melhor compreender alguma coisa que se assemelhe a gente, eles serão certamente consumidos pelo fogo frio da inutilidade que arde invisível em milhares de estantes, bibliotecas e depósitos de papel esquecidos pelo mundo. Um fogo cujas chamas podem congelar os que têm o saber como meta final e se encerram em uma crosta de arrogância e presunção, o coração vazio para sempre.

terça-feira, 28 de outubro de 2008

Mania de blog


Para o Houaiss, mania tem – entre outros não tão amenos – o sentido de gosto ou preocupação excessiva (por ou com algo).

Um blog costuma virar mania para quem o inventa. Mas depois de inventar o primeiro, a mania vai se enraizando e multiplicando-se os blogs. Há quem abra três ou mais e até uma página própria. Com o tempo ficou fácil abrir esse(s) espaço(s) próprio(s), mesmo que na rede não passe(m) de um (ou mais) entre dezenas de milhões.

Segundo citação do site IDG Now, em 18 de abril de 2006, a Technorati revelava que o número de blogs havia crescido 60 vezes em três anos. Havia então 35,5 milhões de blogs e era publicado 1,2 milhão de notas por dia, média de 50 mil por hora.

Diretamente do site da Technorati, no ano passado havia, só nos EUA, 22,6 milhões de blogueiros (12% do total). E segundo a Universal McCann, em dados de março deste ano, 2,184 milhões de novos blogs foram abertos (26,4 milhões nos EUA), e 346 milhões de pessoas são leitoras de blogs (60,3 milhões nos EUA). Ou seja, 77% dos usuários da Internet costumam ler blogs.

Mais que uma simples mania, fazer um blog pode ser um modo válido de dar a conhecer sua produção, suas pesquisas, seu trabalho enfim, individual ou de equipe. Para um pesquisador, um jornalista ou um escritor, em vários casos já se comprovou a eficácia desse meio de comunicação relativamente barato, simples de utilizar e de resultados às vezes mais rápidos do que se imaginaria.

Verdade que muitas facilidades oferecidas pela Internet são meio neutralizadas pelas exigências do mercado, porque todo mundo quer ganhar o seu – quem publica, quem lê, quem anuncia e quem oferece oportunidades – leia-se ofertas de serviço pago. Editores, provedores e anunciantes assestam sua cobiça sobre os sites mais procurados.

Talvez por isso os casos de reconhecimento de um bom trabalho se tornem mais escassos. Outro fator negativo para quem procura projeção é a quantidade espantosa de sites on line, um verdadeiro cipoal que embaraça qualquer busca. Tornar-se mais que uma agulha no palheiro requer qualidade excepcional, propaganda e informação tipo Feeds ou e-mails programados que perigam afundar no limbo dos spams.

Mas o que funciona de verdade na projeção de um site, ao menos pelo que se pode observar, é uma combinação de contatos reais de seu(s) autor(es) com uma qualidade capaz de chamar a atenção dos leitores e observadores. A falta de um desses fatores pode ser a causa do desempenho fraco de blogs ou sites muito bons, que acabam perdidos entre os medíocres de plantão.

Mas nem tudo se resume na corrida pela glória. Há também o prazer de ler e ser lido, trocar opiniões, comentários, fazer amigos novos de qualquer quadrante e aprender sempre mais. É impressionante como se aprende com a leitura de certos blogs, em matéria de sensibilidade, idéias e estética. Para isso, sobram leituras prazerosas e enriquecedoras. Vale selecionar um pouco as amizades e evitar blogueiros umbigudos, desses que só pretendem se fazer notar e usam comentários e elogios fáceis como moeda de troca em proveito próprio, pouco se lixando para os textos dos demais donos dos blogs onde deixam as marcas de seu narcisismo infantil. Afinal, mesmo para quem não conquista o reconhecimento que todo mundo deseja, existe uma ética que deve ser observada em cada instância da vida, e essa de que falamos inclui respeito pelo trabalho dos outros e obrigação de dar o melhor de si em seu próprio trabalho.

domingo, 19 de outubro de 2008

Cachorro, só adestrado




Às vezes penso que, diante de tanta ignomínia e injustiça no mundo, o Ser superior a que dão nomes diversos pode bem perder a paciência com os humanos e impor a essa raça de insensatos alguma contenção ou penalidade que os faça cair em si, arrepender-se e compulsoriamente tentar consertar os estragos que têm causado ao próximo e ao planeta.

Não sei se o Ser superior se daria a esse desfrute, que talvez o rebaixasse aos olhos de seus adversários – numerosíssimos, pelo que se pode observar por aí. Mas se sua mão realmente pesasse com decisão sobre as cabeças rebeldes, talvez o resto do rebanho fosse tomado de temor, como nos relatos do Antigo Testamento, e decidisse repensar a vida.

Também acredito que tal testamento é uma prova de que esse assombro das pessoas ante o mal no mundo vem de tempos bem remotos, talvez desde que o homem apareceu na Terra tal como o conhecemos hoje. Ao contrário do que acontece diante dos acenos de uma vida além-túmulo, o castigo aqui e agora, sentido na carne e não por uma vaga ameaça, teria na certa um efeito mais decisivo para fazer entrar na linha os irresponsáveis, relapsos, violentos e egocêntricos de plantão – e haja plantão! O único risco seria tornar o comportamento do Senhor comparável ao dos humanos, que estão sempre prontos para a vingança e a retaliação. E também não se descarta a possibilidade – que alguns têm como certeza – de que o AT tenha sido apenas fruto do medo e do sentimento de culpa que os humanos, e só eles, são capazes de desenvolver.

Ninguém pode ser considerado inocente. Na certa somos todos culpados de muitas omissões e/ou atos destrutivos. A questão está no grau de persistência e virulência de nossas faltas, no cinismo com que nos julgamos no direito de usar e abusar de coisas e pessoas, no egocentrismo muitas vezes perverso de que somos capazes. Às vezes é preciso soltar os cachorros, mas antes temos que ter certeza de que estão adestrados.

Nesse terreno, o limite entre normalidade e doença é bem tênue. Os conhecimentos acerca de doenças e distúrbios neuropsíquicos explicam alguns desvios, como no caso do recente seqüestro e assassinato de ao menos uma das duas meninas envolvidas. Isso tem acontecido muitas vezes por conta da incapacidade, em geral de um homem, para suportar o fim de um relacionamento amoroso. Nesses casos, um afeto deturpado transforma o outro em objeto de posse de um desequilibrado, que tanto pode ser um advogado, como Pimenta das Neves, um fútil playboy como Doca Street ou um rapaz inexpressivo como o Lindemberg de Santo André.

A desigualdade social também cria um clima propício a ressentimentos e cobiças. As injustiças não param de crescer, a partir dos mecanismos iníquos de distribuição de bens e dinheiro, impostos pelo regime de capitalismo selvagem implantado no Ocidente. Mesmo entre os de classes semelhantes, o olho grande compele as pessoas ao consumismo e à corrupção. O que em princípio seria uma busca legítima de felicidade se avilta pelo desejo de ter sempre mais. E de quebra agrava o estresse, os estados de instabilidade psíquica, alimenta hostilidades, encoraja uma tendência ao confronto que acaba em agressões no trânsito e brigas de vizinhos. Sem falar na insatisfação crescente que empurra para a drogadição, a bebida e outras maneiras de fugir de uma realidade em que o prazer vai rareando, engolido pela ansiedade ou pela angústia.

O domingo está acabando. Com tanto incentivo à briga, melhor relaxar e se programar de jeito a dar mais espaço para o amor, a amizade, o bom convívio; buscar em si e nos outros o que se pode fazer para tornar um pouco melhor o bairro, mais acolhedora a casa onde se mora, o lugar onde se trabalha ou estuda; exercitar o cuidado de si e daqueles com quem queremos dividir a vida.

quarta-feira, 8 de outubro de 2008

Sentar no chão



As crianças se encontram na pracinha e imediatamente entram em um grau de sintonia: se olham, trocam uma ou outra palavra, sorriem e começam a brincar. Nunca tinham se encontrado antes, mas o simples fato de serem do mesmo tamanho e adivinharem que gostam das mesmas coisas as identifica. Sentam juntas no chão, dão-se as mãos, riem, brincam e correm numa amizade instantânea.

Claro que os adultos não podem agir com a mesma espontaneidade. O que é uma pena, mas realmente não se recomenda. A comunicação entre eles não é tão fácil, a vida já lhes ensinou que é preciso desconfiar de um estranho, muito embora saibam que algumas coisas continuam a ser comuns a todos.

Mas perder a espontaneidade da infância não é motivo para hostilizar o outro. O famoso benefício da dúvida pode ir além de uma atitude forçada e politicamente correta, para admitir um gesto exterior de atenção e um gesto interior de certa boa vontade. Para um adulto, sentar no chão com o outro equivale a acolhê-lo de maneira civilizada e reconhecer nele um semelhante.

As sementes da intolerância se alastram muito mais depressa quando se vive sem dar atenção aos outros, ingorando ou menosprezando quem está a nossa volta. Nada bom para o mundo e as pessoas, porque é dessas sementes que brotam as guerras, os ódios que vêm para ficar e a violência de todas as formas.

Não que todo mundo deva virar madre Teresa de Calcutá, um ideal para poucos. Falo de uma solidariedade pequenininha mas sempre presente, imediata, do dia-a-dia, que se dirige ao vizinho, ao irmão dentro de casa, ao marido ou à mulher, aos filhos, a quem passa por nós e viaja em nossa condução. Uma solidariedade que vê mais longe do que a roupa que o outro veste ou sua condição social.

Empatia, estar alerta ao que o outro diz e faz – ou seja, ser capaz de demonstrar compreensão desarmada. Conviver sem a pretensão prévia de julgar ou se defender a priori, como se o outro fosse sempre o inimigo em potencial. Não é tão fácil quanto parece, mas é possível, mesmo sem ignorar os sinais reais de perigo que nos cercam nas cidades e aos quais também é preciso estar alerta.

Talvez ser feliz dependa de saber acolher e ser acolhido em qualquer situação. É preciso ter a noção do que um gesto de simpatia pode conseguir: relaxa, desarma, cria um clima favorável ao entendimento. É preciso ter espaço interior de manobra para deixar espaço para os outros, e o grande mal do mundo (que não nasceu hoje, mas está atingindo uma tensão insuportável) é uma intolerância que nasce exatamente do não-entender, e mais ainda do não querer entender nem se identificar com algum traço de quem está diante de nós – e que no entanto é também uma pessoa de nossa mesma espécie, noves fora as diferenças individuais.

Cordialidade e delicadeza não fazem mal a ninguém, nem são sinais de fraqueza. São sinais apenas de boa vontade e compreensão. Mas para isso é preciso entender que cada vida está ligada às vidas do mundo todo, perceber o significado da generosidade não como uma virtude que torna alguém superior aos demais, mas uma decorrência da precariedade de cada um.

domingo, 21 de setembro de 2008

Inconfortáveis


Imagem Blue Molleskin.

Dizemos que um sapato é desconfortável quando machuca o pé ou não nos dá segurança no andar. Do mesmo modo, uma roupa nos deixa irritados quando incomoda – uma gola, a manga mal colocada, um cós muito apertado. É desconfortável dormir numa cama dura ou macia demais, sentar num sofá demasiado fundo, numa cadeira muito estreita. Frio ou calor em excesso nos deixam indispostos. Carne muito dura, comida salgada ou insossa, água morna, frutas ácidas demais – tudo isso traz desconforto ao corpo.

Não vamos falar das piores coisas, como a depressão ou a tristeza extrema por uma perda, uma doença que cause grande mal-estar ou uma dor física.

Mas há outros desconfortos. Alguns muito sutis, como aquele instante em que de repente, sem causa aparente, o mundo nos parece um saco, tudo fica sem graça e até fisicamente a gente se sente mal dentro da roupa sem motivo. Em geral é passageiro, felizmente, mas desce não se sabe de onde nem como. É como se subitamente a gente ficasse de mal com a vida, incômoda para si mesma. Acontece e passa, mas às vezes deixa o tédio – outro estado nada confortável.

Desconfortos inconfessáveis podem estragar bons momentos: um absorvente que se descolou de seu devido lugar quando não há toalete à vista; um botão estratégico que se solta de sua casa quando não se pode tornar a pregá-lo ou um molho que pinga na blusa, um café quente demais que nos queima a língua.

Há também pessoas inconfortáveis. Um cara inconfortável é um ser pouco acolhedor. Pode chegar a ser mesquinho, um completo chato ou apenas meio canguinhas. Não falo de generosidades materiais, mas de uma certa generosidade afetiva, necessária ao bom relacionamento como o lubrificante ao bom funcionamento da máquina. A sovinice emocional pode ir da arrogância que fulmina o próximo até aquele olhar crítico que te atinge no exato momento em que você mais apreciaria um gesto solidário. É o(a) cara que ironiza teu carro novo quando você está mais eufórico por causa dele. Ele(a) inveja, deprecia, faz alusões incômodas ou indiscretas. Ele não gosta de ver o outro feliz. Não alivia. Não cede o lugar. É o primeiro a correr para a mesa e atravanca o acesso dos outros em seu direito à comida. Não segura o elevador quando você vem chegando afobado.

E há os que simplesmente não se apercebem de quando sua presença não é desejada, e o amigo ou conhecido a duras penas controla o desejo de se ver livre. Nem é muito difícil perceber essa situação. Mas certas pessoas acham que sempre vão agradar, se você é amigo ou simplesmente já foi simpático com elas de outras vezes. Na verdade, é preciso um certo feeling para perceber que em certos momentos nem a companhia da própria mãe da gente seria muito bem-vinda. E que é muito desconfortável e até angustiante ter que fingir contentamento quando tudo que se deseja é ficar sozinho, seja lá por quê. E que nesses momentos talvez o melhor seja deixar um sinal de amizade – uma simples flor, um carinho, um doce – sem perturbar a solidão do outro.

É duro aturar quem não tem medidas para demonstrar o quanto é bondoso, generoso e quer provar sua amizade de qualquer jeito, ainda que seja invadindo, forçando o convívio e a confidência. Quem fala quando se quer silêncio, quem padece da aflição de consolar aquele que não está aflito, mas apenas triste ou cansado. Às vezes é melhor o sapato apertado.

sexta-feira, 12 de setembro de 2008

Resumos




O mundo é como um cinema que passa bem devagarinho: sempre sobra mundo pra conhecer.
Só é ruim porque não há como saber exatamente que papel a gente fez no filme.

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Assimilou bem demais a boa educação que lhe deram. Agora é uma leoa que não consegue sair da jaula. Nem com a porta aberta.

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Aos cinco achava o pai um herói, aos dez um grande homem; aos quinze um coroa boa-praça, aos vinte um reaça. Aos trinta entendeu melhor e dez anos mais tarde virou o melhor amigo.
Dias depois que o velho morreu, levou um bruto susto ao ver o rosto dele quando se olhou no espelho da sala.

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Tinha bebido tanto que não soube explicar como acordou em cima do ombro do Cristo Redentor de pareô e colar de havaiana, mas lembrava perfeitamente o nome do dragão que o transportou.

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Deixou a água no fogo e foi ler. Da casa só restou um pedaço de janela.

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Sonâmbulo, saiu voando do vigésimo andar. Ainda bem que nem acordou antes de chegar ao chão.

quarta-feira, 3 de setembro de 2008

Voto meditado


Durante algumas semanas deixo de ler jornais e revistas, não vejo mais noticiário de tv nem quero saber das notícias de política e polícia, muito menos das que misturam as duas e que são cada vez mais freqüentes. Estou louca pra ver se isso muda alguma coisa na cabeça. Se mudar pra melhor, repito a dose. Alienação? No, babies. Entrei num período de desintoxicação mental pré-eleitoral.
Uma coisa que me deixa cabreira é a diferença entre o que de fato acontece na vida real e o que chega a nosso conhecimento via mídia. Apoiamos a opinião de um ou outro colunista que admiramos, pelo que sabemos dele e por suas idéias. Até aí, tudo bem. O que estraga é o efeito cumulativo do noticiário e da propaganda em geral: acabamos nos condicionando a pensar pela cabeça dos outros, o que não se recomenda, por melhores que os outros sejam (e quase nunca são assim tão melhores).
Às vezes fico assombrada com a uniformidade de determinados discursos em certos setores da mídia. Vivemos à sombra de um emaranhado de idéias e pontos de vista ditados por interesses que não conhecemos bem e não são nossos. Claro que não dá pra confundir gestos e atitudes impulsivas com opiniões próprias. Mas às vezes é preciso parar e refletir, deixar claro se o que estamos pensando não traz de mistura as opiniões alheias que, de tão repetidas, acabamos adotando como se fossem realmente as nossas. Uma espécie de catarse, um exercício de purificação em busca da serenidade necessária para pensar e agir por conta própria, sem deixar margem a futuros arrependimentos.
Agora, pouco antes das eleições municipais, talvez seja melhor puxar o freio, deixar de engolir sem mastigar o que nos enfiam goela abaixo e pensar ainda mais com a própria cabeça. Ou seja, votar pelo que o candidato tem de positivo, não dito por ele ou pela propaganda, mas do que tivermos conseguido efetivamente apurar sobre ele. Já é tempo de dar governos decentes a nossas cidades.
Falando do Rio em particular, estamos precisando de oxigênio, ar puro na administração, porque na que tivemos até agora predominou o descaso acompanhado de corrupção e muita falsidade. Valha-nos são Sebastião.
Se alguém estiver interessado em refletir sobre o assunto, vou abrir meu voto: dos bons candidatos, quem teria mais chance de vitória sobre Crivella e Paes (argh!!!) seria Jandira. Se Chico (que admiro sinceramente), Molon (idem, mas tá sem cacife) e Gabeira (de início meu candidato predileto) tivessem uma visão mais ampla da situação, acho que abririam mão de suas candidaturas em favor da Feghalli. Mas não tenho nenhuma esperança de que isso aconteça.

domingo, 24 de agosto de 2008

Paz


É mais do que sossego. Sossego é pouco mais que uma lagoa de águas paradas, e se for demais pode ser foco de doenças da alma, assim como a lagoa pode criar mosquitos que causem doenças do corpo.
Mais do que bem-estar, boa saúde, disposição, conforto físico. Mais do que segurança, que qualquer pitbull bem amestrado pode dar.
Nem mesmo tudo isso reunido é sinônimo de paz, que não depende de fatores externos.
Paz é ter uma lagoa cristalina dentro de si. Paz é ter um sol de primavera nas entranhas.
Estar feliz e bem consigo mesmo, ainda que a saúde não esteja lá essas coisas. Estar ancorado numa tranqüilidade meio misteriosa no mar encapelado da vida, que independe dos riscos reais, ainda que se esteja bem consciente da dimensão desses riscos. Paz é ainda saber bastar-se sozinho e ser boa companhia de si próprio, embora gostando da companhia dos outros.
Pode-se abrir mão do bem-estar e do sossego de boa vontade, durante o tempo necessário para ajudar alguém que precise de nós, e nem por isso perder a paz. Pode-se ter um horário de trabalho chato de cumprir. Pode-se trabalhar muito e no meio do corre-corre viver momentos da mais profunda paz. Pode-se ter problemas de família, conviver com gente difícil, experimentar instantes de certa raiva e nem por isso perder a paz.
Só em paz o cuidado de si e os bons momentos do amor e da amizade podem ser bem aproveitados e deixar suas marcas de alegria, a melhor de todas as terapias.
Paz é experimentar a intimidade e a solidão física com prazer, deixando aflorar boas lembranças, refletindo com calma ou simplesmente fazendo alguma coisa: estar só consigo pode ser uma aventura criativa sem paralelo nesse caso.
Se isso é auto-ajuda? Não sei, pode ser. Nem sempre a gente faz literatura. Mas também a literatura, como tudo que vale a pena, precisa dessa paz para acontecer.

sexta-feira, 15 de agosto de 2008

O império se estende


Os maiores elevadores do mundo, os mais potentes, estão em Taiwan. Fiquei sabendo por um documentário do National Geographic Channel. Alguns têm dois andares. Velozes como nenhum outro, são até pressurizados, para não dilacerar os ouvidos dos que, subindo e descendo dentro deles, ainda sofrem da condição humana. Têm cabos tão poderosos que dentro deles não há trepidação (o engenheiro-chefe que os inventou precisa às vezes fazer sua viagem vertical do lado de fora da cabine, e é como se uma mosca viajasse a bordo de um trator: a uma pequena falha da engrenagem, a criatura-elevador seria capaz de destroçar seu criador). Mas todos estão serena e arrogantemente seguros de que essa falha é impossível. Um sistema oculto de suportes absorve qualquer impacto a cada andar, e ninguém jamais ficará preso naqueles elevadores.

Os tais elevadores ficam no edifício Taipei 101 Financial Building, o segundo mais alto – 508 metros – e talvez o mais poderoso e indestrutível, resistente a terremotos. Foi construído numa área de risco, com o propósito de violar todas as regras relativas ao risco, que é sempre agravado pela altura da construção. Abriga bancos, financeiras, inúmeros escritórios e lojas, muitas: 101 acima do solo e cinco abaixo. Parece que tanta segurança diverte os funcionários e construtores do prédio. O Taipei suporta todas as fúrias da natureza. Foi construído durante um grande abalo sísmico, e nada sofreu: tem vigas e megacolunas do tamanho de uma sala, e o espaço perdido com essas vigas é compensado pela superposição de inumeráveis andares (eram 141 em 2007, com capacidade para crescer ainda mais), estrutura sustentada por alicerces envoltos numa camada reforçada de concreto com três metros de espessura.

O prédio foi projetado como um desafio às piores situações e catástrofes, e ali tudo é tão brutal quanto os ventos do tufão, o tremor das entranhas do planeta e – quem sabe? – até as armas nucleares. Lá dentro, ao menos 10 mil pessoas passam a maior parte de seus dias (certamente mais breves que os do prédio). São 700 mil toneladas de cimento e aço. Tamanha grandiosidade não se destina a abrigar pessoas dispensáveis, mortais sem nada de especial. Não são czares nem soberanos nem provavelmente seres dotados de algum talento capaz de salvar a humanidade. O império de agora tem outros representantes e outros objetivos.

sexta-feira, 8 de agosto de 2008

Papel de presente


Uma linda folha de papel de presente dá vontade de presentear alguém. Parece um pouco com o que se convencionou chamar de vocação: a tendência que motiva uma pessoa a fazer o necessário para realizar seu desejo.

Houve tempo em que a palavra era entendida de modo mais radical; dizer que alguém tinha vocação pra isso ou aquilo devia ser entendido como um chamado irresistível vindo não se sabe bem de onde. Até do céu, no caso da vocação religiosa. Hoje é ponto pacífico que qualquer vocação dispensa apelos transcendentais: a coisa vem de dentro do intrincado individual das características genéticas e adquiridas.

Um chamado divino dificilmente explicaria a quantidade cada vez maior de padres, pastores e freiras que um dia se cansam da vida dedicada exclusivamente ao Senhor e à igreja de que fazem parte. A vocação deles foi um engano? E – muito pior que isso – quando padres, pastores ou freiras se deixam levar pela tentação mais hedionda e, em vez de apascentar suas ovelhinhas como se esperava que fizessem, as usam como pasto? Por que esses religiosos deixam de agir como líderes espirituais para trair a confiança de seus seguidores? Humano, demasiadamente humano.

Vocação para o magistério é outra expressão que soa meio grandiosa, diante das dificuldades da carreira – salários baixíssimos, condições precárias de trabalho, clientelas difíceis de lidar. Os próprios alunos criam obstáculos ao trabalho do professor, tanto nas escolas públicas quanto nas particulares: uns ameaçam pelo potencial agressivo dos podres poderes a que estão às vezes muito ligados; para outros, nas escolas “da Zelite”, o aluno sempre tem razão, porque sem ele não haveria recursos para manter a escola, pagar salários e obter algum (ou muito) lucro. E o professor vê seus lindos conceitos relegados a segundo ou quarto plano por conta de interesses, digamos, bem mais concretos.

Nas carreiras liberais ou artísticas, pode haver grandes compensações, talentos reconhecidos em áreas diversas, políticos realmente íntegros e dedicados ao bem comum (existem sim, pessoas de pouca fé; são raros, mas existem). Nem por isso deixa de haver sofrimento e luta constante pelo que se quer realizar – chegando ao ponto às vezes de a obra chegar a destruir alguém de estrutura frágil, como aconteceu com Maiakovski. Mas as frustrações são mais freqüentes. Depois de todos os esforços e investimentos, se a carreira não deslancha, é preciso desistir do caminho escolhido e suportar o tédio de um trabalho que nada tem a ver com o desejo de quem sonhou muito alto ou, como é comum, ficar patinando na sombra sem o reconhecimento que se imaginava conseguir. Numa sociedade que sonha continuamente com a fama e o sucesso, pode ser deprimente.

Um dos exemplos mais gritantes de fracasso que se conhece foi Vincent Van Gogh, que viveu à custa do irmão generoso sem conseguir vender um quadro, enquanto realizava uma das obras mais grandiosas de que se tem notícia nas artes plásticas. Tomara que exista vida depois da morte, para que ele veja o tamanho de seu triunfo. Não poucos nomes famosos tiveram destino semelhante ou sofreram limitações, que não os impediam de trabalhar: Beethoven ficou surdo, Kafka, sempre enredado em seus labirintos de desespero e depressão, nosso Aleijadinho, trabalhando mesmo com o corpo deteriorado pela hanseníase que o devorou em vida. Gente que tentou e conseguiu ir além do que se pode esperar de um ser humano, como Nietszche, Galileu e tantos mártires de origens e naturezas diversas, provam o quanto é temerário ignorar os poderosos e ousar ir além da mentalidade de seu tempo.

Vocação não é tudo: é só o papel bonito, que dá vontade de embrulhar um presente. Mas nem sempre se encontra ou se pode comprar um presente à altura do papel. Mais importante é persistência, tolerância diante dos fracassos eventuais, saúde e realismo para contornar as dificuldades e a incompreensão. Mesmo sem grandes glórias, resta o papel bonito para contemplar, renovar o sonho e proteger a auto-estima.

segunda-feira, 28 de julho de 2008

Coisas que fazem a diferença


Durante alguns anos de minha vida, pensei que um dia seria dona de uma loja de objetos desses que a gente gosta de ganhar e de dar para fazer felizes as pessoas queridas. Há coisas que combinam com certas pessoas. Isso é tão verdadeiro, que às vezes se tem a certeza de agradar a um amigo, filho, namorado ou pai dando-lhe determinado objeto. Sou louca por essas coisas ditas inanimadas, mas capazes de animar as pessoas e fazer seus olhos brilharem.

Também gosto de ganhar presentes assim. É uma forma de expressar amizade, afinidade e carinho. Pelo tipo da lembrança se percebe o quanto quem nos presenteia realmente pensou em nós na hora de escolher. Quem não gosta de se sentir assim acarinhado? Para isso, um objeto não precisa ser necessariamente valioso e caro. Adoro por exemplo os feitos de palha, porta-guardanapos de madeira ou simples peças de louça de uso diário só pela beleza do desenho. Uma vez fiquei fissurada por uma molheira e não consegui seguir meu caminho antes de entrar na loja e levar para casa meu presente para mim mesma. Sem falar nos livros e músicas, um capítulo à parte.

Muitas mulheres correm a mudar a cor dos cabelos ou comprar roupas e sapatos quando estão tristes ou decepcionadas. Eu compro coisas, antes de qualquer outra providência. Também recorro ao cabeleireiro, é claro, mas nunca pintei os cabelos, de modo que faço um novo corte, uma boa massagem; às vezes vou procurar uma roupa nova – esses recursos que a gente tem, graças a Deus, pra mudar o exterior quando o interior está pouco convidativo. Mas antes passo em lojas de decoração até achar um cinzeiro original, um vaso bonito, um porta-retrato diferente. Tenho uma pequena coleção de caixinhas, adoro luminárias bonitas e estantes, que nunca são demais para os livros que chegam e sempre estão precisando delas. Mas há as almofadas e as mantas, quer coisa mais gostosa de escolher e ver em casa?

Meu pai tinha tinteiros de vidro que não sei onde foram parar, canetas de pena que ele molhava nos ditos, pesos de papel de cristal que me faziam sonhar e um mata-borrão que eu adorava vê-lo manejar sobre o papel de tinta fresca, além das canetas-tinteiro, como uma Parker preta listradinha de cinza que nunca esqueci. São objetos que trazem para nossa casa de adultos momentos da infância que eles testemunharam. Guardei dele, entre outras coisas, as sobrecapas de couro para proteger os livros, mas ficaram muito gastas e acabaram guardadas como relíquias.

Um objeto tem seu valor material, que pode ser menos ou mais alto, mas isso não interfere no efeito que ele nos causa. Quando se compra ou ganha algum, experimenta-se seu convívio como quem avalia um vizinho novo. Gosto de deixá-lo num lugar em que o veja a toda hora até que se integre ao dia-a-dia. De vez em quando é gostoso parar para conhecê-lo melhor; examinar, pegar e inventar novos lugares para pousá-lo até que se harmonize com a paisagem e o clima da casa. Quando isso acontece, pode-se sair procurando um lugar temporariamente definitivo para ele. É a prova de fogo, depois da qual quase sempre o estranho vira membro da família, parte do patrimônio da casa e merece afeto e cuidado.

Essa ligação com as coisas não incomoda ninguém e dá algumas alegriasinhas inocentes. Além do mais, é muito saudável exercitar o gosto pelo lugar onde se vive, e isso exige certa exclusividade para ser realmente nosso, original. Isso se consegue com uma decoração que pode ser simplérrima, porém cheia de toques pessoais, certa dose de inesperado e bom humor que faça a diferença. Nada a ver com luxo ou decoração estilosa. Como a poesia, tem tudo a ver com alegria de viver.

sábado, 19 de julho de 2008

Conselhos: modo de usar

Foto Ana Reczeck.


A moça tinha pele saudável, lindos dentes e olhos brilhantes. Concentrei a atenção no que ela dizia naquele programa de entrevistas que visito sempre que possível, porque muitas vezes aprendo coisas dos convidados. “O ideal são duas por dia, mas pode consumir mais do que isso sem susto. Laranja não tem contra-indicações, só vantagens.” Seguiu discorrendo, sempre muito convincente, sobre as virtudes da fruta. Lembrei que na semana anterior tinha ouvido outra nutricionista bem articulada falar da melancia, absolutamente indispensável para quem quer se manter em boa forma.
Depois da apologia da laranja, foi a vez de um dermatologista entusiasmado com as virtudes da água. De tudo que ele disse – e foi muito – ficou um bordão: mais de dois litros de água por dia. Mais de dez copos. E não vale substituir a água por sucos ou assemelhados (refrigerante, nem pensar). Até aí tudo bem, não tomo mais refrigerantes. Mas tomo sucos, porque são gostosos e saudáveis. Então são onze ou doze copos de água, mais dois de suco, no mínimo. Isso se você dispensar o vinho tinto, cujos benefícios – dizem – podem prolongar nossas vidas atribuladas.
Impressionada, imaginei que seria preciso andar com um cantil a tiracolo para satisfazer essa exigência. Levar laranjas para o trabalho e a melancia fechada num tupperware, que quando se abrir espirrará caldo pelas adjacências.
Nem tudo porém estará resolvido por essa dieta. E a maçã, fonte de vitaminas B, niacina e sais minerais? As uvas, que além de suavemente laxativas, fazem bem ao fígado, estimulam as funções cardíacas, são deliciosas e antioxidantes? Sem falar nos figos, energéticos, com potássio, cálcio e fósforo, que contribuem para a transmissão normal dos impulsos nervosos; na fruta-de-conde, cheia de qualidades medicinais, no caqui etc. E o papaia nosso de cada manhã? A ameixa, fresca e seca, ambas utilíssimas ao organismo? E que sobre espaço e tempo pra manga e abacaxi, pêra e graviola, um que outro açaí em misturas energéticas.
E tem o leite, necessidade indiscutível em quantidade ponderável todo santo dia, porque sem isso a osteoporose não encontra resistência e corrói nossos ossinhos sem contemplação. Naquele mesmo programa de entrevistas falou-se ainda de alface, tomate, pimentão, cenoura e berinjela na dieta diária; de brócolis, couve-flor, agrião, espinafre, rúcula, inhame, aipim, abóbora, beterraba e na inefável batata-baroa, esses últimos – vá lá! – duas vezes por semana. Arroz integral, legumes cozidos com a casca, frango ou peixe sempre grelhados (xô, carne vermelha!) todo dia. Alguém precisa organizar esse caos de preciosidades alimentares, e para isso nada melhor que um nutricionista de plantão em nossas vidas.
Fiz um balanço das recomendações, às quais juntei as castanhas, amêndoas, cereais, grãos e demais badulaques que, todo mundo sabe, precisa-se mandar pra dentro com assiduidade. Feitas as contas, descobri que precisava no mínimo de setenta e duas horas por dia pra cumprir todas as recomendações da nutrologia e da medicina – e nem cheguei ainda à imprescindível atividade física de vários tipos, que exigiria, calculando por baixo, mais duas horas diárias e algum personal-qualquer-coisa que nos ampare.
Em nome da saúde da mente e do espírito, especialistas de várias áreas vitais recomendam ainda não perder contato com a realidade que nos rodeia; estudar; praticar alguma atividade prazerosa – um hobby, jardinagem, cuidar de um animal de estimação, fazer cursos sem outra razão que a satisfação pessoal, participar de grupos cujos interesses partilhamos e assim por diante. Outra preocupação indispensável: cuidar da aparência – higiene, pele, mãos, pés, cabelos, maquiagem e cosméticos, incluindo ainda a postura, a escolha das roupas etc.
Mas tem mais: pelo menos cinco ou seis especialidades médicas reclamam sua presença em seus consultórios uma, duas ou mais vezes por ano, mesmo que você não sinta rigorosamente nada. E há até quem recomende uma colposcopia semestral para prevenir pólipos ou ameaças semelhante nas voltinhas dos intestinos; além de um confortável enema periódico para deixar o tubo limpinho – e mais uns trocados na conta do doutor. E mais: pequenos exercícios têm que ser repetidos ao longo do dia, porque fortalecem musculaturas tão importantes como os esfíncteres, o abdome, os glúteos, as articulações em geral. Também é imprescindível respirar sempre bem, praticar respiração abdominal, alongar muito desde que se acorda e ainda achar um tempinho pra devanear ou meditar, o que, segundo os profissionais da área psi, é a respiração da mente.

Se você tem filhos, um emprego que deseja conservar e cumpre suas obrigações cotidianas em casa, é possível que não lhe sobre tempo pra seguir um quinto desses conselhos. Talvez consiga fazer pouco mais da metade, caso viva só e tenha uma empregada que resolve todos os pepinos (me dê o telefone dela); mas não sobrará tempo pra ir ao cinema, um teatro, bater um bom papo, ler um livro ou ver televisão. E à noite, exausto da longa maratona, empanturrado de comida saudável e empapuçado de líquidos até a alma, você dormirá como uma lorpa assexuada. Até porque, seguindo esse ideário, não haveria por que nem como pensar em mais alguém além de você mesmo.

Como qualquer pessoa normal está farta de saber, vale a pena algum esforço para prolongar essa bênção que é uma vida saudável. Mas se a gente der ouvidos a todas as dicas supostamente autorizadas, não vai sobrar tempo para viver. E como, dizem os sábios, os extremos se encontram por oposição, a vida passará a ser uma obsessão permanente para exorcizar a morte.

sexta-feira, 11 de julho de 2008

No princípio eram as férias


No princípio eram as férias de julho, que duravam um mês inteirinho pra gente se divertir, esquecer as obrigações de todo dia e aproveitar as festas que sobravam de junho. Agora muitas escolas tiram de uma a duas semanas do mês, o que é pouco pra quem deu duro desde fevereiro. Vão dizer que as horas de aula aumentaram, que é preciso cumprir o programa, que tantas férias são dispensáveis. Tudo bem, não vamos discutir isso. Dizer que é bom ficar de férias não significa ignorar ou negar as necessidades do ensino. Estou só lembrando o quanto era bom. As férias de fim de ano também encolheram um mês – iam do final de novembro ou início de dezembro a março, três meses cravados. Pode ser que houvesse perda de tempo, que fosse um exagero, mas particularmente posso dizer que a gente torcia muito para chegar o dia.

As férias pra mim sempre foram como a luz para a natureza. Pouco antes delas, já não dava conta dos deveres escolares com muita facilidade. Talvez porque eu fosse mais nerd do que devia, talvez porque levasse o estudo muito a sério. Mas entrar de férias para mim era a melhor de todas as festas. Não sei exatamente dizer por quê, mas acredito que, mais que os passeios, as praias, as horas de sono a mais e o cinema durante a semana, a delícia das férias estava na sensação de liberdade, de não ter um professor cobrando trabalhos ou a obrigação de vestir um uniforme que eu detestava e aturar inspetores mandando entrar na fila, sair da fila, subir pra sala ou ficar calada.

Talvez isso se deva também a um temperamento meio desorganizado que, mesmo depois de grande, nunca me permitiu ser capaz de repetir a mesma rotina todos os dias da semana. Ainda que haja horários a cumprir e funções determinadas no trabalho, não me lembro de ter vivido um dia igual ao outro. A disposição muda, as tarefas têm um peso ou uma ordem diferente a cada dia.

No trabalho, sempre fui uma espécie de estagiária ou voluntária, e era assim que cumpria melhor a minha parte. Qualquer função fica mais leve se for realizada com certo espírito lúdico. Tive a sorte de conviver com gente criativa, e podia até mudar um pouco a arrumação de minha sala de vez em quando. E quando dei o azar de esbarrar com um chefe autoritário com vocação para tirano, dei um jeito de mudar de setor e me ver livre dele. Ganhei muito mais trabalho, o que não me incomodou em absoluto, mas ganhei também amigos que nunca mais perdi de vista e algumas experiências de vida inesquecíveis. Foi como num desses jogos em que quem perde, ganha.

Nem sei por que estou contando tudo isso. Acho que é porque hoje, como me acontece com freqüência, acordei de férias.

segunda-feira, 30 de junho de 2008

Aritmítica (com o perdão pelo trocadilho infame)


Jayme Ovalle com Otto Lara Resende e Vinicius de Moraes, muitas décadas atrás.

Ao contrário dos mitos clássicos ou tradicionais, cujas histórias passam de geração a geração um significado simbólico, certos mitos fabricados pela mídia resultam num processo de descaracterização acelerada de final quase sempre melancólico. Parece que, nesses casos, o candidato a mito deve topar tudo por quase nada – entendendo-se por “tudo” desde um banho de loja até a mudança de parceiro ou da própria imagem. Quinze ou dez minutos de fama já são tudo de bom. Demorou. Se tiver retrato no jornal e/ou aparição na tv, mesmo meteórica, foi bom demais.
A importância intrínseca do candidato pode ser nula. Por exemplo, o cara não é herói nem muito menos expert de coisa nenhuma; não tem a menor idéia de seu papel no mundo, porque só quer a fama, ainda que sem referencial que a justifique. É um ego com fermento, quase sempre oco; respeita bem pouco a si e aos outros, e faz qualquer negócio que chame a atenção do (nem sempre) respeitável público.

A esse tipo corresponde a definição do Houaiss:
6 Derivação: sentido figurado.
construção mental de algo idealizado, sem comprovação prática; idéia, estereótipo

Estariam nesse caso as figuras idealizadas daquele que se imagina capaz de incendiar corações por sua mera aparição e a “celebridade-tipo-Caras”, ideal dos obcecados pela fama.

O degrau superior aos que se satisfazem encarnando um estereótipo é o dos que aparecem por algum dinheiro ou chance de trabalho, tipo BBB ou programa de calouros, juntando assim o útil ao agradável. Ou nem tão agradável assim. Mesmo que a fama conseguida seja de burro, grosso ou péssimo caráter, nada disso importa, se daí advier alguma vantagem ou lucro. Nesse caso não se desce à condição lamentável de coisificação do nada. Se der azar, o lucro pode ser bem pequeno, mas é lucro, alguma coisa pra somar. Se não dignifica, ao menos gratifica.

De degrau em degrau, conhecemos os que conquistam uma condição equiparável à de mitos. São mitos de qualidade, e mesmo que alguém não se agrade de sua voz, do modo como representam ou das obras que realizam, tiveram trabalho, lutaram e sofreram para construir uma carreira; enfrentaram muito mais que os picaretas da mídia e a opinião de um público desqualificado. Nesses casos a fama não foi o objetivo, mas uma decorrência, nem foi uma gratificação precária que os mobilizou.
Não importa o que tiveram que enfrentar, se tiveram ou não quem os ajudasse a abrir caminho. Quase sempre conseguiram algum apoio, mas deram tudo de si para mostrar seu trabalho e um talento em que acreditaram e nos quais investiram. São muitas as histórias de gente que se impôs à admiração de quem sabe apreciá-los e respeitar seu valor. Existe até gente de grande qualidade pessoal e profissional que não chegou lá, não teve oportunidade ou nem procurou reconhecimento à altura.

Exemplo desse último caso foi Jayme Ovalle, cuja biografia escrita por Humberto Werneck vai ser lançada na Flip deste ano, num livro que se chama Jayme Ovalle – o santo sujo. Amigo da fina flor dos artistas, poetas e cronistas de seu tempo, Ovalle não deixou registradas senão amostras de seu trabalho. Na crônica “A porta do céu”, de 1955, Drummond se referiu a sua presença como “uma iluminação mística ou humorística”. Bandeira fala de sua “intuição prodigiosa”, Vinícius considerava sua linguagem poética e sua presença maravilhosas e Sabino disse dele que era “um dos maiores espetáculos de inteligência e intuição, através de sua capacidade de viver e pensar poeticamente”.* São dele as letras de Azulão e Modinha, que você não deve conhecer se tiver menos de 40, mas valem a pena.

Seria tão bom que os candidatos a mito-a-qualquer-preço percebessem a diferença entre somar ninharias e multiplicar talentos!

* Os dados são da Folha de São Paulo de sexta-feira, 27 de junho, caderno Ilustrada.

quinta-feira, 19 de junho de 2008

Nosso passado no Caribe



Como disse Ítalo Calvino em abençoadas palavras, as cidades se parecem muito com as pessoas. Umas são briguentas, irritadiças e perigosas. Algumas comem em excesso, algumas são rancorosas, e outras existem ainda que de tão lindas atraem muita gente, o que às vezes complica suas vidas e lhes tira a paz. De risonhas paisagens, no entanto, parecem estar sempre de bom humor, dispostas a viver a vida até as últimas conseqüências. Acredito que o Rio de Janeiro esteja entre estas, sempre assolado por gente de todos os tipos e latitudes. Muitas dessas gentes não têm onde morar, não conseguem ganhar dinheiro, e acabam engrossando as legiões inadimplentes dos moradores de favelas e bairros esquecidos de Deus e dos políticos depois que passam as eleições.
Diferente desse estatuto migratório e social, Havana é também uma cidade vital, alegre por natureza, embora não tão explicitamente quanto essa urbe sem superego que é o Rio. Superegos à parte, havaneses e cariocas têm em comum um passado colonialista quase fatal, a simpatia, o misticismo de raízes misturadas, o calor humano, a sensualidade e o jeitinho que quase tudo consegue, permite e encobre. Não é pouca coisa. Não depende de normas ou medidas governamentais.
Mas há um estágio desses dois povos que se encontra fora do tempo oficial, e que aqui no Rio tem hoje um sabor de coisa antiga que a gente vê em fotos cor de sépia e que as gerações chegadas depois dos anos 70 não testemunharam o suficiente para perceber sua natureza. Em Havana, ao contrário, essa fase perdura há décadas sem previsão de mudanças a médio prazo. O fato a seguir, narrado por um turista norte-americano, mostra que é forte o bastante para marcar uma semelhança fraterna, ainda que assimétrica, entre as histórias privadas de nossas cidades.
O turista em questão conta que seu despertador parou de funcionar quando estava em Cuba. Pensou em comprar outro no dia seguinte. Perguntou à dona da casa em que se hospedara onde encontrar uma relojoaria pelas imediações, mas a mulher abanou a cabeça sorrindo. “Não seja bobo. Pra que comprar outro? Leve o despertador a um relojoeiro aqui perto, ele conserta e pronto.” Mesmo sem fazer muita fé, o turista fez o que ela dizia. Entrou numa das lojas do ramo nas imediações e alguém lhe indicou uma gasta bancada de madeira iluminada por uma forte lâmpada e coberta de ferramentas e instrumentos do ofício, diante da qual um profissional trabalhava, os olhos protegidos da luz por uma pala preta. O turista, um engenheiro americano, identificou quase todos os instrumentos espalhados sobre a mesa. O homem pegou o relógio de sua mão e o examinou curioso. “Nunca tinha visto um desse tipo”, comentou com grande interesse. Depois o depositou na superfície a sua frente e habilmente checou a bateria, removeu o miolo, os pinos, olhou tudo cuidadosamente e tornou a montar o mecanismo. Nada. O relógio continuava parado. O homem refez a manobra toda, ainda mais atentamente.
Dez minutos depois, o engenheiro, acostumado ao pragmatismo que o mercado cultiva com afinco e eficiência em proveito próprio, perguntou se não seria melhor desistir, e tentou convencê-lo de vez oferecendo-lhe de presente as peças novamente dispersas sobre a bancada. Disse-lhe sorrindo que não perdesse seu precioso tempo com aquilo, não valia a pena. Já ia se despedir do relojoeiro e voltar à porta da oficina, mas o homenzinho o olhou com um misto de espanto e leve indignação. “Como assim, desistir? O senhor não trouxe seu relógio para consertar? Estou aqui para isso. É com isso que ganho minha vida; fui treinado para consertar qualquer relógio, e mesmo esse, um pouco diferente dos outros que conheço, pode ser consertado. Palavra de profissional.” O turista ficou calado, respirou um pouco mais fundo e resolveu esperar. Percebeu que estava ferindo os brios do homem e que, além disso, ele jamais compreenderia que o dono de um objeto passível de conserto se dispusesse a gastar mais dinheiro comprando outro. Recostou-se pois à lateral da bancada e ficou olhando.
Se fosse um natural da terra, com certeza iria tomar um trago na esquina e aproveitar o tempo olhando as mulheres que passavam ou fumando um cigarro. Mas não era, e sofria dessa retidão esterilizante dos homens pragmáticos, que não sabem gozar as aparas de liberdade que o tempo às vezes nos oferece de graça. Ficou portanto ali durante quase meia hora, comprazendo-se em ver e rever tudo que havia na oficina, concentrado na destreza do relojoeiro, o qual, tendo montado e desmontado as peças vezes incontáveis, soltou um grunhido de discreta satisfação. “Achei”, anunciou sorridente. “Entrou um tiquinho de umidade na máquina e ela emperrou.” Remontou o relógio em poucos segundos e o pôs a funcionar diante do dono. Tudo em ordem: bateria, mecanismo com movimentos regulares, ponteiros deslizando sem problemas, alarme em absoluto sincronismo e sonoridade. Cobrou sete pesos – trinta centavos de dólar. “Foram os 30 cents mais divertidos que deixei em 0Cuba”, diz o americano, até hoje encantado com o episódio, recomendando que ninguém deixe de recorrer aos maravilhosos profissionais em que o país é pródigo, “só pelo prazer de ver seus objetos sendo consertados por esses experts”, além de aprender ao vivo o valor que podem ter as coisas usadas e vislumbrar o enorme potencial de reciclagem que deve existir no mundo desenvolvido, onde há muito mais o que consertar.
As cidades vivem simultaneamente em tempo diversos. Talvez Havana seja nosso passado morando numa ilha do Caribe. Porque já vivemos nesse tempo em que a maioria acreditava que as coisas usadas têm um valor intrínseco e é sempre melhor consertá-las quando é preciso, porque sai mais barato; porque os objetos quase sempre são para seu dono algo que escapa à visão do deus burro, ávido e imediatista que é o mercado; porque é útil para o povo que haja espaços de trabalho tão acessíveis como os de relojoeiro, sapateiro, costureiros sem grife, profissionais que podem viver de seu trabalho sem pedir nada a ninguém e sem precisar de formação acadêmica.
Pode ser também que o turista americano tenha sido tocado de modo decisivo por algo de que ele nem ousou se aperceber claramente, porque não lhe é familiar a não ser mediado pela assepsia de palavras impressas ou imagens projetadas da poesia do obscuro, do dia-a-dia sem glamour, do velho neo-realismo italiano ou dos romances russos. Um estado de espírito que já vivemos intensamente, e subsiste apenas em uma faixa cada vez mais estreita da classe média baixa. O resto há muito já embarcou naquele trem de pobres festivos, consumistas e encalacrados, que preferem constar de todos os serasas da vida a cair de novo no limbo de uma vida sem dívidas e sem tevê digital.

quarta-feira, 11 de junho de 2008

Fingidores


Menina a ler. Sem menção de autor.

"Poesia não vende", frase que é o lema de tantos editores e motivo de desalento para tantos autores, deve ter alguma explicação. Não acredito que só os doutores em literatura sejam capazes de apreciar um bom poema. Bem ao contrário, muito saber pode fazer um bom crítico, mas dificilmente fabricar um bom poeta ou leitor de poemas.
Também não creio que o tema seja causa de sucesso no gênero. Às vezes angústia, amor, solidão rendem bons poemas. Mas um poema depende menos do tema escolhido que do modo como é escrito. Boas intenções não fazem bons poemas, dizem os entendidos. Inversamente, um tema sem brilho e até escatológico pode vibrar de poesia. Exemplos mais à mão: Manoel de Barros: "Todos lhe ensinavam para inútil/Aves faziam bosta nos seus cabelos." É ainda ele quem nos ensina: "Há certas frases que se iluminam pelo opaco."* Rimbaud fala de si próprio como "o rapazinho ébrio do mictório da taverna, encantado com a planta diurética que dissolve um cálculo!"** Ezra Pound extrai da palavra usura um canto sombrio e lindo, que é como um baixo-relevo.***
Um poema é a expressão de uma vivência recriada. Tem tudo a ver com a concretude das coisas, os sentidos – "Quero apalpar o som das violetas./Ajeito os ombros para entardecer."* – e é servido pela música das palavras, pelas dobras onde as palavras escondem sua riqueza. Um poema não é desabafo nem panfleto, não está comprometido com um fim fora dele mesmo. É um trabalho artesanal e suas matérias-primas são sensações, percepções, memória, afeto represado (não necessariamente afeto no sentido de amar ou querer bem, mas no de ser afetado por alguma coisa que movimente a energia vital, a libido).
Pessoa diz que "o poeta é um fingidor/finge tão completamente/que chega a fingir que é dor/a dor que deveras sente." Acontece que a poesia, eu acho, é uma forma de viver, de ver o mundo. A realidade é uma mina de poesia, à qual é preciso descer e se dispor a explorar – e quem desce a uma mina já sabe que vai enfrentar passagens estreitas, sujar a roupa, machucar as mãos e eventualmente corre o risco de ficar soterrado. Se o metal valer a pena...
A poesia está onde o senso comum nem desconfia. Quem vira a cara para não ver o mundo através de um olhar próprio, peculiar e intransferível (um pouco como o olhar das crianças); quem se acomoda no conforto do convencional, de certezas e verdades sem saída, não será capaz de reconhecê-la. "Desaprender oito horas por dia ensina os princípios."*
Por tudo isso, acredito que o pouco sucesso de livros de poesia no mercado se deva mais à formação deficiente da sensibilidade das pessoas do que à forma da expressão poética. E para começar a mudar isso, nada seria melhor do que incentivar, muito e desde cedo, a simples leitura de textos que não fossem auto-ajuda nem afins. Se a gente observar bem, verá que o caminho da poesia já se esboça em textos que não pertencem formalmente ao gênero: boa literatura, prosa bem construída, ficção de qualidade trazem sempre um traço de fantasia, linguagem criativa e boas imagens - ou seja, sementes de poesia.

*Barros, Manoel de. O livro das ignorãças. Rio de Janeiro-São Paulo: Record, 1993.
** Rimbaud, Jean Arthur. Uma temporada no inferno. Trad. Paulo Hecker Filho. Porto Alegre: L&PM, 1997.
*** Pound, Ezra. The Cantos. The Pocket Book of Modern Verse, s.d.

terça-feira, 3 de junho de 2008

Notas do cotidiano


Foto Fernando Gonçalves.

Hoje de manhã, quando descia para o trabalho, vi Kafka de pé num ponto de ônibus. Vestia um terno marrom escuro, paletó aberto, e uma gravata com toques castanho-dourados que lhe caía muito bem, um pouco agitada pelo vento. Olhava o mundo e o trânsito com a mesma cara que a literatura imortalizou, com menos gomalina nos cabelos. E imagino que agora terá tantos motivos de inspiração que talvez desista de escrever, porque a realidade já lhe tomou a frente, sendo atualmente mais kafkiana do que ele.
O porquê fica por conta das muitas respostas possíveis, todas certamente muito apropriadas.


**

Quanto às ameaças que nos rodeiam, não nos deixam outro remédio (a nós e ao presidente) do que pensar em outra coisa, ao bom estilo histérico de fingir que não está acontecendo nada que uns discursinhos delirantes não resolvam. Brasileiro tem bom coração, povo bom esse, se sensibiliza com qualquer desculpa esfarrapada. Além disso tem em comum com o alto dignitário essa paixão pelo futebol que às vezes facilita tanto a vida dos dignitários. Entende também perfeitamente que o presidente podia estar distraído na hora em que novos golpes eram combinados ao lado dele, acordos ominosos se fechavam e autorizações de desmatamento eram assinadas a seu lado. Vai ver o eu do presidente pairava no céu dos altos desígnios e das metáforas, e quem estava ali era só o mim.

segunda-feira, 26 de maio de 2008

Jogo de todos os erros


Imagem Albert Duhrer. Melancholia. 1510.

Taí o mundo. Um jogo armado como na mídia: vilões, mocinhos, princesas, bandidos, vítimas e algozes ficam nítidos e fáceis de entender. Peças de game, todas com papéis definidos e objetivos claros. E as notícias mais pungentes das manchetes ganham um tom palatável, se as lermos numa boa poltrona.
Taí o mundo. Um cipoal de caras, pernas e braços. O mocinho roubou o laptop do pai da mocinha, o vizinho boa pinta era chefe da quadrilha que assaltou o condomínio do outro quarteirão e a linda madrasta da menina não ficou com cara de bruxa por causa do ódio que derretia seu coração. O noticiário não conta onde começaram os acontecimentos. Ou porque isso afugentaria muita gente que hoje se baseia nas notícias para julgar os personagens envolvidos; ou porque buscar as causas é papel do jornalismo investigativo, e só os casos de muita repercussão merecem ser investigados e vendem jornais e revistas.
À mídia compete informar e manter o ibope em boas médias de audiência. Por isso o telejornal tem que dar as notícias dosando assuntos escabrosos com sorridentes referências a eventos de moda; noticiar as seis mortes causadas por um bêbado ao volante, e logo substituir o ar sombrio que convém ao momento pelo placar que consagrou o Flamengo campeão; falar de mais um escândalo protagonizado por representantes do povo e logo amenizar a má impressão com a vida de glamour e o charme das celebridades mais recentes.
À mídia compete morder e soprar para manter os índices de audiência; embalar os espectadores com um recado subliminar que lhes garanta momentos de refresco, sem chamar a atenção para o que há por trás das notícias: um emaranhado de dramas, carências, ambições hipertrofiadas e instintos liberados pela falta de limites e de uma educação adequada, que formaria cidadãos minimamente comprometidos com o bem comum.
Os acontecimentos, bons ou maus, são a parte visível de uma ou várias cascatas de outros acontecimentos que se ligam ao infinito. Será tão difícil temperar as notícias com uma pitada de reflexão? Para isso talvez bastasse um pouco mais de investigação e coerência, que na certa não fariam baixar o ibope, porque o público entenderia muito bem uma visão menos superficial das notícias, e acho até que está carente disso. Sem hipocrisia, caretice nem moralismo barato.

domingo, 18 de maio de 2008

O lado bom das coisas


Rembrandt. Adão e Eva.

Quando acordou da anestesia que Deus lhe aplicou para tirar sua costela e fazer a mulher, Adão deve ter na mesma hora corrido atrás de Eva para tentar restabelecer a falta. Não conseguindo alcançá-la, fechou o portão do paraíso para que ela não pudesse sair. Ela então fez amizade com a serpente e aprendeu uma porção de coisas que nem passavam pela cabeça dele. Acabou conseguindo que o próprio Deus abrisse o portão.
Daí pra frente foi acontecendo tanta coisa que ele desistiu de restaurar a costela e afinal convenceu-se de que era melhor deixar que aquela criatura fosse ela mesma. Mais um pouco, Adão foi ficando tão impressionado com a performance de sua costelinha falante que passou a procurar entendê-la melhor, ouvir e aproveitar suas idéias. Mais recentemente chegou mesmo a delicadezas impensáveis anos atrás, como não esquecer o dia do aniversário dela e demonstrar sem medo sua ternura e sua admiração. Em casos excepcionais, chega a ser mãe junto com ela, dividindo preocupações e também coisas mais concretas, como levar as crianças à escola e à pracinha, cuidar do filho doente ou fazer com eles o dever de casa.
Eita mundinho bom!!!

sábado, 10 de maio de 2008

Querida mamãe



Quando resolvemos casar, Dilo e eu sabíamos que nossa vida em comum não seria como a da maior parte dos casais que conhecemos. Não conseguimos imaginar um dia-a-dia de renúncias e submissões, sempre lutando contra para conseguir levar a vida adiante. A gente quer lutar a favor. Já chegam as obrigações de trabalho, as horas marcadas e o corre-corre para comer o tal pão com o suor do rosto (argh!). Por isso combinamos que nossa casa tem que ser arejada, alegre e cheia de sol. Onde cada dia seja realmente novo, onde haja lugar para surpresas e improvisos. No que depender de nós, queremos dar sempre alegria e bem-estar um ao outro.
Para começar, separamos um quarto para o amor e o resto da casa ficou para a amizade, o companheirismo e a solidão, quando der na telha de um ficar sozinho (às vezes é muito preciso, pode acreditar). No quarto, a condição é não duvidar de nada e confiar sempre. Temos uma comunhão universal de propósitos, e a felicidade veio morar com a gente e não parece disposta a mudar de endereço. Cada um diz ao outro as coisas de modo natural e nunca, nunca mesmo, faz com que ele se sinta desrespeitado. E acredita em tudo que o outro disser. Cumplicidade completa.
Não é invenção do machista da dupla, planejando me passar pra trás e pular a cerca sem conseqüências. A maioria das mulheres ainda pensa assim. O trato vale para os dois do mesmo jeitinho. Queremos ficar juntos, é tudo que mais queremos nesse mundo. Mas se entre nós se interpõe a vida com suas exigências inesperadas, somos realistas o suficiente para entender que não há como lhe resistir. A vida é sempre mais forte. Um dia ela nos pega pelo pé. É uma decisão nossa, e pode acreditar que não há cinismo em pensar desse jeito. Não é o que chamam “casamento aberto”, porque não há propósitos. Fizemos um pacto: as coisas têm que acontecer espontaneamente. Eu sei que é difícil de acreditar. Mas enquanto o outro quiser ser acreditado, é sinal de que não desistiu do grande encontro, da cumplicidade total nem do segredo nem de nada. Isso é o que vale para o amor – que a gente ainda se queira acima de todo o resto, seja lá o que for, que cuide um do outro como a coisa mais importante do mundo. Que o amor seja do tipo que traz também amizade e confiança. A gente só acredita em casamento se for desse jeito.
Pode pintar ciúme, faz parte da coisa toda. Não é proibido, é até um bom sinal. Mas não pode ficar solto feito bicho brabo. É parte da gente, tem que ser tratado com carinho pelos dois como um aliado que vai nos levar à reconciliação (quer coisa mais gostosa que se reconciliar?). Depois, não é proibido brigar. É mesmo impossível não brigar nunca, já que, por mais cúmplices, somos dois. Se a gente não tivesse a liberdade de brigar, ia acabar numa camisa-de-força se odiando. Mas está implícito que a liberdade deve valer em todos os casos, e se acontecer o que agora nos parece impossível, mas a experiência diz que pode acontecer – o amor ficar doente ou até morrer – o carinho não morre. É uma delícia saber que, aconteça o que acontecer, seremos sempre amigos, cúmplices e se possível confidentes. Grandes amigos, leais por toda vida.
Quanto ao cotidiano, acontece justamente o contrário: é preciso duvidar sempre, manter as inadequações funcionando e garantir um mínimo de diversão no dia-a-dia. Não creio por exemplo que ele seja capaz consertar o banco do jardim, e faço questão que ele saiba disso. Deixarei que experimente o martelo e os pregos, mergulharei ternamente seus dedos inchados em gelo e, se o pior acontecer, bem humorados jogaremos fora o banco de ripas quebradas que nos terá rendido uma boa história para a próxima reunião com os amigos. Ele não levará a sério minhas tentativas de conseguir um suflê mais leve que o de sua tia Aurora, mas há de prová-lo com gula – e pode rir de mim se eu perder a aposta, porque depois a gente vai se beijar. Seguiremos pelo dia-a-dia fazendo tudo que desejamos sem abrir mão do direito de errar, experimentar e tentar de novo. Caroços no mingau, infiltações no teto, arranhões no carro novo, tudo será superado, mesmo que seja irritante – irritação libera adrenalina, e adrenalina é ótimo pra viver.
Nos casos críticos, como mágoas ou decepções, o segredo maior está em deixar a discussão para três dias depois – passado portanto o momento cabeça-quente, motivo maior das querelas fatais. Depois de frios, os fatos mais desagradáveis podem render boas piadas e se tornar estimulantes. Mas quando não for possível deixar de brigar, se a adrenalina transbordar e invadir o sangue como fogo na pólvora, brigaremos pra valer. Sem agressão física, é claro, mas com licença para exercer raiva explícita e atuante, valendo até quebrar jarras ou copos (menos os do jogo de cristal). Ao contrário do que possam imaginar, tais crises funcionam como poderoso afrodisíaco.
Sabe, mãe, a gente quer se amar, porque é bom demais, e vamos tentar levar adiante nosso plano de vida. Querer reduzir o outro a si mesmo pode estragar tudo. Nossa casa tem que ter espaço para cada um do jeito que é.
Não contamos a ninguém nosso segredo, mas afinal você é nossa melhor amiga e merece partilhar dessa felicidade que inventamos. Isso vai tornar você a mãe bem-amada de um casal feliz.
Muitos beijos e todo o carinho de seus filhos
Lulu e Dilo
PS: Sei que você está pensando em como vão ficar as coisas quando tivermos filhos (que nós queremos e você também, não pense que me engana!). Por enquanto só podemos dizer que tudo que desejamos para eles é que aprendam a amar com a gente. O resto se ajeita. Santo Agostinho disse “ama e faze o que quiseres”, não disse?

quinta-feira, 1 de maio de 2008

Desigualdade ou emancipação?



Jacques Rancière. O mestre ignorante. Cinco lições sobre a emancipação intelectual. 2ed. Trad. Lílian do Valle. Belo Horizonte: Autêntica, 2004. 192p.

Partindo de uma experiência insólita em sua longa carreira de pedagogo, Joseph Jacotot, professor francês do início do século XIX, apercebeu-se de que o processo de aprendizagem pode não consistir naquilo em que o senso comum e a teoria então vigente (e vigente até hoje, temos que reconhecer) haviam consagrado. O que Rancière denomina de “aventura intelectual” aconteceu-lhe quando, exilado por motivos políticos nos Países-Baixos, Jacotot ocupava o posto de leitor de literatura francesa em meio período. Ignorando o holandês, o mestre não teria como responder às dúvidas de seus alunos sem que alguma coisa em comum o ligasse a eles como canal de comunicação eficiente o bastante. Esse canal se apresentou sob a forma de um livro – o Telêmaco em edição bilíngüe publicada em Bruxelas. Por meio de um intérprete, ele indicou o livro aos estudantes, recomendando que aprendessem, com o auxílio da tradução, o texto francês.

“Quando eles haviam atingido a metade do livro primeiro, mandou dizer-lhes que repetissem sem parar o que haviam aprendido e, quanto ao resto, que se contentassem em lê-lo para poder narrá-lo. Era uma solução de improviso, mas também, em pequena escala, uma experiência filosófica, no gosto daquelas tão apreciadas no Século das Luzes. E Joseph Jacotot, em 1818, permanecia um homem do século passado.”

Esperando um resultado desastroso, o mestre pediu então aos alunos que escrevessem em francês o que achavam do texto lido. Era uma avaliação necessária da experiência totalmente empírica imposta pelo acaso. A surpresa no entanto foi das melhores: “seus alunos, abandonados a si mesmos, se haviam saído tão bem dessa difícil situação quanto o fariam muitos franceses”. Constatou que haviam sido capazes de entender o texto e com isso aprender francês o bastante para escrever na nova língua sobre o que haviam lido.

A experiência, capaz de revolucionar seu espírito, levou o pedagogo a desenvolver uma reflexão crítica sobre qual seria de fato a grande tarefa dos mestres. A conclusão a que chegou constitui a heterodoxa teoria, inaceitável para a época, de que ensinar à maneira tradicional – um mestre que “sabe” liberando frações de seu saber para alunos ignorantes – é perpetuar a distância que faz da sociedade (e da escola, seu símbolo) um lugar estruturado em torno de fossos intransponíveis a separar mestre e aluno, quem sabe mais e quem sabe menos, quem manda e quem obedece, quem tem mais ou menos poder. Em resumo: os “melhores da turma” sempre deteriam o poder e a regência dos outros, os que ignoram, os que não conseguiram ser bem-sucedidos e nunca chegariam a sê-lo se não lhes ocorresse o “clique” que permite o acesso a sua verdade mais subjetiva, onde se encontra a fonte dos melhores recursos e o caminho aberto às aptidões intelectuais de cada um.

O esforço para seguir os passos do mestre e assim transpor a distância que separa o aluno dele é um enganoso método de progresso pessoal, segundo o ponto de vista de Jacotot. Porque esse esforço roubará dos discípulos a energia e a espontaneidade de que necessitam para descobrir por si mesmos o que convencionalmente aprendem a ver com os olhos de outros, acumulando saberes parcelados, muitas vezes impossíveis de reter. A experiência era de ordem cartesiana: teria que envolver mais que informações acumuladas. O exercício da curiosidade natural e a vontade genuína de conhecer suprem métodos sofisticados e elaborados que chegam de fora, pelo pensamento arbitrário dos que detêm o poder de ensinar.

A esse processo espontâneo de aprendizagem, Jacotot atribui como resultado um saber que é necessariamente também conhecimento, no sentido de que aquilo que assim se aprende é compreendido e incorporado a um acervo pessoal sob a forma de experiência vivida e indelével.

Por essa e outras razões conexas, Rancière percorre propositadamente um conjunto de atalhos e caminhos que examinam a teoria pedagógica convencional. Sem utilizar conceitos consagrados ou idéias que são pontos pacíficos para os defensores da escola que conhecemos, busca em cada capítulo e em cada item do livro revisitar o processo de aprendizagem com a liberdade de quem descobriu uma nova vertente. A novidade era abolir-se a noção segundo a qual “há seres inferiores e superiores; os inferiores não podem o que podem os superiores”. Essa “hierarquia das inteligências” perpetuaria as desigualdades que beneficiam os detentores do poder.

“Não há inteligência onde há uma agregação, ligadura de um espírito a outro espírito. Há inteligência ali onde cada um age, narra o que ele fez e fornece os meios de verificação da realidade de sua ação.”

A veracidade está no cerne dessa experiência. Assim, é a experiência de cada um – que ele chama “seu próprio negócio” – que o levará ao conhecimento. Um pai ignorante pode levar o filho a adquirir conhecimento, contanto que dê a ele a oportunidade de descobrir por si só esse conhecimento, não como “um pedagogo gentil”, mas como “um mestre intratável” que levará o filho a querer se emancipar. Para isso, todas as faculdades são chamadas: atenção, determinação, persistência, curiosidade. Quando alguém efetivamente aprende alguma coisa, aprende porque quer aprender; e para isso está acima de tudo sozinho, interessado e entregue a sua experiência. Ele quer “adivinhar”, está atento aos indícios e à tradução do que lê, do que vê e analisa.

O traço socrático dessa atitude é bem visível: na base de tudo está o “conhece-te a ti mesmo”. Assim como no caso de Sócrates, que a seu tempo deu origem a uma escola com reflexos políticos em seu meio, o Ensino Universal, como foi chamado mais tarde o pensamento gerado pela aventura intelectual de Jacotot, não conseguiria manter sua força original. Mas na verdade, jamais morreria.

terça-feira, 22 de abril de 2008

Coisas do Rio



O Rio tem um quê de inesperado. Aqui acontecem coisas difíceis de encontrar em outras cidades do mundo, até mesmo do Brasil. São traços de personalidade que os cariocas e seus amigos de fora vão absorvendo, à medida que se acostumam às ruas, bairros urbanos ou da periferia. São cenas típicas, sentimentos que se instalam na gente que vive aqui; paisagens que incorporamos ao dia-a-dia; costumes que se adotam sem saber bem por quê. Nada mais característico do Rio do que essa sensação de gratuidade, esse contágio fácil que vai generalizando um jeito de viver e agir; que inventa hábitos, expressões, gírias que acabam incorporadas ao carioquês. O jeito de vestir irreverente, a informalidade. A vivacidade, uma espécie de astúcia malandra de procurar o que fica mais simples, mais à mão, o que soa mais despreocupado e casual. A alegria de viver que chega às raias da inconseqüência. Um certo atrevimento. E mesmo no inverno, o descaramento de sair sem casaco num frio de dez graus. Ou de casaco e sandália havaiana. Só um carioca pode fazer questão de ignorar o guarda-chuva, faça o tempo que fizer. E só as (poucas) cotias do Campo de Santana não fogem das pessoas. Passa-se pela lagoa e lá está uma ave desafiadora na proa de um barco, e a gente pára só pra ver um vôo se desenhar no meio do céu.
De repente, um poodle miniatura chama para a briga os pés de quem passa e todos se encantam por ele, enquanto sua dona segue adiante e deixa na calçada os dejetos do bichinho como se não tivesse notado. Ninguém como um carioca sabe se fazer de desentendido, quando lhe interessa. Ninguém desconversa melhor. E ninguém liga pra isso; há uma ética do desinteresse que sustenta a infinita tolerância carioca para com a contravenção, o crime, a bandalha, o relaxamento. O carioca é um leniente que perdeu o freio.
São cariocas os motoristas machões e marrentos e o poder desassombrado dos pivetes de qualquer idade. O carioca é cheio de saídas criativas. Improvisa, programa só pra não cumprir e não cumpre horários, a não ser que o emprego seja dos bons. Pode conviver com o caos e a promiscuidade das ruas, dos bares, das boates sem perder uma ponta de compaixão e uma leveza que recria pessoas e ambientes, mas de repente se invoca por qualquer bobagem e parte para a briga.
É bem a nossa cara virar padrinho de um garoto de rua, ficar inteiramente eufórico por isso e depois perder o afilhado de vista. Acreditar cegamente em alguém só porque tem uma boa conversa. Apaixonar-se de repente por alguém que nunca viu. Fazer amizades instantâneas como se morasse no paraíso.
E no entanto o paraíso carioca é cada vez mais apenas uma linda paisagem. Parece que as virtudes desse povo criaram raízes tão enormes que, com o passar do tempo, viraram um cipoal em que se tropeça a toda hora e atrapalha a vida. Porque uma virtude é o extremo oposto de um defeito, e acontece que os extremos sempre se tocam.

quarta-feira, 16 de abril de 2008

Tamagoshi falante



O celular, esse secretário do dia-a-dia, resolve tantos problemas quanto os que cria. É verdade que posso falar com quase qualquer pessoa que me interesse de quase qualquer lugar e quase a qualquer hora. Mas se o levar muito a sério (e às vezes é preciso), transformo o aparelhinho de aparência inofensiva num ser que de alguma forma me domina. Um tamagoshi (lembram dele?). Uma espécie de filho sem o amor necessário para cuidar dele sem irritação.
Se estou no cinema, no teatro, em um show ou num casamento, mas espero uma chamada importante, tenho que baixar o volume do ringtone para que não me faça pagar um mico, mas devo mantê-lo em contato comigo para não perder a tal chamada. E a chamada que recebo ou é engano ou é do corretor que me vendeu um apartamento no ano passado e tem uma ótima sugestão de cobertura na Barra que não me desperta nenhum interesse. No trabalho, no carro, em casa, há diferentes protocolos para lidar com ele: ligar, desligar, menos ou mais volume, nunca perder de vista e de ouvido, manter contato físico ou não. Num passeio ou reunião informal, é câmera fotográfica obrigatória, porque as pessoas ficam discretamente ofendidas de não merecerem a atenção de uma foto. E se você possui um celular sem câmera, que espécie de pessoa será você?
E quando o som picota, e você não sabe se grita, chega perto da janela ou sacode o bichinho? E os sinais misteriosos que ele emite em seu visor mas não lhe dizem nada absolutamente? E os recadinhos indecifráveis que exibe, ainda que a chamada corra normalmente, só para: a) intrigar o usuário ou b) mostrar que é que manda nessa relação? E as mensagens comerciais, que o matam de raiva por ter que parar o que estava fazendo para atender ao plim? E se você está dirigindo e esqueceu o fiozinho do áudio? Pela lei de murphy, é multa na certa.
E fique ligado, porque no aeroporto é preciso desligá-lo até depois do embarque, ligá-lo na espera inútil de alguma chamada, porque você não pretende fazer nenhuma, e, chegado ao destino, constatar que justo aquela cidade está na região que ele não pega. Durante seu sono, não desligue o celular, porque alguém pode precisar de você – e aí a moça do telemarketing aproveita a calma das seis e meia da manhã pra começar seu trabalho e acorda você, que foi dormir às quatro e não consegue adormecer de novo.
Enfim, um celular é um must e um saco. Um fardo leve e pequeno quanto à utilidade que pode ter em momentos estratégicos, e uma mala sem alça de um modo geral.