sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

Razão – pedra de toque




Desconfio da segurança com que muita gente se escora nas garantias da razão. Um recurso importante, a razão; acredito que deva ser exercitada por motivos análogos aos que, em outro nível, nos levam a frequentar uma academia e fazer caminhadas. Mas desde a Antiguidade ela tem sido posta em cheque ou francamente desmentida (embora nunca desprezada). E quando Descartes se pôs a fazer malabarismos mentais, tentando provar o que o establishment de sua época considerava a verdade, tudo que conseguiu foi dar argumentos à crítica dos séculos seguintes.

Mas assim como malhar não é tudo, e o corpo precisa de muitos outros cuidados para se manter funcionando e saudável, os argumentos, ilações e conclusões a que chegamos através do pensamento não dão conta sequer da realidade como a conhecemos via sentidos e observação. O que nossos instrumentos físicos e mentais conhecem da realidade não passa de uma fração. A extensão desse pedaço é discutida, e não há como duvidar que, ao longo da história humana, houve e continua havendo avanços nessa matéria. A ciência tem derrubado crenças milenares, e à medida que as pesquisas e a tecnologia progridem, tudo vai se transformando no caleidoscópio do conhecimento.

Mas se o conhecimento se expande e muda de cara a cada século – ultimamente até a cada mês – certas questões continuam incomodando e impulsionando pesquisadores e filósofos. Em matéria de saber, aquilo que incomoda porque não se consegue ver claro, por mais que se persiga, é o que estimula a busca além das fronteiras conquistadas.

Aliás, conquistadas é um termo inexato nesse caso. Muito do que já se considerou dominado, acabou por se mostrar falso ou duvidoso, dando motivo a novas pesquisas e descobertas. Teve razão Bachelard, quando disse que toda hipótese científica tem origem na fantasia ou na imaginação. Isso não significa que a ciência não passe de uma ilusão – embora sob certa perspectiva ela possa ser considerada assim. Só os resultados demonstram o valor e a importância de suas conquistas.

Quanto à razão, não é de admirar que inteligências brilhantes se submetam a uma construção mental e saiam por aí afirmando verdades quem ninguém poderia provar? Não é embaraçoso que gente de talento assuma uma postura cínica ou arrogante em nome de uma teoria? Às vezes me parece que a atitude escrupulosamente cética de certos pensadores funciona como uma antítese à atitude pesadamente crédula do passado, e tem tudo a ver com credulidade. Mas Hegel já saiu de moda, a dialética é uma lei em desuso.

Então lembro aquela constatação rasteira, que diz que os extremos se tocam. Para negar o autoritarismo, algumas pessoas se tornam autoritárias. Querendo se mostrar liberais, impõem seus princípios a quem não acredita neles (em política, isso é um must). Defensores intransigentes do conceito de imanência, fecham-se como teístas fanáticos a qualquer fato ou sentimento que possa arranhá-lo. Tudo isso denota um uso abusivo da razão e seus recursos.

Quando se arvora em juiz e legislador, a razão pode se tornar parceira inseparável da vaidade e do egocentrismo. Reinando sozinha, é incapaz de empatia e não deixa espaço livre para as manobras afetivas, necessidade vital de qualquer pessoa digna desse nome. É preciso desconfiar da razão. Merece respeito e atenção, é boa de diálogo; mas não se pode entregar a ela a chave da casa.

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

Minha amiga Clarice








Clarice Lispector dizia que a vantagem de não ter senão uma cultura limitada é poder entregá-la inteira a outra pessoa. E acrescentava: "E bem sei que triste legado." Ela se considerava inculta – não porque fosse mesmo, mas porque toda pessoa capaz de auto-análise compreende o grau de suas limitações.

Penso em Clarice como se tivesse sido muito amiga dela. Converso com seus textos, e uma vez quase perdi o equilíbrio no trem do metrô, dando de cara com uma mulher extremamente parecida com ela. Quando se fica conhecendo muito a vida de alguém, principalmente se esse alguém fez coisas que a gente admira, acaba-se ficando amigo dessa pessoa, o que é melhor do que idealizar e venerar à distância. Conhecer é meio caminho andado para a amizade. As qualidades, que às vezes invejamos (somos assim mesmo) e às vezes nos passam egocentricamente despercebidas, não nos aproximam tanto do outro quanto as fraquezas e dificuldades com as quais nos identificamos.

Mas conhecer um texto como o de Clarice não deixa ninguém indiferente: ou se fica enfeitiçado, ou se detesta. Algumas pessoas não suportam enigmas, paradoxos ou "imprecisões" de linguagem. Lembram do Jack Nicholson de Melhor impossível? Aqueles que precisam controlar a realidade como quem acerta um relógio; os pragmáticos mórbidos, para quem tudo tem que ter uma finalidade imediata que justifique sua existência; os do tipo avestruz, que preferem esconder a cabeça num buraco para não ver as nuances da realidade; os pretensiosos, donos da verdade, racionalistas radicais, fanáticos de qualquer crença ou preconceituosos, esses dificilmente chegariam a perceber a riqueza e a sutileza de sua obra. Sobre eles, o texto de Clarice passa voando.

Mas à medida que o leitor adere ao desafio do inusitado e se deixa iluminar pelas fosforescências do texto, a cada nova leitura vai descobrir uma nova face da escritora de A hora da estrela. O que supõe um texto fugidio feito de ressonâncias de sensações? Como analisar um bater de asas de borboleta entre os dedos, uma gruta carregada de símbolos e sugestões, o comportamento das pessoas em torno de uma mesa farta, o mistério de uma personalidade inóspita ou uma angústia esmagadora que ela consegue reproduzir com palavras?

Não é preciso um alto grau de perfeição para entender o significado do que ela escreveu; nem mesmo grande cultura ou erudição. Basta um pouco de humildade, amor à palavra e capacidade de sentir com o outro. O texto de Clarice fala diretamente ao coração, e essa é sua maior dificuldade: o coração da gente quase sempre usa colete à prova de emoções genuínas.


sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

A dinâmica do saber







A ciência, a filosofia e qualquer outro ramo de saber demoram anos e décadas para conseguir avançar em suas conquistas. Nem sempre se percebe de início o lado útil e pragmático de uma descoberta. Um pesquisador e um estudioso têm que ser antes de tudo pessoas pacientes, de uma persistência acima da média. Há dados intermediários, dos quais dependem outros e outros. Há dados enganosos, que fazem perder tempo ou invalidam conquistas anteriores. A vocação da pesquisa é árdua e exige dedicação integral.

Dedicação no entanto subentende outros aspectos dessa maratona. É preciso antes de tudo que haja motivos de ordem subjetiva bastante fortes, que haja prazer no que se faz. Não é novidade. Em qualquer área de atividade humana, a busca da perfeição envolve satisfação e bem-estar que justifiquem infindáveis horas de trabalho e até, como no caso dos Curie - ou do Aleijadinho, em outra área - sacrifícios físicos que no entanto não os impediram de trabalhar sem esmorecimento.  Esses motivos constituem o próprio impulso, a razão de alguém se lançar pelo caminho das pedras rumo a um resultado.

Explicar esse impulso é tarefa temerária. Freud o atribui à busca de satisfazer pulsões que, de outro modo, poderiam responder por comportamentos desastrosos do ponto de vista social. Dá a esse fenômeno o nome de sublimação, às vezes interpretado como a procura da perfeição ou do sublime no sentido do belo. Na verdade, hoje se acredita que o processo não envolve necessariamente essa intenção, mas apenas dá uma utilização digamos produtiva à satisfação das pulsões inconscientes.

Gaston Bachelard vê, na origem do interesse pela pesquisa e investigação científicas, a imaginação, o sonho, o devaneio. A visão dele tem a ver com a primitiva explicação de Freud, embora a localize em sua própria área de trabalho, sem fixar sua origem e sem a generalização feita pelo pai da psicanálise. Para Bachelard, isso se explica porque toda hipótese responsável por uma pesquisa está enraizada no processo criativo e livre pelo qual se imagina ou fantasia alguma coisa.

Existe até uma teoria, defendida por Jean Rancière e alguns adeptos ilustres, que explica o aprendizado como exercício do desejo do aprendiz e não como uma distribuição fragmentária do saber maior de um mestre por seus alunos, como acredita a visão tradicional da pedagogia. O livro de Rancière chama-se O mestre ignorante, onde o autor conta o episódio de um mestre que apenas orientou – não “ensinou” – os estudantes para que aprendessem outro idioma e pudessem compreender ideias que ele próprio não dominava de todo. Pensando bem, faz sentido, já que o maior obstáculo ao aprendizado é o desinteresse do aluno.  

Uma outra face da questão está em que, em qualquer disciplina, o saber ético visa sempre explicar e/ou mudar a vida das pessoas para melhor. Se não for assim, é um saber que vira a cara à realidade. Pode produzir apostilas, ensaios, monografias, livros e artigos em publicações especializadas, anais de congressos e seminários. Se ninguém no entanto precisar desses dados para melhor compreender alguma coisa que tenha cheiro de gente e seus correlatos, eles serão certamente consumidos pelo fogo frio da inutilidade que arde em milhares de estantes, bibliotecas e depósitos de papel esquecidos pelo mundo. No pior dos casos, podem mesmo servir a ideologias destruidoras e mesquinhas, como a teoria posta a serviço da inexistente superioridade genética de certas “raças” humanas.

Ao contrário do que imaginam os desavisados, o verdadeiro saber não pretende ser instrumento de poder para poucos, não é arrogante e não exclui ninguém de seus benefícios. Quanto mais se domina um ou vários assuntos, mais claro se percebe a fragilidade humana e a finitude da qual ninguém escapa. O prazer que o conhecimento propicia é íntimo, simples e irresistível. Muito parecido com uma paixão, ele aquece e faz caminhar, leva sempre a quebrar limites, estende para mais longe o horizonte e dá novas razões de viver.  Títulos e diplomas podem existir para efeito externo, podem ser úteis para a vida profissional, mas provam muito pouco. Fundamentalmente, o conhecimento é uma luz sempre acesa, a certeza de um sentido para a vida, uma garantia de não estagnação.





quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

Além de tudo que é sólido



Dali. Gala nua contemplando um espelho invisível.


Como acontece com todo mundo, a imagem de sua consciência tinha vinte anos menos. “Não sou para mim o que sou para os outros” – pensava sempre, e isso era estranho, porque esse pensamento lhe dava uma espécie de paz. Reconhecer um mal-estar ou sentir necessidade de alguma coisa que melhore a vida e nos torne mais livres não é apenas um bom começo: é o que pode levar a uma transformação duradoura. Quando se chega a esse ponto, é sinal de que já se desencadeou um processo de mudança, talvez imperceptível no início.
Não queria os quinze minutos de glória que tanta gente ambiciona. Pressentia que, com o passar do tempo, essa conquista só lhe traria tédio. Depois dos tais quinze minutos (ainda que durassem uma semana ou três meses), sua vida cairia no vazio. Era inteligente e um pouco sofisticada; seu ideal de vida não era habitar a casa do BB nem posar para o Paparazzo; queria um reconhecimento sólido, um pouco além do exigido pelas normas da sociedade. Nenhuma lipo ou lifting conseguiria esse efeito e, embora não se descuidasse da aparência, sabia que isso era apenas a ponta visível do iceberg.
Era uma pessoa mediana – dona de casa, mãe de família, trabalhando num emprego que pagava bem, mas não dava chance de renovação ou quebra da rotina. Nem ela mesma sabia por quê, sentia-se incompreendida, ansiosa por alguma novidade, mas qual?
Vivia numa prisão invisível para os outros, e não sabia por onde escapar. Para os padrões vigentes, sua vida era muito boa – tinha uma casa confortável, frequentava boas diversões, comia em bons lugares, viajava de vez em quando e vestia roupas escolhidas sem grandes restrições de preço. Mas isso não era tudo. E não era mesmo: para se sentir digna da existência e contente consigo mesma, uma pessoa precisa de recursos materiais para o essencial ou muito pouco mais. O resto é outra conversa.
A proverbial afirmativa de que a verdadeira riqueza está no espírito pode até ser verdadeira, mas não esclarece muito. Espírito é um conceito muito amplo, abstrato, e sua questão era pragmática. Sabia que o melhor da vida não é fruto do tão falado “pensamento positivo”. Nada vem a nosso encontro de graça ou por mágica, muito menos a felicidade sem preço de se sentir confortável consigo mesmo e entre as gentes. Muito mais eficaz é procurar, refletir, experimentar.
Acostumou-se à intuição de que, a qualquer momento, uma coisa aconteceria em sua vida que lhe daria um novo sentido. Essa sensação não a tornou uma otimista incurável, ao contrário: aumentou sua ansiedade, levantou dúvidas quanto ao que se passava em sua mente e a deixou cada vez mais inquieta.
Mas talvez fosse esse o plus que faltava. Pouco tempo depois que essa certeza secreta se instalou nela, teve o que lhe pareceu um estalo do padre Vieira, diante da fotografia original e extraordinariamente bonita de uma paisagem do interior do país. Achou injusto que não tivesse sido ela a autora da foto. Num impulso que surpreendeu a si própria, foi procurar uma máquina fotográfica profissional e fez um curso intensivo que a tornou uma mulher encantada e feliz, de bem com a vida e pacificou suas inquietações.
Principalmente depois do sucesso da primeira exposição, das encomendas e da mudança no ritmo de seu dia-a-dia. Pintaram viagens com que ela sempre sonhara sem esperança. O marido e os filhos, já taludinhos, viajam com ela, quando é possível.
Talvez nem tenha sido a mudança da rotina ou a fama que começa a despontar em torno dela. Aposto nesse fato aparenetemente simples de ter encontrado alguma coisa tão exclusiva, intransferível, que ninguém mais poderia fazer. Poderia ter sido a moda, a culinária, a pintura, a costura. Importa pouco saber em que ela se realiza - mas é essencial saber que se realiza.
Chama-se Flora Jardim, grave bem. Talvez você já tenha ouvido, ou vá ouvir em breve, falar dessa fotógrafa quase famosa, mas principalmente muito contente com a vida e consigo mesma.