domingo, 30 de janeiro de 2011

Pequenos nadas

                        ...
se vieres à minha procura
vem devagar e suavemente para não quebrar a porcelana da minha solidão.
Sohrab Sepehry. Irã, 1928-80.


Outros além do poeta iraniano já disseram, em palavras diferentes, que abordar uma pessoa não é para qualquer um. A começar pelo modo como se acorda quem está adormecido, evitando uma transição muito brusca do sono para a vigília, que faz disparar o coração de susto e começar mal o dia. A não ser no caso de dorminhocos notórios e contumazes, em geral basta um leve toque, uma chamada em voz baixa, e quem estava dormindo acorda sem traumas.
Chamar alguém aos gritos é, mais que uma questão de educação, uma agressão sem motivo. Excetuando-se as situações-limite, como estar preso por dentro, ameaçado de cair da janela ou com a casa em chamas, ninguém precisa pôr a boca no mundo para chamar a atenção dos outros.
Em circunstâncias normais, as pessoas gostam de ser lembradas e procuradas, mas nunca perturbadas por um chato inconveniente. Igualmente incômodo é ser lembrado sempre com intenções utilitárias, como empréstimos de coisas ou dinheiro (argh!), pequenos serviços que não nos competem ou pedidos que às vezes se tornam um transtorno para quem precisa obedecer a horários apertados ou desviar-se de seu rumo para atender ao pidão.
Pouca gente hoje em dia ainda se sente obrigada a aceitar encargos que não lhe dizem respeito. Deixou de ser embaraçoso dizer “não”, ao menos para quem vive nas cidades e tem o tempo contado para suas próprias obrigações, mais escasso ainda para o lazer e o cuidado de si. Mas ainda existe gente, tímida ou inadaptada aos hábitos urbanos, que não tem coragem de se negar a fazer o que lhe pedem. Às vezes viram verdadeiros servidores do outro. E sofrem por isso de um modo insuspeitado.
A abordagem amorosa é um caso aparte, mas nem por isso pode invadir a privacidade do ser amado, como se o fato de amar desse carta-branca ao apaixonado nesse particular. Há quem acredite – ou finja acreditar – que amar é pretexto suficiente para ignorar a necessidade que todo mundo tem de um tempo só para si. Nesse caso, mais que em qualquer outro, o respeito a nossa solidão pode ser motivo para firmar e fazer crescer o amor, um sentimento cada vez mais raro e valioso, que todos desejam e pouca gente conhece de muito perto e pratica de verdade.
Quanto mais íntimo se fica de alguém, mais é preciso estar atento ao tempo de que esse alguém necessita para respirar, cultivar sua paz interior ou refletir e tomar decisões sobre seus problemas. Se o ser amado não preza seus momentos de solidão e parece ter horror a ficar sozinho consigo mesmo ao menos um pouco todos os dias, pode ser que a porcelana de que fala o poeta esteja quebrada. E porcelana não dá pra colar. 

sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

Da urgência de viver


 

Em uma palestra proferida em 1987 para estudantes de cinema, Gilles Deleuze aponta nos personagens de Dostoiévski, filmados por Akiro Kurosawa, uma forma de agitação pela qual estão sempre vitimados pela urgência: “Tânia me espera, é preciso que eu vá”, ou “É um incêndio, é preciso que eu vá” – mas qualquer incidente ou encontro casual com alguém os leva a esquecer a pressa e o chamado. Isso acontece porque, ao mesmo tempo em que são presas dessa urgência, os personagens do autor russo “sabem que há uma questão ainda mais urgente, embora não saibam qual”. Essa noção de que há um problema mais profundo do que aquele da circunstância do momento paralisa os personagens e os desperta para alguma coisa que, embora não definida, é ainda mais urgente. O próprio Kurosawa tem em seus filmes essa marca dostoievskiana de criar personagens inquietos, que se metem em situações incríveis, mas nunca perdem o sentido dessa “coisa mais urgente” que está além de tudo e é a mais importante de todas.
Isso configura uma atitude basicamente filosófica diante da vida. Vamos dizer que os fatos do dia-a-dia são matéria de informação, e essa “coisa mais urgente” seja matéria de contra-informação efetiva, para usar as palavras de Deleuze, porque resiste aos fatos cotidianos e corriqueiros, vai mais além da opinião e da ação imediata.
A sociedade em seus mecanismos de controle não está além do cotidiano; muito ao contrário, dobra-se sobre o cotidiano para mantê-lo dentro de suas normas. O controle se exerce com objetivos pragmáticos, para conseguir resultados concretos. Por isso Deleuze define a arte como ato de resistência à sociedade de controle. Mas não é só isso. Ele se reporta a um conceito de André Malraux: a arte é a única coisa que resiste à morte. O exemplo que ele invoca é bem significativo: uma estatueta de 3 mil anos antes de Cristo ainda causa prazer por sua beleza, e no entanto passaram-se milênios de civilizações e culturas diferentes.
Considerando que a morte é um controle da vida, no sentido de uma limitação imposta, pode-se estender esse conceito até mesmo a gestos e símbolos de resistência que, se não são necessariamente obras ditas de arte, mantêm com elas uma afinidade de significação nos modos como se originam e como afetam a sensibilidade humana. Mas existe sempre, em toda obra de arte, um traço de resistência, de avanço em relação a sua época e de perenidade, no sentido em que ela vale para outro tempo muito além, talvez para sempre, o que é muito para se dizer. Por isso Paul Klee, o pintor, dizia que toda obra de arte faz apelo a um povo que ainda não existe.

sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

Sutilezas

                                       Imagem Cézanne. Vaso de flores.

Não há como fugir: os dias são diferentes, mas iguais no que se sucede – manhãs tardes noites madrugadas horas batendo martelo nos segundos. Os dias são como um leilão do que você quer mas só vai levar se perceber a música do martelo.
As cores mudam, porém, tanto as do céu como as do coração, e os tons são inacreditáveis, de uma pessoa para outra e até para a mesma. As diferenças na mesma pessoa são mais claro-escuro, ton-sur-ton, porque o fundo é meio repetitivo mesmo, fazer o quê? Cada um se faz repetitivamente recaindo no refazer do que mais procura evitar. E quando o sol aparece, por causa desse estado de mesmice aparente, pode dar a sensação de que tudo está igual. Mas até o sol tem matizes e variações, é só prestar atenção para ver: o sol não mostra sempre a mesma face, e às vezes está furioso e queima com raiva, mas às vezes acaricia a pele que nem homem enamorado.
As diferenças de uma mesma pessoa se devem a que os poros deixam entrar sempre o que lhes interessa mais. Além disso, o nunca tem muitas frestas. Se digo “nunca”, na mesma hora meus poros se abrem. Daí advém toda contradição do ser humano, e também suas repetições inesgotáveis e seus melhores prazeres.
Os dias podem parecer iguais naquilo que os outros exigem da gente.
A coisa acontece assim: a gente se repete e recai e refaz o que já andou fazendo a vida toda. Quem vive a nosso lado também recai e repete. Quando alguém refaz seu refazer e ressoa em nossa alma como repetição, é a rotina. A rotina não é o que eu faço, mas o que os outros querem que eu faça, e eu faço, repetindo – não o que eu quero e repito por minha própria conta, porque é meu e é como eu sou, mas o que os outros querem que eu refaça por eles. Nisso consiste o poder de uma pessoa sobre a outra: ser capaz de ressoar sua própria repetição no outro. E quanto maior o poder, maior o número de pessoas a refazer a repetição do poderoso. O que obviamente não é justo nem salutar para ninguém.
Quem apenas ressoa o que o outro repete e o refaz sem conseguir deixar de refazer é um candidato a passa humana. Quem não se libera da gaiola da repetição do outro, é pássaro morto dentro da gaiola sem ninguém para chorar por ele. Quem não olha em volta e procura sintonia para ouvir melhor a música do outro, chama-se submisso e nem merece muito que se chore por ele.