quarta-feira, 31 de março de 2010

O terceiro homem. E talvez o quarto.

Um esboço da (nova) história da espécie humana?

Uma descoberta intrigante, descrita no De Rerum Natura pelo português Paulo Gama: 

O Terceiro Homem


A revista Nature publica esta semana um artigo de quatro páginas que vem revolucionar completamente a nossa história recente. É uma história dos nossos dias como espécie, não dos nossos dias de pessoas com uma vida evolutivamente muito curta, o que é válido para qualquer espécie.

A equipa de Svante Paabo, do Max Planck Institut de Leipzig, publicou os resultados da análise do DNA mitocondrial de um Homo sapiens que viveu no sul da Sibéria há cerca de 30-50 mil anos. O DNA foi extraído da falangeta do quinto dedo da mão. Graças à sua preservação no gelo, foi possível extrair uma quantidade suficiente de DNA em muito bom estado, o que é extremamente raro.

A análise desse DNA mitocondrial, por comparação com o nosso, o de Neandertais, que entretanto se conseguiu obter, e o de chimpanzés, produziu resultados absolutamente inesperados.

O que há de absolutamente especial no homem de Denisova? Não é o facto – real – de não pertencer à nossa subespécie, isto é, não é um Homo sapiens sapiens, ou seja, um homem moderno actual. É que este homem de Denisova também não é um Neandertal. Trata-se de um terceiro Homem!

A distância genética (medida em número médio de nucleótidos diferentes, isto é, de letras trocadas no DNA) entre nós e os Neandertais é de 202 posições nucleotídicas. A distância entre nós e o Homem de Denisova é de 385 posições. Por comparação, a nossa distância em relação aos chimpanzés é de 1462 posições. Isto que dizer que o Homem de Denisova é mais diferente de nós que o Homem de Neanderthal. Supondo que o tempo de divergência entre nós e os chimpanzés é de seis milhões de anos, isso significa que os nosso antepassados e os do Homem de Denisova se terão separado há cerca de um milhão de anos (muito antes da separação humanos-Neandertais: 500 mil anos).

Até hoje, pensava-se que nos últimos 500 mil anos teriam existido apenas duas subespécies da espécie Homo sapiens: Nós e o H. sapiens neandethalensis. Este último, que ocupou grande parte da Europa, durante os últimos 300 mil anos, extinguiu-se há 28 mil anos, com as últimas populações conhecidas encontradas na Península Ibérica. Foram avançadas várias hipóteses para a extinção dos Neandertais que parece ser acompanhada da progressão dos humanos modernos; umas mais benignas que outras para a nossa linhagem. Mas não fazia parte do quadro conceptual que pudessem existir outras formas, mais formas de humanos, com divergências relativamente antigas e cujas populações persistiram até tão recentemente.

Há alguns anos levantou-se a polémica possibilidade de o designado ‘hobbit’, descoberto na Ilha das Flores, no mar de Timor, ser uma espécie ou subespécie diferente da nossa, que desapareceu há pouco mais de dez mil anos. Em alternativa, poderia tratar-se de um caso de nanismo e de mais uma série de patologias reunidas num único indivíduo. Não está ainda resolvido qual das duas hipóteses é a correcta. O mistério do Homem das Flores ainda se encontra em aberto.

A descoberta deste Homem de Denisova, de que não há mais do que aquele fragmento de esqueleto, vem colocar o nosso passado evolutivo num quadro muito diferente. Se este siberiano é um terceiro homem, porque não aceitar que o homem das Flores é um quarto. E, se assim é, torna-se muito mais plausível admitir mais subespécies noutras regiões isoladas. A nossa espécie parece, assim, ter um carácter muito especioso, isto é, com tendência para frequente separação entre populações e rápida evolução em sentidos diversos.

Tudo isto é muito surpreendente. A falangeta do Homem de Denisova aponta para um passado bem diferente do que imaginávamos. Esperemos para saber o que nos dirá a análise do DNA nuclear. Este é um verdadeiro filme de suspense, como o Terceiro homem, de Carol Reed.

quinta-feira, 25 de março de 2010

Minha irmã Esquizinha





Oh Deus, tira essa figura inimiga de dentro de mim. Esquizinha me atrapalha muito a vida. Ela pensa diferente, entende?
Quê? Se ela sair de repente eu caio quebrada em duas, metade pra cada lado? Mas se você me ajudar eu chego junto. Você não tem nada com isso? Como não tem? Então eu acredito em você e você não tem nada com isso? Misturando as coisas, eu? Mas se eu vivo misturada com ela, eu puxo pra um lado e ela pro outro! Cacilda, você não é onipotente? Hein?
Ah, isso é jurisdição do psiquiatra? Ele não é onisciente que nem você. E se ele erra a mão? E se me enche de remédio e eu fico lesa? Você nem se incomoda? Me livra dela, Deus, me livra dela.
Ah, ela também é sua filha? E ela não quer se ver livre de mim que nem eu dela? Hein, Deus? Fala com ela então. Eu tapo os ouvidos, não vou me meter na conversa, juro.
Ela não te ouve, né? Tá contente da vida, acomodadinha aqui ni mim, bem no quentinho. E eu tentando arrastar a bicha pra fora, pra tomar ar, inventar coisas novas, e ela ali, numa boa vida de fazer raiva, me puxando pra dentro. Ela quer que eu enferruje, percebe? Quer me zerar pra poder reinar sozinha.
Tá bom, Deus, se você se recusa a fazer a cirurgia, vou ter que continuar arrastando Esquizinha pra todo lado, e ela vai continuar me azucrinando as ideias, reclamando de tudo, azedando as conversas e tentando me convencer a ficar em casa lavando e cozinhando. Ela é machista, você sabe.
Uma curiosidade: se você me separasse dela, com qual das duas ficava o meu marido?

sexta-feira, 19 de março de 2010

Pensamentos de janela



Foto Alfredo Muñoz de Oliveira.




Estava eu na janela a contemplar os galhos da amendoeira fronteiriça (uia!), quando me veio à cabeça que entre as ideias de estar e ter há nuances quase tão fogosas quanto as conhecidas diferenças entre ser e ter, que já se tornaram meio clichê – o que é mau, desgastante para uma ideia que vale a pena desenrolar de vez em quando.


A gente vive tão massacrada pela filosofia de mercado/lucro que se infiltra em nosso cotidiano, que há quem pense em mudar para as montanhas do Tibet e viver de leite de cabra e frutos silvestres, tecendo a própria túnica e dormindo numa gruta forrada de capim seco. Não seria uma rima nem uma solução, porque estaríamos perdendo os melhores filmes do ano, House e o sorvete de pavê, além dos riscos de faltar repelente de mosquitos e vacina contra veneno de cobra. Quem nasceu pra civilizado ocidental nunca chega a monge budista.


As diferenças entre estar e ter têm a ver com o instante (vide Clarice e o instante-já), única parcela do tempo com que podemos mesmo contar – e que dura... um instante – e o consumo, com todos os envolvimentos que ele supõe e dos quais é impossível fugir. O rolo compressor do mercado ameaça diluir nossos instantes, levando-nos a comprar o que talvez nos fosse inteiramente indiferente sem esse estímulo. O gosto e a criatividade são atingidos pela gosma invasiva da propaganda e pelos imperativos do lucro alheio. É um preço alto demais. Por sua vez, a mídia só colabora com esse estado de coisas, porque também precisa vender seus produtos.


Até a auto-estima está vendida ao mercado, porque só se considera vencedor quem faz dinheiro para si e para quem se dispõe a patrociná-lo. A maior parte da sociedade se marginaliza, escravizada por subempregos, sem falar na parcela dos que buscam afirmação e qualidade de vida na ilegalidade e no crime, nem sempre por falta de recursos, mas por motivos que vão de tendências de caráter a influências negativas do próprio meio.


Já que não dá mesmo pra escapar, é preciso aprender a enfrentar o bicho. Acredito que ajuda um certo descompromisso com os valores vigentes (a maioria deles sugeridos pelas mensagens da propaganda), porque a vida é aqui e agora, e não temos a menor ideia de até quando chegaremos. Não quer dizer desbunde geral, não mesmo. Quer dizer apenas certa autonomia que permita viver mais intensamente o instante-já de que falava Clarice, e que dura o tempo em que a roda em movimento toca o chão. Ir o mais fundo possível naquilo que temos prazer em fazer. Curtir as pessoas importantes para nós, viver o amor de modo pleno, realizar projetos sem comodismo – enfim, ir até onde se puder chegar, tornando a vida uma sucessão de instantes que valha a pena lembrar. O próprio trabalho pode dar muito prazer a quem o faz e gosta do que faz.


Não é preciso ter muito. O essencial é estar bem, estar inteiro no momento em que se vive. Para isso servem o coração e os sentidos, a memória e as mãos, o corpo e o pensamento.

sexta-feira, 12 de março de 2010

O Nada a declarar

Piglia, Ricardo. Prisão Perpétua. Trad.Rubia P. Goldoni e Sérgio Molina, S. Paulo: Iluminuras, 2002.

Um desfile de personagens que têm em comum um descompasso com a vida seria uma primeira impressão, mas não a definitiva. Conheci Piglia pela adaptação de Plata Quemada, o primeiro livro seu de que ouvi falar e um dos melhores filmes que lembro de ter assistido. Confirmo esse ponto de vista com o conjunto harmônico de relatos da desarmonia existencial que compõem Prisão Perpétua.

São personagens com cheiro de gente real, vivendo uma vida nada charmosa. A ambição do poder e do dinheiro se desnuda em sua forma mais cruel e a autoestima não chega sequer a ser cogitada. Isso me leva a pensar nos big brothers da vida, na exaltação do egocentrismo e no sonho de ascensão fácil que eles não só traduzem como realizam. Sinais de nosso tempo, que os textos de Piglia ilidem sem discutir. O pano de fundo dessa maneira de ver as coisas talvez seja mesmo a consciência da finitude que acompanha o homem, único animal capaz de captá-la.

(Noves fora o profetismo ou qualquer coloração mística, todas ou quase todas as religiões conhecidas enfatizam em seus códigos um item sobre o fato de que as civilizações preparam sua própria destruição, à medida que fortalecem seus costumes no que eles possam ter de consentidamente opressivo.)

Mas tal extrapolação não está, ao menos diretamente, ligada à visão de mundo de Piglia. A consciência da finitude, sim, com certeza. Ela informa os personagens de seus textos e lhes dá um caráter literário muito sedutor. Não por acaso, Piglia aparece em O Mal de Montano, de Enrique Vila-Matas, que visitamos há um ou dois meses, e trata de diários de escritores e das referências esclarecedoras que representam para o leitor e a crítica. Há ainda em comum as citações literárias, que de alguma forma remetem às escolhas de Vila-Matas, como Roberto Musil, Witold Grombowicz, o onipresente Borges e alguns outros.

Mais que tudo, há o Nada rondando do início ao fim do livro, como uma forma de filosofia desajeitada. Histórias de crimes e uma violência surda permeiam todos os contos, povoados de figuras marginais e amores pisados. Em um desses relatos – “Anotações sobre Macedonio num diário” – explica que, para o escritor protagonista, o maior problema são “as relações do pensamento com a literatura. O pensar [...] é algo que pode ser narrado como se narra uma viagem ou uma história de amor, mas não do mesmo modo. Parece-lhe possível que num romance possam se expressar pensamentos tão difíceis de forma tão abstrata como numa obra filosófica, mas sob a condição de que pareçam falsos. Essa ilusão de falsidade”, diz Renzi [o comentarista do escritor], “é a própria literatura”

sábado, 6 de março de 2010

O que faz você feliz?


Há muito tempo, o conceito de felicidade perdeu aquele traço de perenidade que os muito românticos ou ingênuos lhe emprestavam. O “foram felizes para sempre” sumiu de todas as histórias que vieram depois de Branca de Neve e Cinderela. Isso, quando se fala de felicidade a dois, ou seja, harmonia, bom entendimento mútuo, respeito e amizade que coexistam com o amor.

Mas ninguém é obrigado a ser feliz a dois. Esse estado ou sensação de plenitude exige mais que apenas a presença de um parceiro. E a despeito das opiniões em contrário, é bem possível ser feliz, genuinamente feliz, vivendo sozinho. Conheço alguns exemplos de pessoas assim.

Analisando a vida e o comportamento desses seres bem-aventurados, cheguei à conclusão de que a primeira condição para ser feliz, sozinho ou acompanhado, é estar bem consigo mesmo. Um bom parceiro pode ajudar, mas não pode ser responsabilizado pela infelicidade do outro, se esse outro viver moído de frustração, mágoa ou inveja. Alguém incapaz de se identificar com um semelhante, de rir ou sofrer junto. Prazeres mesquinhos que deixam um rastro de destruição, drogadição, egoísmo mórbido, egocentrismo irrestrito e seus derivados são inimigos do estado de felicidade. Isso nem é novidade, é quase intuitivo. Mas então, que droga é isso de felicidade?

Há uma propaganda na mídia que começa perguntando “o que faz você feliz?”, para em seguida mostrar o estoque variadíssimo de alguma loja – ou será uma marca de carro? Não importa muito o produto veiculado, mas o espírito da coisa. Confunde-se constantemente a alegria causada por uma boa compra ou por um novo namorado com felicidade. Isso é euforia, satisfação, estado passageiro muito agradável e que se confunde facilmente com felicidade. Passa rápido, e os motivos de tristeza ou ansiedade ficam mais fortes, quando se percebe que nem a estabilidade financeira nem a nova paixão preencheram aquele vazio sabotador do bem-estar.

Uma das pessoas que considero felizes me diz que atribui sua paz interior a vários fatores, um dos quais seria a realização profissional. Imagino que sentir-se satisfeito com o que se faz é meio caminho andado. Ou um terço de caminho, vá lá. Quando se tem a sorte de acertar nessa confusa loteria que é o mercado de trabalho, talvez se esteja conseguindo mesmo uma garantia relativa para viver em paz, e nem falo de altos rendimentos ou posição de destaque. Essa amiga, uma modesta costureira e artesã, vive numa cidade pequena da Bahia e mora numa casa simples de vila, onde cultiva algumas das plantas mais bem cuidadas que já vi. A alegria de ver sair das próprias mãos um objeto ou uma roupa que atrai clientes e merece elogios é um motivo de alegria quase permanente, além de garantir a subsistência dela e do filho de dez anos, que perdeu o pai há três. “Não posso dizer que não sinto falta do Daltro”, ela diz, “mas apesar de chorar muitas vezes com saudade dele, eu me sinto muito feliz com nossa vida”. Será boa consciência? Será o sentimento de ser uma boa mãe? Não sei, mas Dalva – o nome dela é Dalva – é uma mulher inequivocamente feliz.

Outro, um conhecido daqui do Rio, um homem meio calado mas muito bem-humorado, é autor de alguns dos textos mais inovadores e gostosos de ler que conheço. Aposentado há um ano, acha que o que ele e a mulher recebem é suficiente para curtir a vida do jeito deles, sem grandes luxos. Resolveu se dedicar ao que gosta mesmo de fazer, que é escrever e pintar – e são dois pintores, porque Gisela, a mulher, também tem bons trabalhos de pintura e ilustrou um bonito livro artesanal para dar de presente ao marido escritor no Natal. Esse escritor anônimo tem contos, muitos, dois romances, roteiros de novelas e um roteiro de filme. Tentou publicar em editoras “de autor”, mas se desiludiu com o mercenarismo e o descaso delas pelo autor. Está preparando um blog, que talvez vá se chamar Memórias de Agora, onde pretende mostrar seu trabalho. Tem dois filhos que já não moram com ele e a mulher, e seus dias, que tinham tudo para cair numa rotina desesperadora, são preenchidos por pesquisas, exercícios de culinária, bons filmes e longas conversas com os amigos com quem gostam de sair ou convidar para sua casa.

“Não preciso mais correr atrás de nada”, ele me disse, quando perguntei por que não vai mais à luta para publicar seus escritos. “Quero aproveitar os anos que ainda tivermos de vida para viver a fundo nossa felicidade. E acho que não seria justo comigo e com Gisela continuar ralando pra conseguir mais uns trocados”. Gisela não disse nada, mas teve um gesto de carinho explícito, e os dois se abraçaram com a cara iluminada de quem está em paz com a vida – e consigo mesmo.

Há outros casos, gente com a vida limitada por doenças ou perdas que deixariam em desespero quem não tivesse essa âncora interna, difícil de explicar e de entender, que no entanto faz de gente aparentemente “perdedora”, como alguns gostam de dizer, vencedores da guerra mais difícil de ganhar, e que se trava dentro de cada um.




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Prêmio BLOG VIP concedido por Maria Teresa do blog Ouvindo meus Botões.


Obrigada, Maria Teresa!
O Bem, o Mal e a Coluna do Meio agradece todo contente.  Estão todos convidados a visitar o Ouvindo meus Botões, e garanto que vão gostar!

Manda o regulamento que se escolham dez blogs para repassar o selinho e o prêmio. Acontece que sou ruim demais no que diz respeito a regulamentos. Além disso, há muito mais que dez blogs merecendo prêmios por aí, e meus leitores são todos vips. Vou deixar o lindo selinho disponível para quem quiser levá-lo. Caso desejem repassá-lo depois de acordo com os mandamentos do prêmio, fiquem à vontade.