quinta-feira, 28 de outubro de 2010

O ano novo deste mês


Vista do rio Paraíba.

A festa do Ano Novo guarda um link permanente com a vida, a alegria, os planos, os sentimentos e as emoções mais queridas. Não é a toa que toda mensagem traz marolas de doçura, um leve eriçar de adrenalina que nos faz sorrir para tudo e todos. E pode acontecer que a gente nunca se esqueça de um réveillon por sua alegria, de como foi bom abraçar e beijar pessoas queridas, conhecer gente nova, querer bem, ouvir vozes e viver as mensagens do tempo em que ficamos um pouquinho crianças de novo, para agitar o corpo e aproveitar a boa vontade geral.
E pode ser que afinal se queira fazer desse novo pedaço de tempo uma viagem nova, ver lugares diferentes, entrar em caminhos abertos fora das trilhas já tão pisadas de sempre. O dia-a-dia vai endurecendo uma casquinha em volta das coisas que se repetem; os atos habituais, obrigatórios, automatizados, vão tomando um lugar mais extenso e, antes que a gente se aperceba, engolem boa parte de nossa vida, escondem a espontaneidade, o prazer das pequenas coisas.
Mas não é preciso esperar que chegue o dia. Se é tão bom quebrar a rotina e inovar, por que não fazer isso a qualquer momento, criando uma oportunidade?
Velejar por outros mares, mesmo sem iate nem lancha. Mesmo sem sair de casa, do escritório, do carro que não foi trocado, do metrô, do ônibus nosso de cada dia. O que tem que mudar não é o lugar, o que está fora e não depende só de nossa vontade. Dá pra ver com outros olhos, de outro ângulo. Viajar descobrindo o novo, o diferente. Reavaliar o que sempre consideramos desimportante ou indigno de atenção. Pôr à prova nossas convicções inabaláveis, nossas certezas absolutas; questionar as "questões de honra" que, fala sério, acabam nos tornando uns chatos até para nós mesmos. Olhar com olhos de ver as pequenas belezas que cruzam o caminho, atentar ao canto fugidio de pássaros nas árvores da calçada em frente da janela; no riso, na voz, na fragilidade das crianças; em cores, sons e aromas que deixamos passar e podem ser uma fonte de prazer sensível. Reparar nos outros, não com olhos de crítica ou desdém, como tantas vezes acontece, mas para notar o que cada um tem de pessoal e diferente – uma voz bonita, gestos agradáveis de ver, um andar desenvolto, uma beleza física qualquer, um olhar caloroso, um sorriso bom de olhar. Voar nas asas da música à qual temos negado a terminação mais sensível do ouvido, do livro que ainda não lemos, do quadro que não olhamos com atenção, e até de uma fachada bonita, um telhado maneiro, sem outro interesse que contemplar, ganhar alguma coisa que o dinheiro não compra.
Estar em casa, no trabalho ou na rua não significa estar preso, atado, limitado. A não ser que se prefira ficar repetindo “não gosto, não quero, nunca experimentei e não vou começar agora”, há um jeito mais leve de levar a vida. Perceber que a liberdade interior é sem limites é um passo decisivo. O prazer de viver, que parece desbotado porque a vida em volta de nós cegamente se repete, forma uma nuvem espessa, um calo – esse prazer se redescobre e até nos espanta, logo que se fura a casca da rotina e se inaugura um ano novo particular. Nada complicado, nem caro nem inatingível. Basta estar vivo.

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Calvino nas árvores



Calvino, Italo. O barão nas árvores. Tradução de Nilson Moulin. (2009) São Paulo: Companhia das Letras.


O que maravilha em Italo Calvino é a agilidade e a versatilidade de seus textos. Um livro como O barão nas árvores teria tudo pra se tornar uma leitura no mínimo monótona, caso fosse linear ou tivesse aproveitado o argumento para descrever coisas estáticas como paisagens, por exemplo. Mas não se corre esse risco num texto de Calvino. Ele atende a todas as perspectivas, por assim dizer. A narrativa caminha o tempo todo por aqueles galhos desiguais, entre folhas, espinhos, bichos, flores e frutos, mostrando não só o que vê e vive a figura improvável de Cosme Chuvasco de Rondó, mas também a vida dos nobres, mentalidade e costumes europeus do século 18, além de uma visão dos conflitos da época.

As histórias da Segunda Guerra, que motivaram vários autores no fim dos anos de 1940, domínio do neo-realismo italiano, trouxeram a fama ao escritor com A trilha dos ninhos da aranha, de 1947. Em 1956, quando Calvino escreveu Fábulas italianas, uma visão completa ou quase das histórias populares da Idade Média italiana, percebeu que, bem avaliada, a lógica dessas histórias não perdera de todo sua atualidade. Partiu então para três livros surpreendentes, em que o irreal e o fantástico ocupam o primeiro plano. Comaparado a O visconde partido ao meio e O cavaleiro inexistente, que formam com ele essa trilogia, O barão nas árvores é o menos “maravilhoso” dos três. O olhar do autor é irônico e bem-humorado, e a narrativa, isenta de qualquer preocupação de ordem moral ou pragmática, não perde de todo sua ligação com a realidade. A ideia do protagonista, de que para entender bem a vida na Terra é preciso manter alguma distância dela, é um postulado puramente racional. Pode parecer também um indício de que o barão de Rondó teria escolhido se isolar ou se vegetalizar. No entanto, isso é desmentido pelos fortes laços que ele, lá de suas copas, continua mantendo com a sociedade, a família e as mulheres. A vida sobre os galhos é na verdade uma proposta alegórica de ver as coisas de um ângulo mais amplo do que de dentro de uma casa da baixa nobreza.

Até o fim de sua história, Calvino mantém o personagem sem voltar a pisar o chão, e no entanto sempre mergulhado nos acontecimentos cá de baixo e com uma vida afetiva das mais movimentadas em todos os aspectos. Os personagens traduzem suas dores e incertezas em atos estranhos, como Batista, a irmã amargurada, preparando patê de fígado de rato, seu pai, sempre iludido quanto à importância da família na corte, ou o abade aluado, preceptor dos filhos. Mas o clima criado e mantido pelo romance afora é uma afirmação implícita do que todos nós já sabemos, cada qual a seu modo: mudança e finitude são os pressupostos da vida, aos quais cada um responde a seu modo. E ainda assim, Calvino não deixa as coisas caírem no lugar-comum.
 

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Os esqueletos no armário





A assombração teve seu primeiro registro conhecido à saída do jardim do Éden, no exato momento em que Adão e Eva transpunham o enorme portão lavrado pelos arcanjos encarregados da decoração local. Posto o pé do lado de fora do paraíso, a voz tonitruante do criador deve ter soado a seus ouvidos escaldados como coisa do além – o que de fato era. Mas o além era o jardim das delícias perdidas, a lembrança do que era doce e se acabou. Identificada à vida intra-uterina do feto, todos nós carregamos essa nostalgia do paraíso.
Isso deve em parte explicar por que as pessoas gostam tanto de histórias de assombração, que provocam medo de um suposto desconhecido – na verdade bem conhecido. Atração e repulsa, fascínio e terror por uma realidade que não se sabe bem como será, da qual se guarda apenas uma lembrança vaga o bastante para parecer ilusória, mas tão convidativa que dá medo.
Não sei se me expliquei bem. Com certeza, não. É difícil falar do além de modo claro. Não faria sentido, mesmo que procurasse explicar a coisa a fundo, porque a assombração é antes de tudo um não-sentido. Quem poderia explicar com exatidão matemática "O corvo" de Poe? Não restariam nem as penas. Aquilo a que falta consistência lógica deve manter-se em seus próprios domínios, que são sutis e incompatíveis com o passo-de-ganso da razão. A lógica está para o mistério assim como a criptonita está para o Super-Homem; se tentarmos explicá-lo ele se esfarela e desaparece, porque à luz da razão vira pura bobagem.
Não é bobagem, no entanto. Apenas pertence a outra dimensão da realidade. A julgar por seu sucesso nas histórias de ficção de todos os tempos e lugares, filmes e causos contados ao pé do fogo nos sertões do Brasil, assombração é coisa séria. E tem seus parâmetros: pode não passar de impressão, se for mera menção; se for demais, é cafona como os cordões de ouro no peito do traficante.
Pessoalmente gosto de uma assombração moderada, vista ou entrevista por pouco tempo. Nada de rostos em decomposição, vermes furando a pele ou garras perseguindo inocentes pedestres em corridas desabaladas pela rua. Assombração que se preza tem que ser uma presença mais sugerida do que presente. Tipo aquele casal de A outra volta do parafuso, de Henry James, que deu filmes sensacionais com aquele chamado Os inocentes.
O que me dá agradáveis arrepios é a idéia de uma presença invisível ou que se manifesta por indícios, que deixa sinais ou apenas se mostra de relance, como se fosse uma ilusão de ótica, e no entanto altera a ordem natural das coisas.
Alguns livros ou textos afins ao assunto falam de pessoas e acontecimentos que nem mesmo podem ser rotulados como histórias do além, mas causam um efeito similar sobre seus leitores. Está nesse caso o realismo fantástico de algumas obras de autores como Borges, Cortázar, Bioy Casares ou García Márquez.
Está nesse caso também um romance de 1954, chamado A menina morta, do brasileiro Cornélio Penna, em que a força da personagem-título se manifesta sobre a realidade sem que haja qualquer evocação ou interferência positiva de um fantasma do tipo tradicional. Penna, cujo trabalho envolve um clima opressivo, era um caso quase isolado entre os autores de seu tempo aqui no Brasil. Assim como aconteceu com Clarice Lispector, que deixou textos enigmáticos ou sombrios como "O ovo e a galinha", "A princesa", "O pequeno monstro" e algumas histórias de Onde estivestes de noite, entre outros. O estranho e o insólito pontuaram a grande maioria dos textos de Clarice, que não por acaso chegou a ser considerada bruxa. Um outro exemplo de romance marcante, mergulho no mundo subjetivo de seus personagens, é A crônica da casa assassinada, de Lúcio Cardoso, cuja narrativa envolve o que se poderia entender como o processo de geração do fantasma – por assim dizer, um fantasma avant la lettre.
A meu ver, o papel – e atrativo – principal da assombração é que ela manifesta aquilo que está desde sempre dentro de cada um de nós, mas vive preso, escondido no porão, trancado a sete chaves porque, uma vez liberado, faria de nós seres indesejáveis, incapazes de conviver em sociedade e politicamente incorretíssimos. A figura do estranho, da pessoa ou coisa que provoca horror ou medo, não seria tão ambígua e atraente se não correspondesse a alguma coisa com que todos estamos secretamente familiarizados – embora pensemos sempre nessa coisa como uma entidade com existência própria. Assombração não é feita para assustar (embora em geral assuste, por uma espécie de efeito colateral). O estranho existe para nos fazer viver a vida de modo mais completo, já que viver é muito mais do que pagar contas no banco, namorar ou ir ao cinema.
Expor os sentimentos humanos mais sombrios e escondidos sob a forma de seres ou fatos enigmáticos e sinistros pode ser um modo criativo e muito refinado de ampliar o conhecimento do mundo e das pessoas, visto de uma perspectiva nova e esteticamente rica. Uma percepção que não obedece ao habitual e rotineiro pode nos abrir os olhos para ideias como a do tempo em sua dimensão esmagadora e implacável. Pode nos dar a perceber, como num espelho, o vazio que cada um de nós carrega vida afora, por mais que conquiste sucesso, dinheiro e até amor e amizade.

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Viagens aos mesmos lugares






Foto Ale Felix.


· Durante duas semanas deixo de ler jornais e revistas, não vejo mais noticiário de tevê nem quero saber das notícias de política e polícia, muito menos das que misturam as duas e que são cada vez mais frequentes. Estou louca pra ver se isso muda alguma coisa na minha cabeça. Se mudar para melhor, repito a dose. Alienação? No, babies. Entrei num período de desintoxicação mental.
· Afinal, penso o pensamento de quem? Se é o meu mesmo, por que tem tanta influência dos outros? Se não é meu, como se explica que eu, e não outro, diga o que acho que penso? Às vezes fico assombrada com a uniformidade de determinados discursos. Vivemos à sombra de um emaranhado de idéias e pontos de vista ditados por interesses que não conhecemos e não são os nossos. Não dá pra confundir os gestos e atitudes correntes e repetidas com opiniões próprias.
· Uma coisa que me deixa cabreira é a diferença entre o que de fato acontece na vida real e o que chega a nosso conhecimento via mídia. Aderimos um pouco sem sentir à opinião de um ou outro colunista que admiramos, pelo que sabemos dele e por suas idéias. Até aí, tudo bem. Mas parece que isso tem um efeito cumulativo. Acabamos nos condicionando a pensar pela cabeça dos outros, o que não se recomenda, por melhores que os outros sejam.
· Enquanto isso, vou pondo em dia as leituras que se acumulam em pilhas, perigando desmantelar alguns livros antigos, heranças de papá e de um tio bacana.