quinta-feira, 27 de setembro de 2007

Solta o replay


Foto de Sebastião Salgado.

A gente aqui na pátria amada acaba encarando tudo que se repete, por pior que seja, com uma naturalidade assustadora. O crime, a estupidez e a violência – meu Deus do céu, que chatice falar nisso tudo. Miséria, falta de escolas, vida de biscateiro, mulher que apanha e fica calada, crianças que passam o dia entregues a si mesmas e à maldade alheia, porque o pai não está nem aí, a mãe diarista tem que ganhar o dia ou então ninguém come – tudo é encarado como destino, fatalidade. Ou então o que fazer é tanto, as carências tantas, que não sobra tempo e muito menos energia para reagir. E reagir como, onde? Apelar pra quem?
É difícil entender como pessoas que crescem e se tornam adultas vendo o mundo desse jeito conseguem se tornar gente de bem. No entanto muitos se tornam cidadãos úteis, que trabalham, lutam, correm atrás. No caminho desses, por pior que fosse, deve ter havido, em algum momento, alguém capaz de carinho, algum incentivo que mostrasse uma vida menos desprezível.
No item crianças, as coisas têm corrido muito mal também em famílias nem tão necessitadas. Nesses casos, não é dinheiro que falta. Faltam paciência e sensibilidade para educar, o que a escola sozinha, por melhor que seja, não dá conta de fazer. Porque o que torna alguém humano e capaz de ser e fazer outro feliz é aconchego, atenção, colo na hora certa e correção quando é preciso. Alguém que diga o que fazer nas horas incertas. Alguém que esteja sempre presente e com quem o pequeno possa contar para o que der e vier. Só se aprende confiança confiando, assim como só se aprende a amar amando. Quantas vezes faltam carinho, amor à cria. Criança atrapalha, precisa de tempo de convivência para experimentar coisas e se sentir protegida e segura, e nem sempre uma babá limpinha e bem paga resolve isso.
A educação continua na base do processo. É demorado, vai levar vinte anos pra dar resultado. Mas sem ela podemos desistir de melhorar. Nem daqui a cinquenta ou cem anos. Então esse primeiro passo tem que ser dado, mas não só. A questão educacional é uma aposta no futuro, uma ponte que teria que começar a ser construída agora, já que tudo que vinha sendo feito está dando errado, a começar pelas fatias vergonhosamente baixas do orçamento alocadas a esse setor.
A parcela da sociedade que percebe o que está acontecendo está aterrada e/ou perplexa. Mas existem os que, mesmo informados e esclarecidos, optam por tirar vantagem da geléia geral e agravam a situação, porque não lhes interessa que a justiça funcione melhor ou que o combate ao crime seja eficaz, porque vão perder vantagens inconfessáveis. Não interessa a essa gente implementar um bom sistema de educação para o povo, porque é mais vantajoso deixá-lo no lugar do cego no tiroteio, sem saber pensar, vendendo voto. Para esses a cadeia devia ser mais rigorosa, a pena mais longa. Surpreendentemente, não esquentam as poltronas em suas prisões especiais e comovem os juízes de um modo enternecedor. Até porque alguns juízes pertencem ao mesmo clube, o da mão molhada.
Os direitos humanos têm sido apontados por muitos como um texto risível, complacente com os criminosos e um empecilho para que se faça justiça. Talvez valha a pena rever esse texto com mais cuidado, refletir um pouco mais sobre o que está tão errado, se é o que a declaração diz ou o modo como tem sido interpretada e aplicada no Brasil. O texto é uma garantia para que não se saia por aí linchando e dilapidando os suspeitos e acusados de práticas criminosas. Seria também uma garantia para o cidadão acima de qualquer suspeita, caso fosse seguido de modo adequado e honesto. Infelizmente a declaração não só não é respeitada nem pela polícia, como tem sido usada por advogados inescrupulosos para livrar a cara de réus endinheirados com ou sem colarinho.
A cadeia e as casas para menores delinquentes têm sido ótimas escolas de crime. Também vai ser demorado construir presídios decentes com espaços destinados aos presos, para que possam aprender e exercer uma atividade útil. Alguém ouviu falar que construções desse tipo estejam em andamento? Enquanto elas não se concretizam, por que não usar a criatividade e ampliar o que já existe, ativar prédios públicos abandonados, inventar meios de atender a essa massa de gente sem ter que misturar quem rouba manteiga para os filhos com assassinos monstruosos? Custa dinheiro? E os impostos, pra que é mesmo que têm servido? A carga tributária só aumenta – e para isso trabalham governantes e legisladores – sem que em nada diminua a carência de serviços essenciais.
É repetitivo, eu sei. Mas nossos podres sociais também o são. Cansa ouvir falar desse assunto sem graça. Pior ainda é permanecer no atoleiro.
As coisas estão todas ligadas: crime, grossura, mão grande e ignorância são elos de uma corrente que nem sempre leva o meliante à cadeia, mas sempre leva à morte de muita gente – gente que muitas vezes nem tinha nada a ver com as tristes histórias da marginalidade, seja a das favelas ou a das classes A, B ou C.

sábado, 22 de setembro de 2007

Pode vir quente



É primavera enfim ao sul do Equador.
No Rio mandou se anunciar por um calorzinho bem carioca, e entra sorridente, clara, céu azul e brisa mansa. Chega das férias carregando flores, tintas e pincéis para mudar o colorido da cidade, que ultimamente a gente vê num degradê de cinza a negro.
Nós cariocas te saudamos, estação mais desejada no mundo inteiro. Se por acaso sentir um cheiro de pólvora, não se abale, não é nada. São incidentes banais do dia-a-dia – um túnel fechado aqui, invasões, um assalto com ou sem mortos ali, seqüetros de durações variadas, jovens larápios de uma eficiência sem limites, ases da motocicleta disputando uma olimpíada em que o prêmio não é o das medalhas, mas o que as vítimas carregavam na bolsa ou no carro. Às vezes uma equipe inteira de ladrões intrépidos que param o trânsito, fazem a féria até com certa graça, contanto que ninguém se engrace com eles, e deixam os pascaços zuretões e ranzinzas, como diria o Aldir Blanc.
Esperamos que tenha sido avisada e traga o carro blindado em vez da biga tradicional. Ah, e que não fique dando mole com sua cornucópia de madrepérola se derramando por aí. Um colete à prova de balas de fuzil também lhe seria útil, a ela e a nós, que tanto a invocamos e esperamos por suas flores coloridas. Não vá algum bandido atuado, iconoclasta e mau dar fim à estação mais querida e deixar o mundo para sempre mergulhado no inverno infernal da violência e da força bruta. Poetas, seresteiros, namorados, correi e ajudai a primavera a salvar nossas esperanças. Amém.

domingo, 2 de setembro de 2007

Identidade se conquista



Quando saí do país pela primeira vez, estava muito preocupada com o trabalho que havia deixado inacabado no Brasil. Era o final dos anos 80 e rolava uma olimpíada de conhecimento em Birmingham, Inglaterra. A empolgação do pessoal durante as competições e os eventos acabaria por me envolver na torcida brasileira.
Também aprendi muito com eles. Só mesmo simplicidade, disponibilidade e trabalho constante podem levar a um final que se possa considerar feliz sem ajuda de um QI (quem indica). Falo daquilo que para o próprio sujeito constitui um êxito, uma vitória sobre si mesmo, o resultado de uma luta cuja intensidade e duração só ele conhece bem.
Em qualquer tempo ou lugar, é preciso partir de uma escolha, com os pés em terra firme e um plano na cabeça. O dinheiro e o sucesso são resultados incertos, e é preciso que seja assim para que não se perca o estímulo inicial.
Em matéria de identidade, o que acontece às pessoas acontece também aos países. Usando seus próprios recursos e valores, os chineses, primitivos e submissos durante séculos, têm enfrentado a vida a seu modo, e nestes tempos de globalização têm crescido diante do mundo como uma nação de cultura multissecular e características inconfundíveis. Os astecas realizaram uma obra intransferível; os maias, capazes de tanta crueldade, deixaram as marcas de uma civilização admirável. Os povos nativos remanescentes das Américas, que não usaram os metais como os saxões e são economicamente menos importantes, nem por isso abrem mão de suas tradições. Misturados aos feitos culturais e civilizatórios, nem todos os atos foram louváveis, nem todas as intenções foram retas a nossos olhos. Mas é preciso entender que, na prática, mentalidades e convicções variam, evoluem ou se deterioram pelos séculos afora. É a identidade de cada nação e sua cultura que sobrevivem e importam à história como dados positivos.
Entre os próprios europeus, a Inglaterra se conservou imperial sem deixar de pertencer à modernidade; a França construiu um bom socialismo democrático e a Alemanha ressurgiu das cinzas e reconquistou a identidade, desperta dos pesadelos que a oprimiram. Portugal e Espanha poeticamente preservaram certo primitivismo, embora de características diferentes, o primeiro mais ingênuo que a segunda; e a Itália às vezes parece um Brasil mais antigo, sacana e bem-sucedido.
Durante meu tempo na Europa, me senti integrada a alguns aspectos desse mundo velho. Os códigos de lá me faziam sentido e seus valores eram familiares. Mas a minha geração, que nasceu e cresceu no Rio, com sua arquitetura, religiões, hábitos e ideais ainda alimentados por ilusões do tempo da colônia, experimentava às vezes um desejo meio enrustido e arraigado de chegar lá. Com o passar do tempo, alguns traços tipicamente cariocas se acentuaram, e o Rio pouco a pouco foi ganhando jeito de cidade adulta – incluindo aí a violência e os maus hábitos ambientais. Houve também o enfraquecimento de uma classe média que rapidamente perdeu parte de seu espaço. A cultura de cunho muito mais popular, genuinamente carioca, foi ditando modas, músicas, costumes.
A vida me convenceu de que pessoas, cidades ou nações têm que apurar sua identidade, se conhecer e se gostar para conseguirem realizar alguma coisa que mereça um lugar ao sol. No Brasil, parece que ainda não aprendemos a cultivar nossos valores – que são tantos, neste país enorme; conquistar direitos e cumprir os deveres da cidadania, que em muitos casos mal conhecemos, ainda é privilégio de poucos. As causas disso são muitas e complicadas, mas a que parece mais atuante é o comportamento da própria classe política e dos governantes que desconsideram as necessidades do povo e quase sempre se elegem para tirar vantagens que, quanto maiores para eles, mais acentuam as carências da sociedade. Às vezes me pergunto se esses políticos não são, eles mesmos, uma das mais tristes conseqüência da má qualidade do ensino e da cultura anti-ética que há séculos vigora entre nós. Isso não os absolve, mesmo que explique o fenômeno, porque caráter pode existir mesmo sem uma educação adequada.
Acima de tudo, nada justifica esse sentimento oceânico de auto-suficiência, que nos leva a acreditar no poder da trapaça, tão cultivado por aqui. Não é nisso que consiste o verdadeiro "jeitinho brasileiro". Somos criativos, inteligentes, temos jogo de cintura. Temos uma cultura rica, produtiva e diversificada, mais do que o suficiente para garantir uma imagem digna de respeito perante o mundo. Sem ufanismo nem devaneios. Quae sera tamen.