segunda-feira, 26 de abril de 2010

Ninguém é de ferro



        Como se sabe, a segunda é o dia útil mais inútil da semana, de vez que existe com a finalidade precípua de oferecer um descanso após os agitos de sábado e domingo.

        Que o digam esses bravos rapazes que se sacrificam por nós no Congresso, na inóspita cidade de Brasília, que nem esquina tem direito, boteco então nem se cogita, e que têm sido acerbamente criticados por legislarem em causa própria.

         Tudo isso só porque aproveitam seu frenético cotidiano – que vai de terça a quinta-feira todas as semanas do ano, que não sejam de recesso nem de férias ou eventuais licenças nem estejam em viagem – para reparar a clamorosa injustiça de seus salários relativamente tão minguados. Afinal, o que são 12 mil e lá vai (muita) fumaça para uma pessoa do quilate deles? É justo, justíssimo, que pretendam e lutem bravamente para chegar aos 16 e lá vai mais fumaça ainda, enquanto na verdade visam os 20 e poucos (mais a fumaça, é claro, que sem fumaça ninguém vive).

         Fique claro que fumaça quer dizer ajudas de custo – casa, alimentação à altura, transporte do melhor e grátis sempre à mão, viagens – durante as quais ninguém pensa em aproveitar para se divertir, porque a consciência do dever os inocula por inteiro. Ia esquecendo a boa apresentação e a moradia mais que apenas decente que o decoro parlamentar exige, além da necessidade de estar em dia com a saúde e a aparência física. Tudo isso custa (muito) dinheiro. Fumaça neles.

        A galera do feijão-com-arroz nem faz idéia dos sacrifícios que esses denodados cidadãos fazem pela pátria e pelo bem-estar da mesma dita galera. E como se não bastasse o peso de tantas obrigações e dedicação, ainda querem que eles vivam como o Zé povinho, pagando por todos os serviços de que necessitam para bem cumprir seus sagrados compromissos com o povo que os elegeu. Será que não dá pra reconhecer que esses homens precisam de paz, alegria de viver e muitos prazeres extras (físicos, como comida de primeira, massagistas dadivosas e bons programas em ambiente seleto; morais, como o dinheiro, e intelectuais, como o poder) para dar conta de tão complexo recado?

        Pior – coisa inominável, dá até tristeza pensar nisso – querem que eles paguem por pequenos deslizes que em nada prejudicariam seus amados eleitores, caso não houvesse sempre invejosos e boquirrotos para denunciá-los. Gente de mau caráter. Querem perturbar a paz do povo com notícias sensacionalistas e confrontá-los com CPIs e assemelhados. Gente que não conseguiu se elevar à categoria de intocáveis que eles conquistaram. Essa gente não pensa que, para chegar lá, se expuseram a riscos inimagináveis, só comparáveis aos que correm os falsários, soldados do tráfico de drogas e assaltantes de bancos. E não pensa tampouco que o povo viveria muito mais feliz sem que suas manobras – sempre mal interpretadas – chegassem ao conhecimento do respeitável público.

       Gastaram as solas de inumeráveis sapatos, se arriscaram às intempéries, sofreram indigestões pantagruélicas em almoços puxados a pratos exóticos de preparo duvidoso, levaram tombos memoráveis de palanques improvisados e enrouqueceram de tanto clamar pela atenção dessa espécie ingrata e desavisada dos eleitores indecisos. Tudo em nome de uma causa nobre, qual seja, se arrumar para o resto da vida e amparar a (própria) família com uma fortuna tão mais bela quanto mais sólida. Abnegados rapazes. Têm toda nossa compreensão.

segunda-feira, 19 de abril de 2010

Do mercenarismo e suas vicissitudes



Sou uma revisora arrependida. Deus sabe – hélàs! – como gostaria de não ter empregado tanto tempo em tão desgastante função. É um meio de vida como outro qualquer, porém mais trabalhoso e sofrido do que acredita a maioria das pessoas. Os profissionais que conheci no setor eram em geral pessoas competentes e dedicadas. Mas quase todo mundo ouve falar dessas ocupações distraidamente e tem apenas uma vaga idéia do que fazem copidesques e revisores.
Copidesque e revisor são assim como empregada doméstica: só chama atenção pelo que não fez. É um ofício que funciona no negativo. Quanto mais você ralar, quanto melhor ficar seu trabalho, menos vão reparar em você (exceto talvez no que diz respeito a seu chefe imediato, e assim mesmo nem sempre). Não tem representatividade; não acrescenta nada; não cria e não progride na carreira, a não ser que o coordenador editorial se demita e seu chefe acredite que você está apto para o cargo. Isso quase certamente significará um acréscimo simbólico em seu salário e um aumento caudaloso de responsabilidade, trabalho braçal multiplicado e dores de cabeça cotidianas por conta dos setores envolvidos no processo.
Além disso (felizmente por pouco tempo), fui ghost-writer. Mais fácil de entender, o trabalho ficou ainda mais conhecido depois que Chico abordou o tema de modo tão fiel, embora meio caricatural, no ótimo Budapeste. Mas só quem passa pela coisa ao vivo e em cores alcança o grau de angústia que ela pode provocar.
Para mim, ao menos, era como ter um filho e cuidar dele para depois entregar aos pais de adoção sem me deixar identificar. É mais ou menos como alugar a barriga, engravidar, parir e amamentar "a serviço". Quem escreve sabe do que estou falando.
Há quem contrate os serviços de um ghost-writer e passe a se considerar mentor de seu trabalho, confundindo a propriedade do texto com a de quem o realiza. Em casos mais difíceis, seu contratante (doravante assim chamado no contrato de trabalho) passa automaticamente à condição de seu amo e senhor em horário integral: você pode ser procurado no meio de um casamento – ainda que seja o seu –, numa sessão de cinema, na academia onde estiver malhando, durante as refeições e/ou às três da manhã, esteja ou não fazendo o que se costuma fazer a tais desoras, inclusive dormindo.
Se a obra for de ficção ou quanto mais o contratante acreditar que seu texto lhe abrirá as portas da fama e da riqueza, fácil, fácil se estabelece um conflito que acaba afetando a sintonia fina da relação, porque ele ou ela odiará você por estar lhe usurpando o prazer intransferível de escrever uma história que é dele (ou dela), usando suas idéias, bens infungíveis de sua propriedade, e – ainda que inconscientemente – estará arrependido de tê-lo contratado, julgando que você não corresponde às expectativas e está vilipendiando sua obra-prima.
Você poderá até se tornar persona non grata aos olhos do contratante, que, no entanto (saco!), precisa de seus trabalhos, de sua redação, de suas palavras, enfim, desse ser desprezível que demora a consumar a obra brilhante que se esperava dele. E como ele ou ela está lhe pagando (em sua opinião regiamente) para desmanchar seu (dele) prazer, exigirá que você produza no mínimo um best-seller que o torne um autor de fama internacional e uma pessoa abastada para o resto da vida.
Ele ou ela vai esperar isso de você ainda que o tema ou o enredo a ser desenvolvido seja pífio e sem consistência. Você pode ainda descobrir, lá pelas tantas, que a matéria-prima a desenvolver não passa de um plágio descarado – como me aconteceu uma vez. Contratante também pode carecer de ética, e aí contratado precisa estar atento pra não embarcar numa furada.
Ghost-writer que se preza sabe muito bem que, se alguma coisa puder dar errado, vai dar: sua atividade é regida pela lei de Murphy. Ele, que não recebe elogios pela boa qualidade de seu trabalho, na certa será solidário para responder por alguma possível ilicitude ou ofensa provocada pelo texto que ajudou a criar.
Bem feito. Mero e simples escriba mercenário, que se vire com seu amor às palavras, seu apego ao texto, seu prazer masoquista e pervertido de escrever mesmo em circunstâncias assim mesquinhas e ainda se regozijar (em segredo, por favor!) com o sucesso que possa alcançar esse filho bastardo.

terça-feira, 13 de abril de 2010

Em dois mil e cinco








Sim, estamos em 2010, não delirei.

Mas levando em conta que o arsenal de energia nuclear do Irã – e sabe-se lá se outros – volta a preocupar o mundo com suas ameaças latentes; que a tensão no Oriente Médio não relaxa: que o terrorismo instituído não só não sumiu da face da Terra como continua a nos fitar com aquele olhar gelado dos fanáticos; que o homem não se corrigiu de lá pra cá e continua retaliador e violento; que - apesar de pequenas variações ainda insuficientes – os interesses de mercado continuam pondo o lucro acima de qualquer outro valor. Considerando que o procedimento dos políticos mudou muito pouco nesses cinco anos, se é que mudou mesmo (às vezes parece que, sentindo alguma pressão e vendo um ou outro arruda sofrer as consequências de seus atos, eles aprendem a dissimular um pouco melhor aos olhos dos eleitores incautos). Enfim, considerando a humana capacidade de perseverar no erro e exercer a irresponsabilidade ad nauseam, reli a crônica aí abaixo e senti um gosto ruim de nada-mudou.

Na dúvida, fui escovar os dentes e passar um listerine nas mucosas bucais. Mas o gosto continuou, e então queria testar com meus quatro leitores se é isso mesmo ou se já ingressei na fase da rabugice mais aguda.

Vejam só: substituindo 2005 por 2010 e 2006 por 2011, parece que no conjunto mudamos bem pouco.

Dois mil e cinco foi embora como o ano da grande frustração, do recrudescimento da guerra e das grandes catástrofes – culpa do homem, quase sempre. A coisa foi tão desastrosa que se teve a impressão de ter dado um passo atrás, rumo aos tempos bíblicos ou medievais.

Desejar mil venturas para 2006 talvez fosse um pouco excessivo. A expectativa possível era a de que apesar de tudo a democracia continuasse a vigorar no país e em todos os outros onde já existisse; que as encrencas resultantes da fraude, da triste tradição da corrupção endêmica e da esperteza generalizada encontrassem exemplares mais light entre políticos e cidadãos em geral e que aos poucos se tomasse consciência de que não é por aí; que ao menos os apetites fossem moderados, o que bem podia acontecer se as eleições respondessem com um bom gelo e  falsários e ladrões perdessem as benesses e o emprego.

A esperança era eleger o menor dos males em 2006. Não me perguntem como se chama esse senhor, porque nem desconfio. Mas podia ser o início de uma aliviada em nosso pesadelo, não custava sonhar um pouquinho numa data como essa.

Pena que o iceberg malcheiroso que despontava em 2005 continua emergindo até hoje. Nossa esperança não vingou.

Quanto ao resto, já era isso mesmo de agora: o planeta reage ao vírus chamado homem, que o deixa doente de secas e inundações, que desequilibra o andamento natural das coisas com seu olho desmesuradamente grande e sua ambição desmedida, que serve a poucos e deixa cada vez mais gente sem o essencial pra viver com decência.

Por tudo isso, neste ano ainda não vai dar pra desejar mil venturas. Sejamos realistas, é melhor. Nada de achar que nada disso importa, porque essa filosofia de vida só nos leva cada vez mais pra dentro de um buraco sem fundo. Melhor mesmo é ficarmos atentos, conscientes do que nos rodeia e nos ameaça, como por exemplo o comportamento de nossos dignitários.

Na pior das hipóteses, de olhos abertos e ouvidos afiados, ao menos preparamos o espírito para aguentar o tranco, que não nos pegará de todo desprevenidos – o que às vezes é essencial, vejam o que aconteceu com quem conseguiu prever o tsunami e por isso escapou com vida.

E na melhor delas, ao menos poderemos sorrir de novo com alguma esperança diante de um indício de que as coisas estão mudando para melhor. E também podemos ao menos desejar que cada um de nós e cada família tenha um ano mais propício, porque às vezes acontece. Amém.

quarta-feira, 7 de abril de 2010

A alma encantadora de João



João do Rio. A alma encantadora das ruas. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. 253p.


A alma encantadora das ruas reúne crônicas de João do Rio, pseudônimo do acadêmico Paulo Barreto, falecido dentro de um táxi em 23 de junho de 1921. Textos típicos do flâneur que ele foi, originalmente publicados de 1904 a 1907 na imprensa carioca, estão organizados nesse volume por Raúl Antelo, autor da boa introdução, mostrando desde uma breve biografia do cronista até o alcance sua obra, que contribuiu de modo decisivo para “abrir janelas na modernidade brasileira”.
 A leveza com que trata essa “alma das ruas”, torna a leitura agradável sem a facilidade do superficial. A visão da rua nessas crônicas tece uma espécie de ícone de uma sociedade e de um tempo que se estende além de algumas gerações. Se a ideia de pátria e mesmo a de cidade são grandiosas demais para o homem individual, a rua é o espaço na sua medida exata. Estão ali o chão que ele pisa no dia-a-dia, os tipos com que interage durante a existência, os instrumentos ou o lugar de seu trabalho. É nas ruas de um bairro que primeiro aprendemos a ser alguém, pertencer a um grupo, evitar riscos e personagens indesejáveis. Há ainda muitas outras coisas que se aprendem nas ruas por onde se passa, passeia ou onde nos divertimos.

João do Rio fala do Rio de Janeiro, sua cidade, de seus habitantes, trabalhadores e cidadãos de classes variadas. Mas é no pequeno trabalhador, nos tipos ditos de rua que demora seu olhar perspicaz e divertido, como em “Pequenas profissões”. Em “Os tatuadores”, vemos que a mania de tatuagem, que parece coisa tão atual, é bem mais antiga do que imaginamos. Assim como a religiosidade popular, antes da febre de igrejas que ora nos aflige, e as leituras que o homem da rua prefere. Os pintores de rua, hoje representados também por pixadores e grafiteiros, são motivo de comparações divertidas e sarcásticas. O autor faz um paralelo entre os egos inflados, que reclamam por se considerar grandes artistas injustiçados, e os pintores anônimos, que podem ser apreciados “levemente e sem custo”, alguns dos quais, que ele chama os “heróis da tabuleta”, fazem uma arte de utilidade prática. Esses artistas anônimos têm em comum “os germes de todos os gêneros, todas as escolas e, por fim, muito menos vaidade que na arte privilegiada”.
Está no texto ainda a mania de janela do carioca, tema que Barreto pretendera desenvolver num livro que ele mesmo classificou de “notável”. Ali também se encontram a origem, as influências e a ironia contida em tantos nomes que batizaram as ruas do Rio. Muito mais que “um alinhado de fachadas, por onde se anda nas povoações”, como a definem as enciclopédias, a rua é para ele “um fator de vida das cidades”, e acrescenta: “a rua tem alma!”
 O texto é temperado de erudição e iluminado pela visão de mundo do autor, homem viajado e culto, que no entanto redescobre nas atividades mais primitivas e populares os mesmos princípios que levaram o homem universal à realização de grandes obras. A rua é para ele “o motivo emocional da arte urbana mais forte e mais intenso. A rua tem ainda um valor de sangue e de sofrimento: criou um símbolo universal.” O texto se expande no sentido da universalidade e do significado da rua em outras terras e outras cidades, suas características, sua perecibilidade, a rua como suporte da História. Mas acima de tudo, é a redescoberta, a seu tempo, da poesia genuína que nunca deixou de florescer nas ruas da cidade.