quinta-feira, 30 de abril de 2009

Paz, sinal de vida


Um tipo de paz que não depende muito do que acontece em volta de nós é a chamada paz interior. E que coisa será essa, a paz interior? Será que não somos sempre um reflexo do que está a nossa volta? Não funcionamos sempre como um espelho do ambiente em que vivemos?

Em grande parte, sim, é claro. Refletimos a agitação, a pressa e o estresse do mundo em que estamos mergulhados e do qual participamos. Principalmente para quem vive nas grandes cidades, fica difícil ou impossível fugir ao agito do trânsito, dos horários apertados, do entendimento difícil entre as pessoas e da violência que, mesmo quando não é explícita, está sempre latente.

Então, em que consiste essa coisa de paz interior? Os mais estressadinhos vão logo descartando a expressão como uma bobagem, uma utopia entre tantas. O mundo vive em guerra, são muitas as guerras que constantemente nos assolam. Mesmo longe de nós, uma guerra persistente e complicada como a do Iraque ou a que se instalou no Oriente Médio, os choques frequentes entre grupos antagônicos, nos países próximos de nós e no próprio Brasil, por exemplo, chegam sem parar pelo noticiário da mídia, por comentários a nossa volta, pela internet. Mesmo supondo que não houvesse guerras em algum momento, a memória e os ecos de conflitos passados seriam suficientes para nos mostrar que o ser humano é belicoso e sempre insatisfeito.

No meio de tumultos e até no próprio cenário dos confrontos, no entanto, há pessoas surpreendentemente pacíficas. Pensou em Nelson Mandela? Em Gandhi? No Dalai Lama? Em dom Hélder Câmara ou Martin Luther King?

Alguns nomes, mais conhecidos por suas atividades profissionais ou artísticas, também foram ou são grandes amigos da paz – Einstein, Oscar Wilde, Nietzsche ou John Lennon; alguns são menos conhecidos, como Uri Avnery, jornalista e líder do Bloco da Paz; Nurit Peled-Elhanan, professora de literatura comparada da Universidade Hebraica de Jerusalém e uma das fundadoras da associação Bereaved Families for Peace; o sociólogo polonês Zigmut Balman, autor de Modernidade Líquida, cujo pensamento vale a pena conhecer; o diplomata brasileiro tragicamente morto em seu posto de trabalho, Sérgio Vieira de Mello, fervoroso humanista e defensor da democracia, e mais uma infinidade de pessoas de todas as nacionalidades, cujos nomes ignoramos ou de quem pouco ouvimos falar, que vivem e trabalham pela paz com suas atitudes, atos e palavras.

Por que essas pessoas são capazes de criar ilhas de paz até em ambientes subvertidos e destroçados pelas guerras mais violentas? O que lhes dá força para sustentar essa luta diária, incessante, pela instauração da paz?

Daisaku Ikeda, um japonês de 81 anos, pacifista militante desde os 19, presidente do movimento Soka Gakkai, tem uma frase que me parece nuclear para entender o que significa paz interior: "A morte não é a maior tragédia do ser humano; é pior quando algo vital dentro da pessoa morre enquanto ela ainda está viva. Essa morte é certamente a coisa mais temível e trágica." Isso quer dizer que é preciso estar meio morto para impedir ou nada fazer para que as condições necessárias à paz se tornem uma realidade. Daí se pode concluir, sem muito risco de errar, que vivemos cercados de mortos-vivos.

Quem pensa, deseja ou consuma a morte do outro por interesse ou revanche; quem resolve seus conflitos ou impasses por meio da violência e da destruição; quem agride por qualquer motivo, quem se julga acima do bem e do mal; quem ainda se acha melhor ou mais importante que o resto dos mortais; quem não hesita em ir às últimas consequências para conseguir o que lhe parece direito seu; quem ignora o bem-estar alheio e agride os sentidos dos vizinhos com o som aos berros, sua falta de higiene ou dizendo o que quer e não suportando ouvir o que não quer; quem interfere futilmente na vida alheia e não leva em conta os direitos do outro, esses são exemplos clássicos de mortos-vivos. Não se trata de mera delicadeza ou refinamento, considerados por muitos como frescura. Trata-se de concretamente pensar nas consequências desagradáveis ou desagregadoras de seus atos, no prejuízo ou incômodo – às vezes desproporcionalmente maiores – que esses atos vão causar.


Ser pacífico não é ser medroso nem covarde. Pra ser pacífico, é preciso ser muito homem (mesmo sendo mulher), porque certamente se vai enfrentar o sarcasmo dos mortos-vivos e até sua antipatia e possíveis represálias. No mínimo, ser considerado um frouxo e continuar, em paz, em seu caminho, requer uma coragem acima da média. Mas em termos de paz interior, sempre compensa saber refletir, pensar antes de falar ou agir, ser solidário com quem precisa de apoio para se levantar. E a prova maior de que esse é o melhor do ser humano é a imagem do super-heroi, que vem da Antiguidade, e continua a existir. Mesmo que alguns deles tenham sido sequelados pela violência desenfreada de nosso mundo.

quarta-feira, 22 de abril de 2009

Assuntos de família

Dia Metral vivia mergulhado em suas lucubrações. Era um tipo radical, fechadão e de poucos amigos. Desde os tempos de escola, nunca admitiu ser contrariado ou desmentido em nada, embora sistematicamente contrariasse todo mundo.

Quando se apaixonou por uma vizinha, moça muito dócil, e decidiu que se casaria com ela, foi vapt-vupt: em dois meses eram marido e mulher. A senhora Metral, que se chamava Peri, agora Peri Metral, mantinha a calma em qualquer situação e tentava resolver tudo na conversa. Contornava as situações com muito tato e diplomacia. Evitava brigas com vizinhos que contrariavam Dia e amansava-o com jantares e sobremesas deliciosas.


O rabujice e a teimosia de Metral no entanto começavam a incomodar a pobre mulher além da conta. Tentou discutir a relação com ele, mas a resposta foi um taxativo vai pra cozinha. Peri, que nunca tomava decisões impensadas e contornava todas as dificuldades, foi ficando como se diz por aí cheia de tanto radicalismo e acabou pedindo o divórcio. Dia Metral ficou azul, roxo, vermelho e depois deu um murro na mesa. Peri correu para o quarto com medo dele, mas conseguiu o que queria: deixou de ser Peri Metral e voltou a usar o nome dos pais, senhor e senhora Frase.


Peri Frase não demorou muito a encontrar outro marido, o cordato Circunlóquio, que se tornou o homem de sua vida e com quem teve uma ninhada de filhos encantadores e prolixos.

Quanto a Dia Metral, após dez anos de solidão, encontrou enfim a musa de seus sonhos e não perdeu tempo: casou com ela e viveram brigando para sempre como cão e gato. A nova paixão se chamava O. Posta.

quinta-feira, 9 de abril de 2009

Ela




Sabe quando tudo te interessa e de repente, não mais que, deixa de interessar, assim no atacado? Pode ser leve ou heavy, mas é a famosa deprê.
Não dá pra brincar com ela. Sabe gato que às vezes surta e te mete dentes e unhas? A diferença é que gato você faz assepsia das feridas e toca a vida numa boa. O mesmo porém não se dá com a supracitada. Digamos assim como um gato hidrófobo, mas de uma raiva mansa, apagada, toda recolhida dentro de teu tubo digestivo, no oco do músculo cardíaco, devagar se espraiando pelas enzimas e apagando sinapses. Ou não. Pode saltar, agitar todos os sistemas, te deixar alterado, acelerado, atento a tudo e a todos enquanto desmorona num vazio de dentro, maninho, derrubado, carcomido, e quanto mais agita mais se demole, até cair feito fantoche sem ninguém pra mover os fios, boneco de ventríloquo sem o amo pra falar por ele.
Se dá pra morrer? Depende. Que dá, dá sim, não vou te enganar. Mas é lento, sofrido, dói muito. Tipo suicídio, sempre, mas pode ser ativo (você mete a cabeça no forno quem nem a Sílvia Plath fez, corta os pulsos ou entra no rio com os bolsos cheios de pedras, feito Virginia) ou passivo (mais comum úlcera gástrica, duodenal, enfarte, pneumonia fulminante, tuberculose braba ou câncer metastásico generalizado).
Mas pode ser branda, de duração menos ou mais longa. Sempre muito triste. Sempre sofrida porque te deixa a pé, te corta do tempo, da vida, te desliga do próximo, que fica distante léguas e léguas. Tira a vontade, sabe como? Nem banho, nem comida. Sair então, nem pensar. Um peso branco que te trava todo e nem te dá vontade de morrer, razão pela qual você continua vivo, mas assim, a contragosto. Aliás, depressão é contragosto mais do que desgosto. Desgosto supõe algum élan vital e em geral tem uma explicação. Ela não, ela vem e senta nos teus movimentos, os pensamentos ficam aguados, você quase não fala. Você chora. Nem Deus sabe por quê, mas você chora.

quinta-feira, 2 de abril de 2009

O gato, o lobo, o menino e Mary Sarojini e seu mainá


Foto Antônio Melo. Nos últimos raios de sol.



A coluna de João Pereira Coutinho, na Folha de São Paulo de 31 de março, fez lembrar O filho eterno, de Cristovão Tezza, e A ilha, de Aldoux Huxley, relido em março.

O tema de Coutinho, aprender dos animais, trata de nossa fuga sistemática ao presente, que diluímos entre a bagagem da memória e a ansiedade pelo futuro, deixando para o momento que se vive apenas um naco de atenção e a quase impossibilidade de ser feliz. Explicar isso equivale a dizer que é impossível ser feliz no passado ou no futuro, porque felicidade, queridas pessoas, ou se vive agora, ou não se vive. Existem, sim, a nostalgia da felicidade ou o desejo de ser feliz, mas nenhum dos dois pode ser considerado felicidade propriamente dita.

“(...) compre um gato”, preconiza o colunista. “Ele não espera nada, ele não deseja nada. A felicidade, para ele, não existe por adição (...). Mas por repetição: ele repete as experiências que são significativas. E, em cada repetição, existe a certeza da mesma felicidade.” Mais adiante, Coutinho relata a experiência do professor inglês Mark Rowlands, que comprou um lobo, domesticou-o (depois de ver destruída metade de seus móveis e objetos) e conviveu com ele durante 11 anos, levando o animal até para as aulas na universidade. O relato está em “O filósofo e o lobo: lições do selvagem sobre amor, morte e felicidade”, livro ainda não traduzido por aqui, e segundo a crônica “uma longa meditação sobre a natureza da felicidade humana. Ou, se preferirem, sobre a sua impossibilidade.”

Mas se o texto de Rowlands envolve um viés metafísico, no caso do romance premiadíssimo de Tezza o assunto fica restrito a uma experiência existencial, em que seu filho, portador da síndrome de Down, recebido pelo pai como empecilho a uma dinâmica de vida e trabalho normais, termina por “ensinar” o significado desse presente sem misturas de que falava Coutinho. Nada tipo livro de autoajuda. Aqui se trata de uma pessoa humana, que por uma deficiência neurológica está impossibilitada da constante referência ao passado, assim como da construção inesgotável de planos e projeções que a tirem do presente.

Em comum com o gato e o lobo, há um presente “puro”, isento de elementos que o fraturem; mas diferente dos animais, há uma sensibilidade a ser trabalhada e a educação da atividade motora, visando conseguir alguma autonomia física, além de uma afetividade peculiar, que precisa ser atentamente orientada. É um conjunto de métodos e dedicação que busca ajustar o menino a seu meio: repete indefinidamente as experiências que o levarão a adotar o melhor modo de agir, e nisso a família e os instrutores têm um papel fundamental. Não há superproteção, mas estímulos continuados sem descanso. Em outras palavras, o condicionamento não acontece simplesmente por uma compensação fisiológica à la Pavlov, como com os animais, mas por uma série de experiências que não privilegiam a memória, e sim todo o corpo; uma repetição constante que afinal o levará a agir de modo socialmente aceitável e a assimilar alguns conhecimentos de que irá precisar na vida adulta. Do fundo de seus limites, ele não entende, mas vive essa felicidade do momento, e é por ela que se abre caminho para a aceitação familiar e social.

Os personagens de Huxley, em A ilha, agem na linha de um psicologismo que reforça o papel psicanalítico da terapia da palavra. Logo no início, quando a menina Mary Sarojini e seu irmão encontram Will, o protagonista e narrador do romance, muito ferido e taumatizado, ela põe em prática a cura pela palavra – uma chimney-sweeping, como a chamava Ana O., a primeira paciente histérica de Freud. O procedimento da menina – uma “análise selvagem”, por assim dizer – pretende, e consegue, livrar o navegador dos traumas por que passou com o naufrágio de seu barco e a escalada pelas pedras, ferido e aterrorizado por serpentes ameaçadoras. Ao fundo, um mainá, pássaro da ilha, repete sem parar “Atenção”, “Vamos, rapazes, é agora”. Mary quebra a resistência de Will e o faz repetir tantas vezes quantas fossem necessárias o que havia acontecido, até que tudo ficasse relegado ao passado e ele se convencesse de que afinal estava livre para seguir o conselho do mainá no presente, único tempo que realmente precisa de toda a atenção disponível.

Acho que a conclusão lógica desses exemplos todos é que, excetuando os crentes extremados que preferem se abster de muitas alegrias terrenas em favor da vida eterna no Paraíso, continuamos interessados basicamente em conseguir a felicidade durante esta vida. É em torno desse desejo – e em contraponto da morte – que giram nossa razão, nossas pesquisas e a busca de conhecimento.

O pensamento contemporâneo continua correndo atrás das condições que nos permitirão viver a vida de modo mais pleno, e portanto ser mais felizes, quando pintar uma chance de ser feliz. Não acontece todo dia. Nem é tão simples assim. Mas pode-se falar disso de outra vez.