segunda-feira, 17 de maio de 2010

Goles

A culpa dos conflitos de agora entre extremistas de todos os quadrantes da Terra é do Criador. Se ele tivesse inventado a comunicação por satélite em vez de descansar no sétimo dia, essa fase convulsiva da história já estaria encerrada, porque das duas uma: ou as tribos já teriam se estranhado tudo a que tinham direito e se acostumado com os usos umas das outras, superando os conflitos étnicos e religiosos e guardando as energias para brigar por dinheiro e suas metonímias; ou o mundo o já teria ido pelos ares (gulp!) e a gente nem teria nascido.
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Alguns amigos defendem a ideia de não deixar os livros criarem poeira na estante. Acho muito simpática a ideia de agitar novos leitores, mas desisti de seguir as campanhas pela alta rotatividade dos livros. O máximo que consegui foi marcar um prazo de dois anos para os três que tenho preguiça de começar, mas que ainda não perdi as esperanças de ler; e para mais uns tantos que os outros acham que eu devia ler; ou mesmo uns três ou quatro que eu acho que teria obrigação de ler mas nenhuma vontade. Não são muitos, e se nenhum deles me vencer pelo cansaço, começarão a circular depois de esgotado o prazo. Mas os outros, que li e quero sempre reler, ou que gosto de folhear como quem faz festa num gato de estimação, esses – tsk, tsk, tsk – desculpem os defensores da doutrina, mas não vou liberar não.
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O Bookscrossing.com é um convidativo oceano de livros e assuntos afins, onde se movimentam trocas e doações de livros usados. Há também links para sistemas de publicação facilitada para autores novos ou com pequenos nichos de mercado que os grandes editores rejeitam. Pena que ficam em outros países. Não falamos do site para mostrar quão ruinzinhos somos de transas editoriais, mas porque são modelos possíveis que podem sugerir ou inspirar idéias novas por aqui. Ou até, quem sabe, aceitar originais de autores brasileiros, dentro das condições deles – e das nossas, of course. A propósito, é bom consultar o site Clube de Autores. Ainda não experimentei, mas me pareceu à primeira vista uma iniciativa bem útil, pelas razões acima mencionadas.

segunda-feira, 10 de maio de 2010

Artes, artistas e arteiros

Quando eu era criança – uau, faz tempo – usava-se a expressão “fazer artes” para explicar que o garoto era levado, bagunceiro e irrequieto. Tive vizinhos que eram exemplos impecáveis de meninos arteiros, viviam de joelhos ralados e equimoses por todo o corpo, de tanto cair, esbarrar e se acidentar. Um deles – o Agnaldo, nunca esquecerei dele – quebrou a cabeça tantas vezes que as enfermeiras do pronto-socorro para onde a mãe o carregava nessas horas já faziam piada. Nem poste escapava da cabeça do Naldo.
Mas além desses arteiros, existem outros, não mais crianças, que fazem artes com a pretensão de fazer Arte. É difícil distinguir, às vezes, se o que vemos é uma instalação ou uma impostura, um quadro ou o ato impulsivo de um autista em crise.
Não tenho absolutamente nada contra arte conceitual, abstrata, obras contemporâneas realizadas por gente que sabe o que está fazendo e é capaz de, mesmo usando material nada nobre, apresentar coisas novas, emocionantes ou que nos façam refletir pelo valor estético e pela criatividade. Tem que haver ao menos um material, uma forma ou fragmento de forma, uma cor, uma sugestão qualquer que desperte interesse e dê vontade de contemplar, nem que seja pelo fato de contrariar o que nossa noção de arte considera como tal.
Um dos exemplos mais conhecidos desse tipo de artista é o trabalho pop dos grafiteiros, imagens dinâmicas, coloridas, festivas ou não para os olhos. Tenho visto verdadeiras obras de Arte maiúscula espalhadas por aí, longe da proteção dos museus, assinadas por ilustres desconhecidos que no entanto bem mereciam o reconhecimento da Cultura oficial. É claro que entre eles também existem os bicões, o que é fácil de explicar. E nem falo dos pichadores de fachadas, que não passam de uma triste praga da cidade.
Pior é o cara que tem acesso a uma exposição séria e, infiltrado entre artistas respeitáveis, deixa lá um trabalho inexpressivo e vazio de significado. Já demorei três vezes mais diante de uma instalação ou pintura que não me dizia nada, do que diante de uma obra de Vick Muniz ou Van Gogh. Tudo para evitar ser injusta com algum gênio incompreendido, querendo captar que coisa ou coisas estaria ele querendo dizer com aquele montinho de folhas rasgadas ou sacos plásticos iguais aos que a gente atira todo dia lixeira abaixo e que, por si mesmos, nada mais dizem do que... lixo. É preciso um gancho, uma referência, um cenário, algo que estabeleça um estado de coisas, um desequilíbrio, um incômodo, contraste ou harmonia dignos de atenção. Arte pressupõe interseção de diferenças, o reconhecimento de alguma coisa que nos tire da mesmice. A sensação de estar sendo enganado paira no ar sobre certas obras – vá lá – de arte. Acontece que arte sem expressão parece uma contradição em termos.
Talvez o que mais motive alguém a lutar contra o impulso de virar as costas a esses supostos artistas seja a lembrança de que também Van Gogh foi rejeitado por seus contemporâneos, a ponto de não ter conseguido vender um único quadro enquanto estava vivo. Mas consola reconhecer que o holandês fez bem mais que rasgar umas folhas em branco ou juntar resíduos em sacos de supermercado, estabelecimento desconhecido no tempo dele.



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O blog ganhou da Em@ o Prêmio Dardos, o que me deixa muito grata.

Vem acompanhado de algumas regras:
A. Exibir a imagem do selo no blog, o que faço com alegria. B. Linkar o blog pelo qual recebeu a indicação, outra alegria, porque a Em@ é pessoa querida. C. Escolher 15 blogs para atribuir o prêmio.

Só peço desculpas por não cumprir a terceira norma, o que simplesmente não consigo fazer. Quero que os amigos fiquem à vontade para aceitar o prêmio, dado de coração. Acho que todo mundo que lê e comenta o Coluna do Meio merece e não consigo selecionar só 15 entre os blogs amigos.

segunda-feira, 3 de maio de 2010

O Universo em expansão e a novela das nove

         

Tela de Jacek Yerka.

           
Novela é uma ficção em câmera lentíssima, que se arrasta por meses inumeráveis pra contar uma história que caberia em uma semana. Ou, porque afinal tem muitos núcleos, como diz o pessoal da produção, em quinze dias no máximo dava pra matar aquele drama de gente de família, sem família e antifamília que se engalfinha, associa, trai ou vira as costas uns aos outros. Isso se percebe acompanhando o folhetim desde o começo, todo dia, pulando semanas ou de dois em dois meses, porque é incrível o quanto um autor de novela consegue esticar a trama, repetindo situações, repisando coisas já ditas e reditas, explorando a paciência dos atores, alguns dos quais ótimos profissionais que mereciam melhor destino.
Existem as do tipo pastelão, as “sérias” – que em geral viram chatas mesmo – ou as razoavelmente assitíveis, quando existe um roteiro bacana, algum suspense bem articulado, humor inteligente ou emoção genuína. Coisa rara. Quase sempre a novela escorre ralinha, escorada em um visual que atrai – paisagens, decoração, arquiteturas, modas, gente bonita – e serve para encher o tempo e refrescar os olhos de quem gostaria de frequentar os restaurantes mais caros da zona Sul (o que se come em novelas tipo a das nove é uma grandeza), tomar aquele café da manhã todo colorido, dar festas de arromba e comprar os modelitos que as moças desfilam. Pra não ficar doce demais, tempera com algum sofrimento em cenários de luxo e prova com uma cena de sangue que viver na favela não compensa (pano rápido, por favor, que ninguém precisa ficar poluindo a visão com essas baixarias).
Mas enquanto os personagens ruminam seus dramas pessoais, quase sempre bem mesquinhos, o mundo em geral passa em brancas nuvens (exceto quando chove no script) e se engorda o hábito alienante que as pessoas têm de relegar ao limbo da indiferença o que não for de interesse imediato.
A gente vive num planeta de uma constelação de uma galáxia de um universo, do qual – surpresa! – se diz que é plano e avança sem parar entre espaços negros que não se descobriu ainda em que consistem. Sabe-se pelas mídias que o planeta Terra está aquecendo, tem mostrado um mau humor literalmente tempestuoso e as geleiras, que sempre dormiram quietinhas em suas montanhas polares, estão de repente soltando pedaços, icebergs que derretem e fazem subir o nível da água dos oceanos, mudando climas e estações. Há quem culpe a ambição capitalista por suas emissões de carbono, mas há também quem acredite simplesmente que se trata de um ciclo na vida do planeta, tipo dos que se sucedem há milhões de anos. Pode ser que as duas coisas estejam pesando, mas não queremos pensar nisso.
Enquanto tudo acontece, nós, os noveleiros, ficamos diante da tv ligadões no drama de Luciana, na chatice de Isabel e da maluca da Ingrid ou no mau humor de Jorge. Não interessa saber que bicho vai dar ou vai sumir, como os dinossauros sumiram em uma era passada. Preferimos não pensar no assunto, que afinal cabe aos cientistas estudar e explicar. Mas será que é melhor esquecer que moramos numa grande área de risco, não uma encosta aterrada sobre um lixão, mas uma terra que treme, se abre, e que o mar pode engolir?
Nada disso precisa nos arrasar e deixar pessimistas ou aterrorizados. Afinal, é provável que esse ciclo demore séculos, que o homem aprenda a lidar melhor com as catástrofes naturais e que se descubram meios de ampliar ainda mais o tempo da vida humana, porque as pesquisas e a ciência têm feito verdadeiros milagres. E se isso não acontecer, continuamos a ser os mortais de sempre – grande novidade – só que agora com um estímulo a mais para descobrir coisas novas, que nem as novelas, o consumismo ou o voyeurismo vão nos dar. Já que a vida tem fim, ao menos vamos aproveitar o que ela nos oferece de melhor que os subprodutos da televisão.

segunda-feira, 26 de abril de 2010

Ninguém é de ferro



        Como se sabe, a segunda é o dia útil mais inútil da semana, de vez que existe com a finalidade precípua de oferecer um descanso após os agitos de sábado e domingo.

        Que o digam esses bravos rapazes que se sacrificam por nós no Congresso, na inóspita cidade de Brasília, que nem esquina tem direito, boteco então nem se cogita, e que têm sido acerbamente criticados por legislarem em causa própria.

         Tudo isso só porque aproveitam seu frenético cotidiano – que vai de terça a quinta-feira todas as semanas do ano, que não sejam de recesso nem de férias ou eventuais licenças nem estejam em viagem – para reparar a clamorosa injustiça de seus salários relativamente tão minguados. Afinal, o que são 12 mil e lá vai (muita) fumaça para uma pessoa do quilate deles? É justo, justíssimo, que pretendam e lutem bravamente para chegar aos 16 e lá vai mais fumaça ainda, enquanto na verdade visam os 20 e poucos (mais a fumaça, é claro, que sem fumaça ninguém vive).

         Fique claro que fumaça quer dizer ajudas de custo – casa, alimentação à altura, transporte do melhor e grátis sempre à mão, viagens – durante as quais ninguém pensa em aproveitar para se divertir, porque a consciência do dever os inocula por inteiro. Ia esquecendo a boa apresentação e a moradia mais que apenas decente que o decoro parlamentar exige, além da necessidade de estar em dia com a saúde e a aparência física. Tudo isso custa (muito) dinheiro. Fumaça neles.

        A galera do feijão-com-arroz nem faz idéia dos sacrifícios que esses denodados cidadãos fazem pela pátria e pelo bem-estar da mesma dita galera. E como se não bastasse o peso de tantas obrigações e dedicação, ainda querem que eles vivam como o Zé povinho, pagando por todos os serviços de que necessitam para bem cumprir seus sagrados compromissos com o povo que os elegeu. Será que não dá pra reconhecer que esses homens precisam de paz, alegria de viver e muitos prazeres extras (físicos, como comida de primeira, massagistas dadivosas e bons programas em ambiente seleto; morais, como o dinheiro, e intelectuais, como o poder) para dar conta de tão complexo recado?

        Pior – coisa inominável, dá até tristeza pensar nisso – querem que eles paguem por pequenos deslizes que em nada prejudicariam seus amados eleitores, caso não houvesse sempre invejosos e boquirrotos para denunciá-los. Gente de mau caráter. Querem perturbar a paz do povo com notícias sensacionalistas e confrontá-los com CPIs e assemelhados. Gente que não conseguiu se elevar à categoria de intocáveis que eles conquistaram. Essa gente não pensa que, para chegar lá, se expuseram a riscos inimagináveis, só comparáveis aos que correm os falsários, soldados do tráfico de drogas e assaltantes de bancos. E não pensa tampouco que o povo viveria muito mais feliz sem que suas manobras – sempre mal interpretadas – chegassem ao conhecimento do respeitável público.

       Gastaram as solas de inumeráveis sapatos, se arriscaram às intempéries, sofreram indigestões pantagruélicas em almoços puxados a pratos exóticos de preparo duvidoso, levaram tombos memoráveis de palanques improvisados e enrouqueceram de tanto clamar pela atenção dessa espécie ingrata e desavisada dos eleitores indecisos. Tudo em nome de uma causa nobre, qual seja, se arrumar para o resto da vida e amparar a (própria) família com uma fortuna tão mais bela quanto mais sólida. Abnegados rapazes. Têm toda nossa compreensão.

segunda-feira, 19 de abril de 2010

Do mercenarismo e suas vicissitudes



Sou uma revisora arrependida. Deus sabe – hélàs! – como gostaria de não ter empregado tanto tempo em tão desgastante função. É um meio de vida como outro qualquer, porém mais trabalhoso e sofrido do que acredita a maioria das pessoas. Os profissionais que conheci no setor eram em geral pessoas competentes e dedicadas. Mas quase todo mundo ouve falar dessas ocupações distraidamente e tem apenas uma vaga idéia do que fazem copidesques e revisores.
Copidesque e revisor são assim como empregada doméstica: só chama atenção pelo que não fez. É um ofício que funciona no negativo. Quanto mais você ralar, quanto melhor ficar seu trabalho, menos vão reparar em você (exceto talvez no que diz respeito a seu chefe imediato, e assim mesmo nem sempre). Não tem representatividade; não acrescenta nada; não cria e não progride na carreira, a não ser que o coordenador editorial se demita e seu chefe acredite que você está apto para o cargo. Isso quase certamente significará um acréscimo simbólico em seu salário e um aumento caudaloso de responsabilidade, trabalho braçal multiplicado e dores de cabeça cotidianas por conta dos setores envolvidos no processo.
Além disso (felizmente por pouco tempo), fui ghost-writer. Mais fácil de entender, o trabalho ficou ainda mais conhecido depois que Chico abordou o tema de modo tão fiel, embora meio caricatural, no ótimo Budapeste. Mas só quem passa pela coisa ao vivo e em cores alcança o grau de angústia que ela pode provocar.
Para mim, ao menos, era como ter um filho e cuidar dele para depois entregar aos pais de adoção sem me deixar identificar. É mais ou menos como alugar a barriga, engravidar, parir e amamentar "a serviço". Quem escreve sabe do que estou falando.
Há quem contrate os serviços de um ghost-writer e passe a se considerar mentor de seu trabalho, confundindo a propriedade do texto com a de quem o realiza. Em casos mais difíceis, seu contratante (doravante assim chamado no contrato de trabalho) passa automaticamente à condição de seu amo e senhor em horário integral: você pode ser procurado no meio de um casamento – ainda que seja o seu –, numa sessão de cinema, na academia onde estiver malhando, durante as refeições e/ou às três da manhã, esteja ou não fazendo o que se costuma fazer a tais desoras, inclusive dormindo.
Se a obra for de ficção ou quanto mais o contratante acreditar que seu texto lhe abrirá as portas da fama e da riqueza, fácil, fácil se estabelece um conflito que acaba afetando a sintonia fina da relação, porque ele ou ela odiará você por estar lhe usurpando o prazer intransferível de escrever uma história que é dele (ou dela), usando suas idéias, bens infungíveis de sua propriedade, e – ainda que inconscientemente – estará arrependido de tê-lo contratado, julgando que você não corresponde às expectativas e está vilipendiando sua obra-prima.
Você poderá até se tornar persona non grata aos olhos do contratante, que, no entanto (saco!), precisa de seus trabalhos, de sua redação, de suas palavras, enfim, desse ser desprezível que demora a consumar a obra brilhante que se esperava dele. E como ele ou ela está lhe pagando (em sua opinião regiamente) para desmanchar seu (dele) prazer, exigirá que você produza no mínimo um best-seller que o torne um autor de fama internacional e uma pessoa abastada para o resto da vida.
Ele ou ela vai esperar isso de você ainda que o tema ou o enredo a ser desenvolvido seja pífio e sem consistência. Você pode ainda descobrir, lá pelas tantas, que a matéria-prima a desenvolver não passa de um plágio descarado – como me aconteceu uma vez. Contratante também pode carecer de ética, e aí contratado precisa estar atento pra não embarcar numa furada.
Ghost-writer que se preza sabe muito bem que, se alguma coisa puder dar errado, vai dar: sua atividade é regida pela lei de Murphy. Ele, que não recebe elogios pela boa qualidade de seu trabalho, na certa será solidário para responder por alguma possível ilicitude ou ofensa provocada pelo texto que ajudou a criar.
Bem feito. Mero e simples escriba mercenário, que se vire com seu amor às palavras, seu apego ao texto, seu prazer masoquista e pervertido de escrever mesmo em circunstâncias assim mesquinhas e ainda se regozijar (em segredo, por favor!) com o sucesso que possa alcançar esse filho bastardo.

terça-feira, 13 de abril de 2010

Em dois mil e cinco








Sim, estamos em 2010, não delirei.

Mas levando em conta que o arsenal de energia nuclear do Irã – e sabe-se lá se outros – volta a preocupar o mundo com suas ameaças latentes; que a tensão no Oriente Médio não relaxa: que o terrorismo instituído não só não sumiu da face da Terra como continua a nos fitar com aquele olhar gelado dos fanáticos; que o homem não se corrigiu de lá pra cá e continua retaliador e violento; que - apesar de pequenas variações ainda insuficientes – os interesses de mercado continuam pondo o lucro acima de qualquer outro valor. Considerando que o procedimento dos políticos mudou muito pouco nesses cinco anos, se é que mudou mesmo (às vezes parece que, sentindo alguma pressão e vendo um ou outro arruda sofrer as consequências de seus atos, eles aprendem a dissimular um pouco melhor aos olhos dos eleitores incautos). Enfim, considerando a humana capacidade de perseverar no erro e exercer a irresponsabilidade ad nauseam, reli a crônica aí abaixo e senti um gosto ruim de nada-mudou.

Na dúvida, fui escovar os dentes e passar um listerine nas mucosas bucais. Mas o gosto continuou, e então queria testar com meus quatro leitores se é isso mesmo ou se já ingressei na fase da rabugice mais aguda.

Vejam só: substituindo 2005 por 2010 e 2006 por 2011, parece que no conjunto mudamos bem pouco.

Dois mil e cinco foi embora como o ano da grande frustração, do recrudescimento da guerra e das grandes catástrofes – culpa do homem, quase sempre. A coisa foi tão desastrosa que se teve a impressão de ter dado um passo atrás, rumo aos tempos bíblicos ou medievais.

Desejar mil venturas para 2006 talvez fosse um pouco excessivo. A expectativa possível era a de que apesar de tudo a democracia continuasse a vigorar no país e em todos os outros onde já existisse; que as encrencas resultantes da fraude, da triste tradição da corrupção endêmica e da esperteza generalizada encontrassem exemplares mais light entre políticos e cidadãos em geral e que aos poucos se tomasse consciência de que não é por aí; que ao menos os apetites fossem moderados, o que bem podia acontecer se as eleições respondessem com um bom gelo e  falsários e ladrões perdessem as benesses e o emprego.

A esperança era eleger o menor dos males em 2006. Não me perguntem como se chama esse senhor, porque nem desconfio. Mas podia ser o início de uma aliviada em nosso pesadelo, não custava sonhar um pouquinho numa data como essa.

Pena que o iceberg malcheiroso que despontava em 2005 continua emergindo até hoje. Nossa esperança não vingou.

Quanto ao resto, já era isso mesmo de agora: o planeta reage ao vírus chamado homem, que o deixa doente de secas e inundações, que desequilibra o andamento natural das coisas com seu olho desmesuradamente grande e sua ambição desmedida, que serve a poucos e deixa cada vez mais gente sem o essencial pra viver com decência.

Por tudo isso, neste ano ainda não vai dar pra desejar mil venturas. Sejamos realistas, é melhor. Nada de achar que nada disso importa, porque essa filosofia de vida só nos leva cada vez mais pra dentro de um buraco sem fundo. Melhor mesmo é ficarmos atentos, conscientes do que nos rodeia e nos ameaça, como por exemplo o comportamento de nossos dignitários.

Na pior das hipóteses, de olhos abertos e ouvidos afiados, ao menos preparamos o espírito para aguentar o tranco, que não nos pegará de todo desprevenidos – o que às vezes é essencial, vejam o que aconteceu com quem conseguiu prever o tsunami e por isso escapou com vida.

E na melhor delas, ao menos poderemos sorrir de novo com alguma esperança diante de um indício de que as coisas estão mudando para melhor. E também podemos ao menos desejar que cada um de nós e cada família tenha um ano mais propício, porque às vezes acontece. Amém.

quarta-feira, 7 de abril de 2010

A alma encantadora de João



João do Rio. A alma encantadora das ruas. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. 253p.


A alma encantadora das ruas reúne crônicas de João do Rio, pseudônimo do acadêmico Paulo Barreto, falecido dentro de um táxi em 23 de junho de 1921. Textos típicos do flâneur que ele foi, originalmente publicados de 1904 a 1907 na imprensa carioca, estão organizados nesse volume por Raúl Antelo, autor da boa introdução, mostrando desde uma breve biografia do cronista até o alcance sua obra, que contribuiu de modo decisivo para “abrir janelas na modernidade brasileira”.
 A leveza com que trata essa “alma das ruas”, torna a leitura agradável sem a facilidade do superficial. A visão da rua nessas crônicas tece uma espécie de ícone de uma sociedade e de um tempo que se estende além de algumas gerações. Se a ideia de pátria e mesmo a de cidade são grandiosas demais para o homem individual, a rua é o espaço na sua medida exata. Estão ali o chão que ele pisa no dia-a-dia, os tipos com que interage durante a existência, os instrumentos ou o lugar de seu trabalho. É nas ruas de um bairro que primeiro aprendemos a ser alguém, pertencer a um grupo, evitar riscos e personagens indesejáveis. Há ainda muitas outras coisas que se aprendem nas ruas por onde se passa, passeia ou onde nos divertimos.

João do Rio fala do Rio de Janeiro, sua cidade, de seus habitantes, trabalhadores e cidadãos de classes variadas. Mas é no pequeno trabalhador, nos tipos ditos de rua que demora seu olhar perspicaz e divertido, como em “Pequenas profissões”. Em “Os tatuadores”, vemos que a mania de tatuagem, que parece coisa tão atual, é bem mais antiga do que imaginamos. Assim como a religiosidade popular, antes da febre de igrejas que ora nos aflige, e as leituras que o homem da rua prefere. Os pintores de rua, hoje representados também por pixadores e grafiteiros, são motivo de comparações divertidas e sarcásticas. O autor faz um paralelo entre os egos inflados, que reclamam por se considerar grandes artistas injustiçados, e os pintores anônimos, que podem ser apreciados “levemente e sem custo”, alguns dos quais, que ele chama os “heróis da tabuleta”, fazem uma arte de utilidade prática. Esses artistas anônimos têm em comum “os germes de todos os gêneros, todas as escolas e, por fim, muito menos vaidade que na arte privilegiada”.
Está no texto ainda a mania de janela do carioca, tema que Barreto pretendera desenvolver num livro que ele mesmo classificou de “notável”. Ali também se encontram a origem, as influências e a ironia contida em tantos nomes que batizaram as ruas do Rio. Muito mais que “um alinhado de fachadas, por onde se anda nas povoações”, como a definem as enciclopédias, a rua é para ele “um fator de vida das cidades”, e acrescenta: “a rua tem alma!”
 O texto é temperado de erudição e iluminado pela visão de mundo do autor, homem viajado e culto, que no entanto redescobre nas atividades mais primitivas e populares os mesmos princípios que levaram o homem universal à realização de grandes obras. A rua é para ele “o motivo emocional da arte urbana mais forte e mais intenso. A rua tem ainda um valor de sangue e de sofrimento: criou um símbolo universal.” O texto se expande no sentido da universalidade e do significado da rua em outras terras e outras cidades, suas características, sua perecibilidade, a rua como suporte da História. Mas acima de tudo, é a redescoberta, a seu tempo, da poesia genuína que nunca deixou de florescer nas ruas da cidade.