quinta-feira, 16 de agosto de 2007

O bem, o mal e a coluna do meio




Quando terminava de ler uma crônica de Arthur Dapieve falando de Paradise now e Munique – dois bons filmes que tratam do conflito cronicamente agudo do Oriente Médio – parei no último parágrafo: “Em Spielberg, mais explicitamente que em Abu-Assad, vítimas e algozes convivem nos mesmos seres humanos. Dada a tendência a separar quem vemos na tela (e fora dela) entre mocinhos e bandidos, cheios de certezas, as dúvidas de ‘Munique’ são perturbadoras.”
O núcleo desse comentário de Dapieve equivale ao olho de um furacão capaz de levar o mundo pelos ares. As pessoas estão muito condicionadas a separar bem e mal, vítima e algoz com a facilidade com que se distingue o preto do branco (falo das cores mesmo, embora o tema admita alguma confusão de sentido – que aliás teria tudo a ver). É aí que reside a semente de toda polêmica, seja moral, religiosa, ideológica ou doméstica. Sem refletir muito, é fácil acreditar-se que só existe uma atitude correta diante dos outros e dos acontecimentos: separar certo e errado para depois se situar do lado de cá ou de lá, a favor – ou contra – de um(ns) ou de outro(s).
Já ouvi gente culta e informada dizer taxativamente que isso ou aquilo é bom ou mau e que fulano é ou não é do bem, antes mesmo de avaliar o que está por trás das aparências e circunstâncias. Bem e mal seriam campos simétricos e nítidos o bastante pra ninguém se enganar a respeito?
Para algumas pessoas, tentar entender o que os outros fazem, antes de obedecer ao primeiro impulso de rotular, é sinal de dubiedade de caráter. Admira-se facilmente quem fala de cabeça erguida, firme e sem dúvidas sobre seus juízos. Concordo que pode ser retoricamente bonito um discurso muito bem encadeado ou uma afirmação peremptória, que impressione os ouvintes. Mas será sempre verdadeiro?
A sensação de bem-estar e alívio que leva as pessoas a apoiar demagogos ou tiranos em potencial, sob a influência de seus discursos, é muito parecida com a reação de quem se deixa levar pelas aparências de um julgamento “definitivo” baseado em valores preestabelecidos. No fundo, ninguém quer correr o risco de pactuar com o mal, e na dúvida prefere entregar a decisão final a um terceiro que aparentemente tenha uma lógica irrefutável – embora já se tenha comprovado de modo exaustivo que nem só de lógica vive o homem e que a lógica não passa de um instrumento do pensar.
É fácil demais aceitar à primeira vista uma opinião que parece vir ao encontro da nossa. Mais fácil ainda cometer um erro e muitas vezes praticar ou ajudar a praticar uma tremenda injustiça por conta disso.
Há um lado muito sombrio nessa atitude – infelizmente muito comum. Ninguém se submete impunemente à opinião alheia. Quando se age desse modo, o que na verdade está se entregando a outro é uma importante parcela de nossa liberdade. Não se pode abdicar da liberdade como se ela fosse apenas uma questão de opção. Não é. A liberdade é um direito, e é preciso estar atento, porque um direito traz implícito o dever de exercê-lo de modo responsável e conseqüente. Simplificar o que é complexo e defender opiniões com base numa visão primária de certo e errado, de bem e mal, equivale para a sociedade à ação do cupim na madeira.
A questão do Oriente, onde como já disse alguém “só o passado é previsível”, pode ser uma boa dica para se ensaiar uma reflexão sem nenhum compromisso formal. Paradise now e Munique, cada qual a seu modo, são frutos de pontos de vista não antagônicos, embora contraditórios sob alguns aspectos. Representam bom subsídio para quem quer entender um pouco mais o conflito do Oriente Médio, sem qualquer pretensão maior além de exercitar o entendimento e a sensibilidade e afiar a capacidade crítica. Sem as quais periga tornar-se o que se costumava chamar um teleguiado – o equivalente a alguém que não pensa com a própria cabeça.

2 comentários:

Marcelo F. Carvalho disse...

Perfeito, Adelaide. O preto e o branco são cores inexistentes em nós humanos. Somos todos cinzas. O Barroco se chama homem!
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Abraço forte!

ana v. disse...

Noutro campo completamente diferente, que não tem muito a ver com política mas sim com sentimentos e comportamentos humanos, proponho um filme que é um óptimo exercício de reflexão para quem tem a tendência de rotular tudo entre o "bem" e o "mal": o filme de Pedro Almodôvar - Hable con Ella, um tratado sobre a alma humana e um dos meus filmes de culto. E ainda tem o extra de Caetano ao vivo, cantando "Paloma".