quinta-feira, 7 de junho de 2007

Pensamentos deslizantes e outras perturbações


Paula Mastroberti. Mendigo Quix.

Fulano usa terno e gravata.
Beltrano usa camiseta e sandália de dedo.
F é sério e trabalha dia e noite. Até o lazer de F existe em função dos negócios.
B solta pipa o dia todo e à noite toma cerveja fiado.
F tem bens de família.
B nunca teve família.
F estudou em Londres e na Alemanha, é PhD em economia e ciências políticas.
B estudou até o meio da segunda série e foi avião do tráfico.
F é politicamente correto em palavras e ações.
B é objeto de políticas sociais e come na Central a R$ 1,00.
F é cidadão exemplar e zela pela higiene e segurança nas áreas públicas.
B mija na rua.
F passa as férias em Paris e Angra.
B foi ao piscinão um fim de semana aí.
F tem passagens aéreas e estadia paga em hotéis cinco estrelas quando viaja a serviço.
B dorme embaixo da marquise do supermercado quando bebe demais.
F deu um rombo de 200 milhões há dois anos, mas ninguém ficou sabendo.
B foi em cana porque bateu a carteira de um gringo no calçadão.


Paula Mastroberti. Sancho Shop.

Alguns amigos defendem a idéia de não deixar os livros criarem poeira na estante. Acho muito simpática a idéia de agitar novos leitores, mas desisti de seguir as campanhas pela alta rotatividade dos livros. O máximo que consegui foi marcar um prazo de dois anos para os três que tenho preguiça de começar, mas que ainda não perdi as esperanças de ler; e para mais uns tantos que os outros acham que eu devia ler; ou mesmo uns três ou quatro que eu acho que teria obrigação de ler mas nenhuma vontade. Não são muitos, e se nenhum deles me vencer pelo cansaço, começarão a circular depois de esgotado o prazo. Mas os outros, que li e quero sempre reler, ou que gosto de folhear como quem faz festa num gato de estimação, esses – tsk, tsk, tsk – desculpem os defensores da doutrina, mas não vou liberar não.

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Dos anos que ela passou comendo alface com arroz integral restaram-lhe uma figura comprida, um pouco desengonçada, e o apelido carinhoso de página virada.

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Encontrou-a assistindo à sessão da tarde com um saco de amendoins na mão.
— Ah, é você (olhar de desdém). Então, pensou no que eu te disse?
— Não.
— E veio aqui fazer o quê? Buscar o carro?
— Não. Estou de moto.
Curto silêncio.
— Vim olhar de novo essa casa. Vim...
— Você nunca se preocupou com a casa. Vivia dizendo que era apertada, que...
— Não exatamente – ele diz, voltando-se para ela. Não é pela casa.
— Então é o quê? Os móveis? Vai querer ficar com algum?
— Não. Por que não vamos ao cinema? Está passando um filme do Almodóvar ali no Estação.
— Já vi. Nem é tão bom assim – ela respondeu, mastigando sem tirar os olhos da TV.
Ele deu meia-volta e saiu sem fazer barulho. Nunca mais voltou.

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Adivinha quem vem para o jantar.
Acertou quem disse a vitela desfilando um longo de molho de cogumelos.

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A culpa dos conflitos de agora entre extremistas de todos os quadrantes da Terra é do Criador. Se ele tivesse inventado a comunicação por satélite em vez de descansar no sétimo dia, essa fase convulsiva da história já estaria encerrada, porque das duas uma: ou as tribos já teriam se estranhado tudo a que tinham direito e se acostumado com os usos umas das outras, superando os conflitos étnicos e religiosos e guardando as energias para brigar por dinheiro e suas metonímias; ou o mundo o já teria ido pelos ares (gulp!) e a gente nem teria nascido.

‘Prefiro o rumor do mar’



Prefiro o rumor do mar é o poético nome de um filme dirigido pelo italiano Mimmo Calopresti, selecionado para a 24ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo em 2000. O nome do filme, que aí no cartaz aparece com a palavra "barulho" em vez de rumor, não bate com o título da versão a que assisti.
Dadas as velozes condições em que vivemos, um filme já meio antiguinho. Tive a sorte de ligar a tv no momento em que começava e poder assistir a um raro exemplar de cinema sem efeitos especiais nem atos terroristas gratuitos como os que passam aos montes na telinha. Nem me lembro de ter ouvido falar dele. Talvez seja eu a desinformada. Mas desconfio que nem passou nos cinemas daqui.
Ganhei o dia. Gosto de histórias que façam refletir, e essa é uma. Um jovem calabrês chamado Rosario vem trabalhar em Turim, onde encontra outro adolescente, Matteo, de uma família de gente blasé. Aos poucos descobre que, entre os adultos, até os gestos de aparente solidariedade escondem um comodismo esmagador, e que mesmo quem parece disposto a ajudá-lo, ou simplesmente deixar que viva em paz, está na verdade à espera de bajulação e submissão, moedas de troca que ele não traz de sua terra. Diante do individualismo, dos hábitos egoisticamente cruéis e da frieza das pessoas de um meio tão diferente de seu lugar de origem, ele se encolhe como um caracol na casca e sofre calado até o momento em que, não agüentando a barra, volta a sua aldeia natal.
Um roteiro singelo para mostrar a imensa complexidade de personagens muito reais e o sofrimento que os homens infligem aos outros e a si mesmos e nome de uma forma equivocada de narcisismo. Sem dramalhões nem inverossimilhanças, o medo de amar e os álibis convencionados como defesa contra a aproximação de outro ser humano estão todos lá. De negação em negação, chega-se ao beco sem saída da pior das solidões.
A comentarista Elizabeth Missland dá outras informações sobre o diretor Mimmo Calopresti, que aos 45 anos exibiu Prefrerisco la rumore del mare em Cannes, na mostra Um Certo Olhar.
Mimmo está bem consciente do que pretende com sua obra, filmada em 19 semanas entre a Calábria e Turim: “Devemos ter coragem para enfrentar o público e a crítica. O Norte e o Sul são pontos cardinais de uma geografia sentimental, uma classe burguesa confusa e pedante, uma geração jovem à procura de sua identidade, mas sobretudo a história de pessoas que reivindicam o direito de serem donas de seu destino.” Essa diretriz está subentendida no verbo escolhido para o título do filme: “eu prefiro” – “Palavras um pouco insolentes, que significam claramente gosto disso e não daquilo. Cada um de nós tem, num dado momento da vida, a chance de morrer e recomeçar. Em meu filme, a ocasião justa é o encontro desses dois jovens, tão diferentes cultural e socialmente, mas capazes de se respeitar, de desencadear nos adultos uma crise, ao desmascarar suas hipocrisias e suas fraquezas.”
Outros filmes de Calopresti exibidos em Cannes em 1995 e 1997 são La seconde volta, selecionado entre outros, e La parole amore esiste. Alguém se lembra de tê-los visto aqui no Brasil?

2 comentários:

Marconi Leal disse...

Adelaide, podes conseguir o livro através da Siciliano ou de outra das grandes livrarias. Ou então, comigo, se é que queres rabiscar o teu exemplar com a minha horrível ortografia. Basta me mandar um e-mail para: marconileal@terra.com.br. E, assim, serão quatro e não mais três livros aguardando leitura... Beijão e obrigado.

Marcelo F. Carvalho disse...

Adelaide, vou roubar dois pensamentos teus e colar no meu blog. Achei-os simplesmente maravilhosos. Sou assim, quando vejo algo roubo logo que senão a maré pode levar...hehehe
Abraço forte!