terça-feira, 28 de setembro de 2010

De imagens e palavras

 (Texto reeditado)

Van Gogh. Café noturno.

O modo como as imagens têm sido tratadas em nosso mundo frenético é inadequado e irreverente, porque teima em ignorar a dignidade do que se vê. Não se sabe exatamente a quantas palavras equivale uma imagem. Ela pode ser uma fonte de palavras. Mas pode também suscitar apenas um silêncio contemplativo, uma reflexão muda.
Na linguagem do sonho as palavras se cristalizam em imagens, porque o caminho que elas percorrem é o da contramão da estimulação: em vez de afetar o neurônio e então ser percebida como imagem, a palavra vem do neurônio investido de volta à percepção. O sonho consiste de imagens e às vezes de palavras que são como recortes de uma colagem, fora do contexto regulamentar em que funcionam na linguagem. É frequente que um sonho apresente uma palavra – às vezes até uma frase – hermética, misteriosa, que figura ali como uma representação daquilo que a palavra pode querer dizer, ao invés de um termo no contexto usual da linguagem. A imagem verbal tem muito mais um caráter conotativo que denotativo no ambiente onírico. E o que ela significa pertence à esfera subjetiva de quem sonha. Mistura-se às imagens com um valor equivalente, é parte do enigma do sonho.
Se refletirmos nesse fenômeno, fica mais fácil perceber por que uma imagem nunca é a mesma para todos que a veem. Se isso é verdade, então como tratar as imagens como objetos fabricados em série? Palavra e imagem têm uma longa história de encontros e desencontros. Ambas estão ligadas à percepção visual e à memória. Ambas vêm impregnadas de sentidos e mensagens de variação infinita – que o diga Andy Warhol.
A criação literária é o momento privilegiado da palavra, quando se convocam imagens e estados subjetivos em função de uma criação única e intransferível, em tudo semelhante ao processo onírico. Não significa que o autor tenha a intenção de contar fatos autobiográficos, mas sim que a obra de criação é, como no sonho, autobiográfica, ainda que não seja confessional. O que se manifesta na obra de criação tem suas raízes firmemente cravadas na subjetividade. Há uma forma de sonho na obra de criação.
Palavra e imagem se fundem num texto que irá afetar de modos diferentes seus leitores. As pesquisas sobre o tema demonstram que a recepção individual do texto literário se dá em uma zona de condensação organizada por um inconsciente e sua subjetividade. Os elementos que contam para o indivíduo que lê vão além dos conceitos vigentes da cultura e dos preceitos de sua sociedade – embora esses fatores sejam de grande importância e quase sempre determinem o sucesso ou o fracasso de uma obra em termos objetivos. Uma pesquisa puramente conceitual, no entanto, não dá conta do literário, assim como somente uma pesquisa psicanalítica não o conseguiria.
A explicação disso se deve em parte à disjunção palavra-coisa. É como comer o fruto proibido: a palavra ingênua quer designar a coisa, e uma vez perdida a inocência e percebida a precariedade da identificação entre elas, descobre-se que a coisa não está onde a palavra a designara, que já não há redução possível de uma à outra. Descobrimos que fomos vitimados por uma série de separações, quando acontecimentos como perdas, mortes ou omissões se reduziam a palavras que deixavam escapar seu verdadeiro sentido. O passado não cabe nas palavras com que o evocamos porque não foi e não será como o recordamos ou falamos dele. Também não podem prometer nada para o futuro, porque será sempre fantasia tudo que disserem a esse respeito. As expressões se gastam ao ponto do lugar-comum: terra natal, terra prometida, o céu na terra e seus análogos só nos dão a certeza de que “uma coisa sem nome nos acompanha” que não é “nem nossa origem nem nosso futuro” e que por isso é “nosso horizonte permanente” e também a garantia única de alguma “tensão da palavra no momento”*.
Por sua vez, a imagem pode exibir acontecimentos em outra dimensão, mas a ilusão de seu poder também é um risco. Não vale mais nem menos que a palavra: é diferente. Os limites, os vazios, as imprecisões e a multiplicidade das palavras e da linguagem têm uma espécie de contrapartida na imagem. As palavras reduzem e atenuam o real que a imagem resgata. Mas é bom estar atento a um engano também nesse domínio. A imagem reproduzida e divulgada ao ponto que a vemos na propaganda e na mídia se destina a criar novas ilusões, porque a experiência que ela oferece não é a experiência do real. Enquanto representação do real, a imagem merece respeito. Rebaixada a vendedora de ilusões e propagadora da mentira, é uma fraude lamentável, que faz da ilusão uma razão de viver.
Como em tudo nesta vida, o real tem que ser a medida de todas as coisas.

* Pontalis, J.-B. Perdre de vue. (1988) Paris: Gallimard.

terça-feira, 21 de setembro de 2010

Pé-sujo dos livros

 Tela Iman Maleki.

Leitores inveterados, obsessivos, pesquisadores, sem-grana e curiosos vão aos sebos da cidade onde moram e esquecem do tempo descobrindo exemplares que nem planejavam comprar, mas que uma vez descobertos viram objetos de desejo. Sebos – incluindo as feiras do livro – têm isso de bom: além de gastar muito menos, com sorte a gente encontra aqueles esgotados sem chance de nova edição. Em matéria de clima e rituais, o bom sebo está para a livraria assim como o pé-sujo está para o bar da moda.
As bibliotecas podem quebrar bons galhos sem despesa ou quase. Mas o livro que você traz pra casa não vai dormir em sua estante por mais de quinze dias. E se daí a três, quatro meses ou até alguns anos depois você ou alguém próximo precisar dele? E se te der uma louca vontade de rever aquele personagem, ouvir a música daquele texto? Livro é um objeto um pouco misterioso e tem isso em comum com as pessoas: se você for além da capa e tiver a curiosidade de conhecer o que existe dentro dele, pode ter boas surpresas. Por isso tudo, às vezes deixa saudades.

terça-feira, 14 de setembro de 2010

Eva Luna e seus contos

Isabel Allende. Eva Luna. 7ed. Trad. Luísa Ibañes. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000. 336p.
I. A. Contos de Eva Luna. 3ed. Trad. Rosemary Moraes. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001. 238p.



Gosto desses livros que evocam uma voz interior que aos poucos toma conta da história e se apropria dela como se fosse a nossa. Não falo de vontade de plagiar, falo de identificação, de prazer ou fruição de ler, no sentido que Barthes dá a esses termos.

Isso acontece quando leio Clarice, e tem acontecido mais recentemente com a leitura dos textos de Isabel Allende.

Os Contos de Eva Luna me surpreenderam de um modo muito prazeroso. Reconheci nesses contos a linguagem que eu teria gostado de usar, se escrevesse aquelas histórias – e que histórias! Pareceu-me reconhecer os fantasmas, os personagens e até aqueles lugares, tão diferentes dos meus.

Allende encontra a postura certa para escrever, quando se deixa levar pelas palavras como se flutuasse, como se nada mais importasse na vida senão registrar suas memórias sem sentimentalismos, com suas impressões ricas de imagens e cores e o reconhecimento requintado dos sentimentos humanos. Ao mesmo tempo, há uma atitude meio animal no modo como a escrita flui num ambiente natural, frequentemente hostil, embora – ou por isso mesmo – carregado de encantamento.

Em Eva Luna um tom autobiográfico, eu acredito. Embora vá muito além (não sem razão, ela toma como epígrafe um pequeno trecho das Mil e uma noites). É talvez falso o cenário, de um modo geral, e as pessoas por certo não são exatamente aquelas, com aquelas almas e aqueles nomes. É por isso que deixa no leitor um toque tão pessoal e ao mesmo tempo uma tal abertura, que esse leitor pode ser capaz de reconhecer um semelhante que narra alguma coisa profundamente pessoal e verdadeira. Na fantasia que permeia o texto e nas experiências e sinais que o tornam familiar, está inscrita a natureza humana.



A partir do que é simples e inequivocamente pessoal, não só pelo estilo ou por qualquer traço que denote apenas uma virtude técnica, o cheiro de gente impregna os contos do outro volume. Basta ter vivido. Se cultura é aquilo que resta depois que se esqueceram a letra da teoria e o que dizem os tratados, esse é o terceiro estágio do homem, um momento privilegiado do existir, quando uma leitura pode tocá-lo de modo direto, intuitivo e sem retoques. E pode também mover seu braço em direção à caneta e ao papel - ou ao teclado - tomado pelo gosto de uma literatura visceral. Nem que seja só para tomar notas ou marcar a página onde uma passagem o tocou mais de perto.

Para mim, é a isso que um escritor (diferente de um escrevente, que pretende narrar um fato em sua objetividade ou esboçar uma teoria) deve ambicionar, mais do que à lista dos mais vendidos: ficar na memória, deixar um traço, ser uma evocação prazerosa na vida de algum leitor.

terça-feira, 7 de setembro de 2010

De detalhes e vinhos

O que se quer dizer é sempre o indizível. Por isso a gente nunca para de falar, inscrever, escrever ou pichar, entre outras coisas. Se prestarmos atenção a nossas próprias frases, podemos descobrir coisas muito interessantes quanto aos sentidos que podem ter e que nos escapam se estivermos dispersos. Pode ser revelador, por exemplo, perceber de quantas maneiras uma fala nossa poderia ser interpretada.

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Sou mais feliz quando posso buscar novos ângulos e inventar novos meios de fazer as coisas. Mesmo as tarefas mais chatas têm sempre um jeito menos desagradável de realizar – ouvindo música, aproveitando os gestos para se exercitar ou alongar ou, dependendo das possibilidades, cantando ou dançando, o que é sempre uma delícia.

O mais difícil de tudo é aprender a jogar bem o próprio jogo. As regras são sempre meio obscuras.

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Amar exige tanto da gente que, se a gente não se amar o bastante, não aguenta.



Há pessoas espumantes, leves e doces. Há gente frutada, gente encorpada, madeirada, concentrada. Uns irradiam calor e conforto orgânico. Outros provocam dor de cabeça, acidez e gastralgia. E há pessoas que quanto mais vivem, melhor aprendem a viver. A gente humaniza muito os vinhos.

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Um livro pode ser um ente querido



Ler é um diálogo monologado – o autor fala e o leitor aproveita as deixas.
Pode-se gostar do que se lê ou ler por necessidade de alguma informação, estudar ou se divertir. Mas assim como um filme que nos toca mais fundo, uma música que se torna tão nossa que a partilhamos com o autor e pesquisamos sobre ele para descobrir que afinidade é essa, um livro pode ser uma peça de arte, um objeto útil ou raro, mas também um ente querido responsável por momentos de muito prazer na vida.
Quase sempre as diferenças individuais determinam a maneira como se lê. A não ser que você esteja frequentando uma oficina sobre o assunto ou fazendo um treinamento para apurar e aproveitar melhor o ato da leitura, normalmente segue a trilha aberta pelo próprio temperamento ou pela própria neura.
 Acredito que a maneira mais usual seja ler um livro de cada vez até o final, a não ser que se desista antes disso – ou porque não se desenvolveu ainda o hábito de ler e fica difícil concentrar a atenção, ou porque o livro realmente não despertou interesse suficiente, e o tempo é artigo raro demais para ser desperdiçado.
Mas conheço gente que lê o início, salta alguns parágrafos, passa os olhos em outros, tenta entender tudo nessa dinâmica saltadora e segue aterrissando aqui e ali até abrir as últimas páginas para ver como acaba a história. Se houver muita familiaridade com o ato de ler, às vezes se consegue captar assim o sentido geral do texto. Perde-se alguma coisa do significado, mas pescam-se muitos peixinhos menores. E pode ser um prejuízo sério, no caso de livros mais densos, estilos ricos e textos muito originais ou recheados de dados interessantes de conhecer. Mas um leitor experiente sabe o que está perdendo com esse comportamento errático e provavelmente só usará esse modo pouco convencional de ler em textos mais rasos, narrativas simples que não exijam muito de quem lê.
Não é raro que quem lê por hábito, e muito, leia vários livros de modo simultâneo. E obviamente algum – ou alguns – será(ão) sempre mais apreciado(s) que outro ou outros. O que acontece quase sempre é leitura dinâmica nos casos mais leves e leitura continuada e reflexiva em textos responsa. Costumo fazer isso, sem prejuízo nem culpa. É como se o texto mais denso fosse a matéria principal e o outro, ou outros, a hora do recreio. O que não consigo fazer é ler ao mesmo tempo dois livros importantes ou superinteressantes, já que um texto desses exige minha atenção integral.
 Nem é só atenção. Um livro envolvente, com o qual nos identificamos e nos causa um prazer todo especial, implica também um envolvimento afetivo que é quase uma paixão. Há livros que se leem para conhecer e outros para conhecer e curtir. Mas em qualquer dos casos, sempre vale a pena, ainda que seja para se manter em dia com o que está rolando, ganhar e aprofundar conhecimentos ou, quem sabe, acertar numa escolha premiada.  
 Haja tempo e haja livros. Mas acima de tudo, haja desejo.

terça-feira, 17 de agosto de 2010

Ler é uma delícia, mas L.E.R. é muito chato

Tenho tentado contornar o problema, mas não há jeito. As DORT – Doenças Osteomusculares Relacionadas ao Trabalho, L.E.R. para os íntimos, são persistentes e muito incômodas, obrigam a gente a parar durante um bom tempo, até que os sintomas desapareçam e nos deixem em paz e em forma de novo.

O que pega é que o computador passou a ser pau para toda obra. Criar textos, construir ou consultar planilhas, ler, visitar sites, pesquisar, enfim, qualquer atividade depende dele. E como o trabalho “sério” – leia-se remunerado – é sempre preferência nesses casos, não há outro jeito senão reduzir as atividades diante a telinha, dar folga aos dedos e descansar os olhos também.

Apesar das férias recentes, não me afastei do teclado. Havia outras atividades para pôr em dia, e embora suprimindo boa parte das postagens e comentários, o L.E.R. continuou galopante. Pediu tempo, e disse secamente punto e basta, com cara de Totó, o italiano da novela.

Espero que não demore muito. Vou sentir falta dessas conversas virtuais, das trocas, do carinho desses amigos e de seus textos, poemas e comentários que me dão tanta alegria.
Agradeço por eles, de todo coração.

Beijo para todos. E até qualquer dia.

Dade




segunda-feira, 9 de agosto de 2010

O que é um vencedor?

Imagem sem menção de autor.



Acho bem difícil falar desse assunto, que faz cócegas em um dos paradigmas de nosso tempo. Afinal, como explicar a razão da vida sem que a satisfação do ego predomine? Já não estamos na era mística em que se pregava a renúncia às glórias mundanas. Ao contrário, hoje tais glórias norteiam as ações de tanta gente que fica difícil argumentar contra. Para muitos, é líquido e certo que educar bem um filho consiste em orientá-lo no rumo da vitória, seja nos estudos, no amor ou na carreira – entendendo-se por vitória o sucesso financeiro e social. Aumenta a cada dia o número dos que acreditam que a felicidade se alcança passando por cima dos que não souberam se impor e não dedicaram seu tempo e energias exclusivamente a competir.

Nada contra vencer em qualquer domínio de atividade. Ao contrário, quando alguém vence e se destaca, em sua carreira, nos estudos ou no amor, experimenta uma das grandes alegrias que a vida oferece. Um filho vencedor recompensa muitos esforços dos pais, assim como um marido ou uma mulher que se destaca é motivo de orgulho para quem ama de verdade e para seus amigos sinceros. Mas viver é bem mais que isso.

Enquanto a vida avança e a idade aumenta, esbarramos em inúmeras razões de alegria e até de felicidade genuína que não estão ligadas ao fato de ser ou não um vencedor, nesse sentido estrito adotado pela civilização ocidental, em especial no Novo Mundo (que, convenhamos, parece precocemente envelhecido e meio esclerosado). Se até os vinte e poucos anos todos experimentamos a deliciosa sensação de onipotência que a juventude garante, mesmo que não corresponda à verdade objetiva, depois dos trinta quase sempre começamos a ver a vida com olhos menos delirantes. Se não estivermos obcecados por esse ideal ególatra e afetivamente esterilizante de vencer a qualquer preço e destruir todo mundo que possa atrapalhar essa meta, seremos capazes de avaliar a vida com olhos menos ansiosos.

Então começa um ciclo que pode ser o mais produtivo e o melhor de todos, quando aprendemos a amar nossas realizações e tarefas, enfim, o trabalho que sai de nossas mãos, assim como certas pessoas que nos rodeiam. Se a maturidade nos encontrar sadios e ativos, é quase certo que teremos ao menos identificado e começado a procurar os caminhos que nos conduzirão à realização pessoal, a mais importante de todas, ou aos relacionamentos melhores para nós. Isso quer dizer o encontro da vocação de cada um e sua realização afetiva. Descobrir o que gostamos mais de fazer, ainda que as contingências do dia-a-dia não nos permitam uma entrega completa a essa atividade, é tão ou mais gratificante que subir num pódio. Assim como amar alguém e poder partilhar a vida com ele/a; tomar as próprias decisões com liberdade; aprender a admirar as pessoas que nos parecem dignas disso; abrir mão de alguma coisa por vontade própria por alguém são satisfações tão ou mais importantes que uma vitória forçada, às vezes constrangedora. E ainda que nosso trabalho no dia-a-dia não traga a glória, que seja bem realizado e alimente uma autoestima saudável.

Há muitos tipos de vitória. Mesmo que não desfraldem bandeiras para o mundo, as vitórias íntimas, partilhadas por quem de direito, garantem paz de espírito, alegria de viver e até felicidade. O melhor conceito de vencedor não é tão estrito como se quer fazer acreditar. E talvez tenha muito mais a ver com alegria do que com dinheiro.