segunda-feira, 16 de setembro de 2013

Sobre um conto de Cortázar




 Um tigre chamado palavra

A palavra e o sonho são atalhos de acesso ao inconsciente. Cada um a seu modo, guardam um vínculo com a imagem. Na linguagem do sonho as palavras se cristalizam em imagens, porque o caminho que elas percorrem é o da contramão da estimulação: do neurônio investido de volta à percepção. O sonho, a via régia para o inconsciente de que falava Freud, consiste de um conteúdo manifesto de imagens e às vezes palavras que são como recortes de uma colagem, fora do contexto regulamentar em que funcionam na linguagem.
Em “Escritores criativos e devaneios”, de 1908, Freud observa como
O escritor criativo faz o mesmo que a criança que brinca. Cria um mundo de fantasia que ele leva muito a sério, isto é, no qual investe uma grande quantidade de emoção, enquanto mantém uma separação nítida entre o mesmo e a realidade. A linguagem preservou essa relação entre o brincar infantil e a criação poética.
Júlio Cortázar pode ser considerado um exemplo de generosidade no que diz respeito à liberdade que se concede em seu texto. O clima onírico em que muitas de suas narrativas se desenvolvem está especialmente presente em alguns contos, em que o texto é condensado em palavras-imagens sem prejuízo da literariedade.
No conto “Bestiário”, a narrativa começa num clima que seria familiar e confortável. A menina Isabel, de nove anos, é convidada para as férias em casa dos Funes, no campo. A mãe e Inês, supostamente sua babá, relutam em consentir que ela vá, embora isso já tenha acontecido antes. O comentário “nem é por causa do tigre” acende um alerta: não é usual que uma casa de campo abrigue um tigre. Alguma coisa está portanto fora de ordem.
A expectativa de Isabel quanto às férias, o primo Nino e a viagem, toda descrita em imagens que parecem flutuar no texto, independentes umas das outras, são como tomadas de um filme. É pelo olhar da menina que Cortázar abre caminho para justificar e instaurar o não sentido.
O conto transforma um período de férias no campo em uma aventura que envolve figuras pulsionais: Isabel, fascinada por sua tia Rema, de mãos erogênicas; o marido de Rema, Luís, alienado nos livros e nas divagações intelectuais; um inimigo-recalcado, figura do desprazer – o cunhado Nenê, opressor e lascivo.
O ambiente se define através da percepção de Isabel, que com seu primo Nino se ocupa dos brinquedos que a casa triste dos adultos lhe oferece e tira disso todo o partido possível para sua idade. Sua alegria vem de tia Rema e suas intuições se consolidam “na hora da penumbra”, estado entre a vigília e o sono, mal-dormido por causa do calor e dos mosquitos. Com seu repertório infantil, a criança desconhece a linguagem da paixão, mas intui o alcance dos gestos que percebe.
O tom da história é catalisado pelo tigre invisível, alegoria da morte, que se esconde cada dia em um cômodo da enorme casa de campo. O tigre vai ser citado em diversas passagens, de modo que ninguém – autor, moradores da casa ou leitores – se esqueça de sua existência. Enquanto o capataz não avisa onde está o tigre naquele dia, ninguém sai de seus aposentos ou circula pela casa. Depois do aviso do capataz, um aposento ou área do jardim fica interditado por sua presença.
Há um enigma, figura muito cara a Cortázar: a explicação fica em aberto, o que exclui o conto do rol das histórias de mistério. Nem o autor menciona qualquer fato capaz de desvendar essa presença, nem o leitor estaria autorizado a criar uma hipótese de explicação para ela, pois lhe faltam dados, mesmo apenas entrevistos. 
A presença do tigre, diariamente lembrada e localizada, parece ser aceita pelas crianças – e adultos – sem que aparentemente perturbe a ordem da casa. A casa é grande o suficiente para acomodar o tigre, os moradores e seus interesses. Mas essa é a explicação formal de sua presença, a satisfação dada ao senso comum, porque, ao mesmo tempo, ele representa a possibilidade do pior e é uma ameaça latente à tranqüilidade da casa.
A história é um drama com doses de violência, sexo e ciúme que permanecem protegidos pelo silêncio do olhar infantil, assim como o tigre permanece oculto. O tigre é um significante perfeito, porque seu significado é ambíguo o bastante para dar o tom da história e arcar com todo o peso do que poderia torná-la uma narrativa “imprópria para menores”. Ao mesmo tempo, como o clímax aponta, ele fala também de uma pulsão destrutiva capaz de ser mobilizada até mesmo por um impulso amoroso.
A tristeza da tia, assediada e oprimida pelo cunhado, mobiliza a menina e a desperta para a possibilidade de uma solução que envolve o tigre, do qual a família todos os dias tem que se proteger. Por um ardil, ela trunca a informação diária sobre o lugar onde está a fera e consegue que o vilão da história entre na biblioteca e seja devorado. Isabel não perde a inocência, pois não usou diretamente qualquer meio violento – ao contrário, seu impulso é muito mais lúdico do que sério –, além de conseguir a muda gratidão de tia Rema. Sem culpa, a menina põe o que seria um princípio de realidade a serviço da satisfação de todos, principalmente dela mesma. Longe de espelhar uma visão maniqueísta de justiça, a solução encontrada por Isabel apenas deixa que aconteça o inevitável: ela não quer castigar o homem mau, mas acabar com o sofrimento da tia que ama. De quebra, confirma-se o que dizia Freud sobre a ludicidade como antítese do real, já que, por um recurso ficcional, o tigre é apenas uma metáfora no texto.
O “final feliz” criado por Cortázar tem no entanto implicações que exigiriam uma pesquisa mais complexa. Ele levanta por exemplo a questão do poder opressor, da tirania, do primado da força. Fala de uma ética violada e remete a um conceito de justiça utópico, onde os adultos estão limitados pelas convenções estabelecidas. Essas convenções, que criam um mal-estar, abrem brechas ao exercício do arbítrio. O princípio do prazer representado pela menina ignora o impasse e faz uma ligação direta do desejo à ação.



Goldschmidt, G.-A. (1988) Quand Freud voit la mer. Freud et la langue allemande. Paris, Buchet/Chastel (p.16-7).

Um comentário:

Enylton disse...

Cortázar, um de meus autores favoritos, cai muito bem aqui, Dade.

Beijos e parabéns nossos.