Um tigre chamado palavra
A palavra e o sonho são atalhos de acesso ao
inconsciente. Cada um a seu modo, guardam um vínculo com a imagem. Na linguagem
do sonho as palavras se cristalizam em imagens, porque o caminho que elas
percorrem é o da contramão da estimulação: do neurônio investido de volta à
percepção. O sonho, a via régia para o inconsciente de que falava Freud,
consiste de um conteúdo manifesto de imagens e às vezes palavras que são como
recortes de uma colagem, fora do contexto regulamentar em que funcionam na
linguagem.
Em “Escritores criativos e devaneios”, de 1908,
Freud observa como
O escritor criativo faz o mesmo que a criança que brinca. Cria um mundo
de fantasia que ele leva muito a sério, isto é, no qual investe uma grande
quantidade de emoção, enquanto mantém uma separação nítida entre o mesmo e a
realidade. A linguagem preservou essa relação entre o brincar infantil e a
criação poética.
Júlio Cortázar pode ser considerado um exemplo de
generosidade no que diz respeito à liberdade que se concede em seu texto. O
clima onírico em que muitas de suas narrativas se desenvolvem está
especialmente presente em alguns contos, em que o texto é condensado em
palavras-imagens sem prejuízo da literariedade.
No conto “Bestiário”, a narrativa começa num clima
que seria familiar e confortável. A menina Isabel, de nove anos, é convidada
para as férias em casa dos Funes, no campo. A mãe e Inês, supostamente sua
babá, relutam em consentir que ela vá, embora isso já tenha acontecido antes. O
comentário “nem é por causa do tigre” acende um alerta: não é usual que uma
casa de campo abrigue um tigre. Alguma coisa está portanto fora de ordem.
A expectativa de Isabel quanto às férias, o primo
Nino e a viagem, toda descrita em imagens que parecem flutuar no texto,
independentes umas das outras, são como tomadas de um filme. É pelo olhar da
menina que Cortázar abre caminho para justificar e instaurar o não sentido.
O conto transforma um período de férias no campo em
uma aventura que envolve figuras pulsionais: Isabel, fascinada por sua tia
Rema, de mãos erogênicas; o marido de Rema, Luís, alienado nos livros e nas
divagações intelectuais; um inimigo-recalcado, figura do desprazer – o cunhado Nenê,
opressor e lascivo.
O ambiente se define através da percepção de
Isabel, que com seu primo Nino se ocupa dos brinquedos que a casa triste dos
adultos lhe oferece e tira disso todo o partido possível para sua idade. Sua
alegria vem de tia Rema e suas intuições se consolidam “na hora da penumbra”,
estado entre a vigília e o sono, mal-dormido por causa do calor e dos
mosquitos. Com seu repertório infantil, a criança desconhece a linguagem da
paixão, mas intui o alcance dos gestos que percebe.
O tom da história é catalisado pelo tigre
invisível, alegoria da morte, que se esconde cada dia em um cômodo da enorme
casa de campo. O tigre vai ser citado em diversas passagens, de modo que
ninguém – autor, moradores da casa ou leitores – se esqueça de sua existência.
Enquanto o capataz não avisa onde está o tigre naquele dia, ninguém sai de seus
aposentos ou circula pela casa. Depois do aviso do capataz, um aposento ou área
do jardim fica interditado por sua presença.
Há um enigma, figura muito cara a Cortázar: a
explicação fica em aberto, o que exclui o conto do rol das histórias de
mistério. Nem o autor menciona qualquer fato capaz de desvendar essa presença,
nem o leitor estaria autorizado a criar uma hipótese de explicação para ela,
pois lhe faltam dados, mesmo apenas entrevistos.
A presença do tigre, diariamente lembrada e
localizada, parece ser aceita pelas crianças – e adultos – sem que aparentemente
perturbe a ordem da casa. A casa é grande o suficiente para acomodar o tigre,
os moradores e seus interesses. Mas essa é a explicação formal de sua presença,
a satisfação dada ao senso comum, porque, ao mesmo tempo, ele representa a
possibilidade do pior e é uma ameaça latente à tranqüilidade da casa.
A história é um drama com doses de violência, sexo
e ciúme que permanecem protegidos pelo silêncio do olhar infantil, assim como o
tigre permanece oculto. O tigre é um significante perfeito, porque seu
significado é ambíguo o bastante para dar o tom da história e arcar com todo o
peso do que poderia torná-la uma narrativa “imprópria para menores”. Ao mesmo
tempo, como o clímax aponta, ele fala também de uma pulsão destrutiva capaz de
ser mobilizada até mesmo por um impulso amoroso.
A tristeza da tia, assediada e oprimida pelo
cunhado, mobiliza a menina e a desperta para a possibilidade de uma solução que
envolve o tigre, do qual a família todos os dias tem que se proteger. Por um
ardil, ela trunca a informação diária sobre o lugar onde está a fera e consegue
que o vilão da história entre na biblioteca e seja devorado. Isabel não perde a
inocência, pois não usou diretamente qualquer meio violento – ao contrário, seu
impulso é muito mais lúdico do que sério –, além de conseguir a muda gratidão
de tia Rema. Sem culpa, a menina põe o que seria um princípio de realidade a
serviço da satisfação de todos, principalmente dela mesma. Longe de espelhar
uma visão maniqueísta de justiça, a solução encontrada por Isabel apenas deixa
que aconteça o inevitável: ela não quer castigar o homem mau, mas acabar com o
sofrimento da tia que ama. De quebra, confirma-se o que dizia Freud sobre a
ludicidade como antítese do real, já que, por um recurso ficcional, o tigre é
apenas uma metáfora no texto.
O “final feliz” criado por Cortázar tem no entanto implicações
que exigiriam uma pesquisa mais complexa. Ele levanta por exemplo a questão do
poder opressor, da tirania, do primado da força. Fala de uma ética violada e remete
a um conceito de justiça utópico, onde os adultos estão limitados pelas
convenções estabelecidas. Essas convenções, que criam um mal-estar, abrem
brechas ao exercício do arbítrio. O princípio do prazer representado pela
menina ignora o impasse e faz uma ligação direta do desejo à ação.
Goldschmidt, G.-A. (1988) Quand Freud voit la mer. Freud et la langue
allemande. Paris, Buchet/Chastel (p.16-7).
Um comentário:
Cortázar, um de meus autores favoritos, cai muito bem aqui, Dade.
Beijos e parabéns nossos.
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