Javier Marías. Seu Rosto Amanhã. Trad. de Eduardo Brandão. São
Paulo: Companhia das Letras, 2008.
Sob o rótulo da espionagem, o discurso
sinuoso do espanhol de Madri Javier Marías nos leva à observação do ser humano
com suas muitas caras. Já intitulado como “o mais inclassificável autor
espanhol contemporâneo”, reponsável por mais de 30 obras, Marías parece ter-se
superado com a tríade em foco, que compreende Febre e lança, de 408 páginas, Dança
e sonho, de 360, e Veneno, sombra e adeus, com 616. Uma
trilogia fascinante.
Narrar, não contar o que se sabe,
dissimular; observar, saber mais que o que se pode perceber, tornar mais agudos
os olhos da mente, perscrutar à exaustão a necessidade de ir sempre além das
aparências.. Acima de tudo, saber decifrar e usar a linguagem, tema explorado
por Alberto Manguel em Uma história da
leitura, pontuado ainda na questão do tradutor, profissão do protagonista.
O texto brilhante e agudo desses três romances relativiza verdades, explora o
paradoxo e utiliza elementos presentes às narrativas de nosso tempo com
mestria.
O narrador, chamado por vários nomes,
embora de base etimológica comum – Jacques, Jacobo ou Jaime Deza, Yago ou Jack,
para resumir – dificilmente poderia ser separado o próprio autor, já que
existem dados biográficos comuns aos dois. Longe de sugerir uma fragmentação do
personagem, essa pluralidade de denominações nos fala mais dos disfarces
necessários a um espião e das dubiedades com que o protagonista se vê
confrontado. É possível ainda ver nessas diferenças a preocupação, bem típica
de Marías, de explorar variações semânticas da linguagem. Seja como for, o tom
de conversa adotado na narrativa, a ironia e certo neo-barroquismo, que se nota
na presença da polissemia bem utilizada, parecem também ligados à complexidade
da própria vida e do comportamento das pessoas.
O enredo não seria complicado sem as
variações inesperadas que o tornam divertido, incomum ou violento. Separado da
mulher, Deza vai de Madri a Londres para atuar cno magistério e trabalhar na
BBC. O professor Peter Wheeler, seu amigo, especializado em história recente da
Espanha, chama-o a participar de um grupo de espionagem que nem a inteligência
britânica conhece ainda. Mais secreto, impossível. O que caracteriza esses
agentes é a capacidade de conhecer as pessoas e entendê-las por seus gestos e
atos falhos, e até pelas expressões. Uma forma de tradução muito útil a quem
precisa saber até que ponto se pode confiar em alguém. Ao mesmo tempo,
uma habilidade invejável, já que qualquer um de nós gostaria de saber mais do
próximo do que suas palavras e atitudes deixam transparecer. Seu rosto amanhã, título da trilogia, se
refere a essa capacidade de saber até que ponto alguém seria capaz de mudanças
ameaçadoras.
De história de espionagem, Javier Marías transforma
sua proposta em reflexão profunda sobre o ser humano, sua capacidade de
fabulação, volubilidade e recursos de observação, dos quais parecemos saber
muito pouco. Indo mais longe, pode-se atribuir a esse romance ainda uma
impressionante exploração dos recursos da linguagem, mas não só: há também a
questão da intertextualidade, ligando suas referências à Guerra Civil Espanhola
e à Segunda Grande Guerra Mundial e a autores como Orwell, Fleming e a seu
personagem James Bond. Do romance, diz ainda Vinicius Jatobá: “o mais
interessante em Marías, além de sua visão sobre o tempo e memória, é a lentidão
de seu olhar: demora páginas sobre objetos, sobre pessoas, reflete, inventa
relatos para logo desmenti-los e os substituir por outros; cita obras alheias –
Orwell, Benet, de seu pai, o filosofo Julian Marías –
dialoga com Shakespeare,
com Proust, com Borges; retoma, recorrentemente, temas e motivos anteriores,
relendo e refletindo eles em contextos diferentes.”
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