segunda-feira, 31 de maio de 2010

Do português e outras providências



A língua portuguesa, a do Brasil em particular, vai sendo carcomida com rapidez e eficiência. No ritmo que vai, breve estará etimologicamente irreconhecível, gramaticalmente liquidada e sintaticamente mais deformada do que madame depois da décima plástica.
Não falo de expressões e regionalismos, que são parte da bagagem de qualquer idioma. Também não me refiro à gíria, às conotações que vão colando nas palavras naturalmente e só enriquecem a língua falada e até a escrita, dependendo do rumo escolhido. Estou pensando é na leviandade com que se escreve em alguns casos. Ninguém é obrigado a saber tudo. Mas dicionários e gramáticas existem para tirar as dúvidas que surgem na hora de redigir. E para o caso de projetos literários, existem técnicas, assim como para tocar piano e fazer massagem.
Somos todos ignorantes em muitas coisas. Passada a Antiguidade, mesmo os mais sábios entre os homens seriam incapazes de dominar todos os campos do conhecimento. Depois de séculos de avanço e efetivas conquistas, nossa ciência não deve saber ainda meio infinitésimo da realidade. Isso explica por que o conhecimento se tornou tão fragmentário, dividido em especialidades cada vez mais restritas, e por que são necessários conselhos regulamentares ou instituições que disciplinem cada setor. Excetuando-se os espertinhos de plantão, todo profissional que se preza sabe disso e respeita as normas de sua atividade.
Uma coisa no entanto me intriga: por que profissionais competentes em outras áreas acham que para escrever um texto não é preciso mais que juntar letras? Escrever um bilhete de qualquer jeito é compreensível e até perdoável, se você estiver com muita pressa. Uma carta, um parecer ou um artigo exigem um mínimo de decoro, assim como, com mais razão, fazer literatura.
Ouvi o contista Luís Vilela falar sobre isso, revelando que alguns jurados de concursos literários eliminam certos textos "pelo cheiro". Diante de um conto ou poema que comece mais ou menos como "o astro-rei subia no azul do céu", só resta um rápido exame para verificar se o texto em questão é uma paródia, gênero válido e digno de atenção. Não sendo assim, pode ser empilhado sumariamente com 80% das obras recebidas, todas escritas no mesmo tom menor. Falta atualização, conhecimento do métier, e muitas vezes o mais comezinho conhecimento da língua. Inspiração é um conceito meio mágico e, a não ser que se esteja falando do processo respiratório, em geral má conselheira. Tem que ser servida com molho de autocrítica, lastro de leitura e disposição para a pesquisa. Sem o que a gente pode se perder nos labirintos do verbo e ir parar no limbo cinzento e viscoso onde o astro-rei sobe no azul do céu e os autores sobem no telhado.

14 comentários:

Ana B. disse...

fico até envergonhada
:$

Adriana Riess Karnal disse...

Dade,
ótimo texto-crítica...é verdade, ver quem escreve bem tem sido cada vez mais difícil de encontrar. quanto às mudanças da língua, é abslutamente natural das línguas se transformarem, vê que o latim se transformou no latim vulgar até se desmembrar em tantas línguas, chegando ao Portugûês de hoje.

Úrsula Avner disse...

Oi Dade,

Seu texto expressa em palavras bem articuladas, uma crítica pertinente ao uso da língua portuguesa e às falhas na produção escrita de tantas pessoas cujo instrumento de trabalho são as palavras. Gostei de lhe visitar e agradeço seu carinho lá no Maria Clara... Grande abraço,

Úrsula

Celso Ramos disse...

Olá Dade!!!!

Demorei a perceber a importância da escrita....nunca fui de escrever e quando comecei, incentivado por minha esposa, não quis parar mais. No entanto percebo, hoje, que para escrever minimamente é preciso como você disse atenção, leitura e pesquisa.
A medida em que aumentamos nossa carga de leitura a escrita se enriquece. A realidade nos mostra uma triste verdade ; não há muito interesse em ler. Realmente, uma atividade que exige atenção, silêncio (nossa sociedade abomina cada vez mais este estado) e sobretudo disposição. Minha esposa e eu convivemos diariamente com alunos que não sabem escrever o básico....e perplexos nos perguntamos; como esses meninos, na vida adulta, vão se expressar? Seus mundos permanecerão limitados a região ou ao lugarejo onde moram. Se aqueles que tem como ferramenta a escrita, não cuidam dela imaginem os que deveriam aprender o básico e não aprendem o mínimo de como se expressar por meio da escrita.

ciranoz disse...

É bem verdade o que diz sobre a má utilização da língua, principalmente entre comunicadores que teriam obrigação de muito mais.
Gostei muito do post sobre os arteiros

Gerana Damulakis disse...

Já avaliei textos para concursos e também acho que é muito fácil, é "pelo cheiro".

dade: já recomecei, com mais atenção ainda.

alfacinha disse...

ainda não liu o meu português , horrível

Unknown disse...

Eu estou divulgando o meu blog, visita ?
http://blog-ingridsr.blogspot.com/
Você vai gostar '
Beijos'

Barbara disse...

Aprendi com a au..digo, postagem.
Como sempre né?
1 abraço.

Mari Amorim disse...

vento apressado
por que não senta aqui
do meu lado
que sua semana seja iluminada,
boas energias sempre!
Mari

Fred Matos disse...

Onde é que eu assino?
Beijos.

Pedro Du Bois disse...

Caríssima Dade, perfeitas abordagens em texto diretos e objetivos. Parabéns. Abraços, Pedro.

ps: grato pelo seu retorno.

Anônimo disse...

Dade, ainda bem que nunca sei quando você e Gerana me visitam, ou ficaria corado de vergonha...rs
A autocrítica está em falta. E não é só na literatura.
Quanto a "o astro-rei subia no azul do céu", ajudaria apor um "por entre nuvens de algodão"? rs

Anônimo disse...

Dade,

Excelente falares sobre isto.
Como pode se pensar que o conhecimento da língua é estudo específico, quando ela é a ponte para qualquer conhecimento na área que for?!
Como se pode "ser" e se dizer sem saber seu idioma?!
Lembro, com lamento, de quando ouvia alguns professores dizerem a alunos que os corrigiam, que não eram professores de português! Ou então, responsabilizar os mesmos professores de português quando os alunos escreviam "barbaridades" em suas provas.
Enfim, como disseste tão bem, a natural mudança evolutiva de uma língua é algo natural. Incorporar expressões, moldar certas regras obsoletas de gramática para que esta se aproxime mais da realidade é mais que justo. Variantes linguísticas também sempre vão existir, graças a Deus! Mas, meu Deus!!! Fazer o que fazem com a pobrezinha, decepando-lhe cada vez mais partes, torturando-a até sei lá que ponto final, é de doer a alma.
E depois, temos os supostos escritores que sempre querem ter o que dizer, mas que não alimentam o hábito de ler, que dá tão bom hálito...
É essa forma de analfabetismo por opção - a falta de leitura - do mais tristes que há.
Será que nossa língua vai ter que ser tombada patrimõnio cultural de ninguém?!

Beijos.