quarta-feira, 7 de abril de 2010

A alma encantadora de João



João do Rio. A alma encantadora das ruas. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. 253p.


A alma encantadora das ruas reúne crônicas de João do Rio, pseudônimo do acadêmico Paulo Barreto, falecido dentro de um táxi em 23 de junho de 1921. Textos típicos do flâneur que ele foi, originalmente publicados de 1904 a 1907 na imprensa carioca, estão organizados nesse volume por Raúl Antelo, autor da boa introdução, mostrando desde uma breve biografia do cronista até o alcance sua obra, que contribuiu de modo decisivo para “abrir janelas na modernidade brasileira”.
 A leveza com que trata essa “alma das ruas”, torna a leitura agradável sem a facilidade do superficial. A visão da rua nessas crônicas tece uma espécie de ícone de uma sociedade e de um tempo que se estende além de algumas gerações. Se a ideia de pátria e mesmo a de cidade são grandiosas demais para o homem individual, a rua é o espaço na sua medida exata. Estão ali o chão que ele pisa no dia-a-dia, os tipos com que interage durante a existência, os instrumentos ou o lugar de seu trabalho. É nas ruas de um bairro que primeiro aprendemos a ser alguém, pertencer a um grupo, evitar riscos e personagens indesejáveis. Há ainda muitas outras coisas que se aprendem nas ruas por onde se passa, passeia ou onde nos divertimos.

João do Rio fala do Rio de Janeiro, sua cidade, de seus habitantes, trabalhadores e cidadãos de classes variadas. Mas é no pequeno trabalhador, nos tipos ditos de rua que demora seu olhar perspicaz e divertido, como em “Pequenas profissões”. Em “Os tatuadores”, vemos que a mania de tatuagem, que parece coisa tão atual, é bem mais antiga do que imaginamos. Assim como a religiosidade popular, antes da febre de igrejas que ora nos aflige, e as leituras que o homem da rua prefere. Os pintores de rua, hoje representados também por pixadores e grafiteiros, são motivo de comparações divertidas e sarcásticas. O autor faz um paralelo entre os egos inflados, que reclamam por se considerar grandes artistas injustiçados, e os pintores anônimos, que podem ser apreciados “levemente e sem custo”, alguns dos quais, que ele chama os “heróis da tabuleta”, fazem uma arte de utilidade prática. Esses artistas anônimos têm em comum “os germes de todos os gêneros, todas as escolas e, por fim, muito menos vaidade que na arte privilegiada”.
Está no texto ainda a mania de janela do carioca, tema que Barreto pretendera desenvolver num livro que ele mesmo classificou de “notável”. Ali também se encontram a origem, as influências e a ironia contida em tantos nomes que batizaram as ruas do Rio. Muito mais que “um alinhado de fachadas, por onde se anda nas povoações”, como a definem as enciclopédias, a rua é para ele “um fator de vida das cidades”, e acrescenta: “a rua tem alma!”
 O texto é temperado de erudição e iluminado pela visão de mundo do autor, homem viajado e culto, que no entanto redescobre nas atividades mais primitivas e populares os mesmos princípios que levaram o homem universal à realização de grandes obras. A rua é para ele “o motivo emocional da arte urbana mais forte e mais intenso. A rua tem ainda um valor de sangue e de sofrimento: criou um símbolo universal.” O texto se expande no sentido da universalidade e do significado da rua em outras terras e outras cidades, suas características, sua perecibilidade, a rua como suporte da História. Mas acima de tudo, é a redescoberta, a seu tempo, da poesia genuína que nunca deixou de florescer nas ruas da cidade.


9 comentários:

Milena Magalhães disse...

Puxa, adoro este livro. E vc, como sempre, escrevendo de um modo tão bom! Embora tenha comentado pouco (tempo, tempo, tempo), saiba que estou sempre por aqui te lendo.

Um beijão.

jurisdrops disse...

Depois da resenha perfeita, o título está anotado para posterior leitura. Pelo que você delineou, deu para sentir a "vida das ruas".
Bjos

Graça Pires disse...

Fiquei curiosa com o livro. Obrigada pelo conselho.
Um beijo.

Janaina Amado disse...

Lindo título, esta da tua postagem, Dade. Adoro a escrita de João do Rio, é dos melhores, mais ferinos e mais perspicazes cronistas que conheço.

Gerana Damulakis disse...

Ótima resenha, faz o leitor sair correndo para buscar João do Rio e encontrar sua alma encantadora.

Anônimo disse...

Eu tenho esse livro (faz parte daquele selo "de bolso" da Cia. das Letras, não é isso?). Gosto dele.

Mas parece que Paulo Barreto não agradava a todos. Lima Barreto, um dos meus autores preferidos, detestava João do Rio.

Fazer o quê?

Um abraço.

Érico Cordeiro disse...

Dade,
A Gerana tem toda razão. Teu texto, rico, belo e informativo, faz com que a gente queira sair correndo atrás do livro (felizmente, nestes tempos de internet, a gente só precisa de alguns cliques do mouse).
Um cronista de verve afiada e um observador muito atento sobre as gentes e as coisas do Rio de Janeiro dos anos 20. Influenciou muita gente, de Rubem Braga a Carlinhos de Oliveira, mas acho que quem mais se aproximou dele, pelo humor ferino e pela virulência do texto foi Nélson Rodrigues.
Obrigado pela dica e pela ótima lembrança!

L. Rafael Nolli disse...

Muito interessante a resenha. Estou inteiramente de acordo contigo. Gostei de sua observação a respeito da poesia na cidade, da forma especial de captá-la, de apresentá-la aos leitores. Abraços.

Anônimo disse...

Lembro João do Rio das aulas de Marília Rothier e das boas crônicas que lemos dele. Uma ótima resenha, que deixaria a mestra envaidecida.

Beijos do Enylton.