segunda-feira, 30 de junho de 2008

Aritmítica (com o perdão pelo trocadilho infame)


Jayme Ovalle com Otto Lara Resende e Vinicius de Moraes, muitas décadas atrás.

Ao contrário dos mitos clássicos ou tradicionais, cujas histórias passam de geração a geração um significado simbólico, certos mitos fabricados pela mídia resultam num processo de descaracterização acelerada de final quase sempre melancólico. Parece que, nesses casos, o candidato a mito deve topar tudo por quase nada – entendendo-se por “tudo” desde um banho de loja até a mudança de parceiro ou da própria imagem. Quinze ou dez minutos de fama já são tudo de bom. Demorou. Se tiver retrato no jornal e/ou aparição na tv, mesmo meteórica, foi bom demais.
A importância intrínseca do candidato pode ser nula. Por exemplo, o cara não é herói nem muito menos expert de coisa nenhuma; não tem a menor idéia de seu papel no mundo, porque só quer a fama, ainda que sem referencial que a justifique. É um ego com fermento, quase sempre oco; respeita bem pouco a si e aos outros, e faz qualquer negócio que chame a atenção do (nem sempre) respeitável público.

A esse tipo corresponde a definição do Houaiss:
6 Derivação: sentido figurado.
construção mental de algo idealizado, sem comprovação prática; idéia, estereótipo

Estariam nesse caso as figuras idealizadas daquele que se imagina capaz de incendiar corações por sua mera aparição e a “celebridade-tipo-Caras”, ideal dos obcecados pela fama.

O degrau superior aos que se satisfazem encarnando um estereótipo é o dos que aparecem por algum dinheiro ou chance de trabalho, tipo BBB ou programa de calouros, juntando assim o útil ao agradável. Ou nem tão agradável assim. Mesmo que a fama conseguida seja de burro, grosso ou péssimo caráter, nada disso importa, se daí advier alguma vantagem ou lucro. Nesse caso não se desce à condição lamentável de coisificação do nada. Se der azar, o lucro pode ser bem pequeno, mas é lucro, alguma coisa pra somar. Se não dignifica, ao menos gratifica.

De degrau em degrau, conhecemos os que conquistam uma condição equiparável à de mitos. São mitos de qualidade, e mesmo que alguém não se agrade de sua voz, do modo como representam ou das obras que realizam, tiveram trabalho, lutaram e sofreram para construir uma carreira; enfrentaram muito mais que os picaretas da mídia e a opinião de um público desqualificado. Nesses casos a fama não foi o objetivo, mas uma decorrência, nem foi uma gratificação precária que os mobilizou.
Não importa o que tiveram que enfrentar, se tiveram ou não quem os ajudasse a abrir caminho. Quase sempre conseguiram algum apoio, mas deram tudo de si para mostrar seu trabalho e um talento em que acreditaram e nos quais investiram. São muitas as histórias de gente que se impôs à admiração de quem sabe apreciá-los e respeitar seu valor. Existe até gente de grande qualidade pessoal e profissional que não chegou lá, não teve oportunidade ou nem procurou reconhecimento à altura.

Exemplo desse último caso foi Jayme Ovalle, cuja biografia escrita por Humberto Werneck vai ser lançada na Flip deste ano, num livro que se chama Jayme Ovalle – o santo sujo. Amigo da fina flor dos artistas, poetas e cronistas de seu tempo, Ovalle não deixou registradas senão amostras de seu trabalho. Na crônica “A porta do céu”, de 1955, Drummond se referiu a sua presença como “uma iluminação mística ou humorística”. Bandeira fala de sua “intuição prodigiosa”, Vinícius considerava sua linguagem poética e sua presença maravilhosas e Sabino disse dele que era “um dos maiores espetáculos de inteligência e intuição, através de sua capacidade de viver e pensar poeticamente”.* São dele as letras de Azulão e Modinha, que você não deve conhecer se tiver menos de 40, mas valem a pena.

Seria tão bom que os candidatos a mito-a-qualquer-preço percebessem a diferença entre somar ninharias e multiplicar talentos!

* Os dados são da Folha de São Paulo de sexta-feira, 27 de junho, caderno Ilustrada.

quinta-feira, 19 de junho de 2008

Nosso passado no Caribe



Como disse Ítalo Calvino em abençoadas palavras, as cidades se parecem muito com as pessoas. Umas são briguentas, irritadiças e perigosas. Algumas comem em excesso, algumas são rancorosas, e outras existem ainda que de tão lindas atraem muita gente, o que às vezes complica suas vidas e lhes tira a paz. De risonhas paisagens, no entanto, parecem estar sempre de bom humor, dispostas a viver a vida até as últimas conseqüências. Acredito que o Rio de Janeiro esteja entre estas, sempre assolado por gente de todos os tipos e latitudes. Muitas dessas gentes não têm onde morar, não conseguem ganhar dinheiro, e acabam engrossando as legiões inadimplentes dos moradores de favelas e bairros esquecidos de Deus e dos políticos depois que passam as eleições.
Diferente desse estatuto migratório e social, Havana é também uma cidade vital, alegre por natureza, embora não tão explicitamente quanto essa urbe sem superego que é o Rio. Superegos à parte, havaneses e cariocas têm em comum um passado colonialista quase fatal, a simpatia, o misticismo de raízes misturadas, o calor humano, a sensualidade e o jeitinho que quase tudo consegue, permite e encobre. Não é pouca coisa. Não depende de normas ou medidas governamentais.
Mas há um estágio desses dois povos que se encontra fora do tempo oficial, e que aqui no Rio tem hoje um sabor de coisa antiga que a gente vê em fotos cor de sépia e que as gerações chegadas depois dos anos 70 não testemunharam o suficiente para perceber sua natureza. Em Havana, ao contrário, essa fase perdura há décadas sem previsão de mudanças a médio prazo. O fato a seguir, narrado por um turista norte-americano, mostra que é forte o bastante para marcar uma semelhança fraterna, ainda que assimétrica, entre as histórias privadas de nossas cidades.
O turista em questão conta que seu despertador parou de funcionar quando estava em Cuba. Pensou em comprar outro no dia seguinte. Perguntou à dona da casa em que se hospedara onde encontrar uma relojoaria pelas imediações, mas a mulher abanou a cabeça sorrindo. “Não seja bobo. Pra que comprar outro? Leve o despertador a um relojoeiro aqui perto, ele conserta e pronto.” Mesmo sem fazer muita fé, o turista fez o que ela dizia. Entrou numa das lojas do ramo nas imediações e alguém lhe indicou uma gasta bancada de madeira iluminada por uma forte lâmpada e coberta de ferramentas e instrumentos do ofício, diante da qual um profissional trabalhava, os olhos protegidos da luz por uma pala preta. O turista, um engenheiro americano, identificou quase todos os instrumentos espalhados sobre a mesa. O homem pegou o relógio de sua mão e o examinou curioso. “Nunca tinha visto um desse tipo”, comentou com grande interesse. Depois o depositou na superfície a sua frente e habilmente checou a bateria, removeu o miolo, os pinos, olhou tudo cuidadosamente e tornou a montar o mecanismo. Nada. O relógio continuava parado. O homem refez a manobra toda, ainda mais atentamente.
Dez minutos depois, o engenheiro, acostumado ao pragmatismo que o mercado cultiva com afinco e eficiência em proveito próprio, perguntou se não seria melhor desistir, e tentou convencê-lo de vez oferecendo-lhe de presente as peças novamente dispersas sobre a bancada. Disse-lhe sorrindo que não perdesse seu precioso tempo com aquilo, não valia a pena. Já ia se despedir do relojoeiro e voltar à porta da oficina, mas o homenzinho o olhou com um misto de espanto e leve indignação. “Como assim, desistir? O senhor não trouxe seu relógio para consertar? Estou aqui para isso. É com isso que ganho minha vida; fui treinado para consertar qualquer relógio, e mesmo esse, um pouco diferente dos outros que conheço, pode ser consertado. Palavra de profissional.” O turista ficou calado, respirou um pouco mais fundo e resolveu esperar. Percebeu que estava ferindo os brios do homem e que, além disso, ele jamais compreenderia que o dono de um objeto passível de conserto se dispusesse a gastar mais dinheiro comprando outro. Recostou-se pois à lateral da bancada e ficou olhando.
Se fosse um natural da terra, com certeza iria tomar um trago na esquina e aproveitar o tempo olhando as mulheres que passavam ou fumando um cigarro. Mas não era, e sofria dessa retidão esterilizante dos homens pragmáticos, que não sabem gozar as aparas de liberdade que o tempo às vezes nos oferece de graça. Ficou portanto ali durante quase meia hora, comprazendo-se em ver e rever tudo que havia na oficina, concentrado na destreza do relojoeiro, o qual, tendo montado e desmontado as peças vezes incontáveis, soltou um grunhido de discreta satisfação. “Achei”, anunciou sorridente. “Entrou um tiquinho de umidade na máquina e ela emperrou.” Remontou o relógio em poucos segundos e o pôs a funcionar diante do dono. Tudo em ordem: bateria, mecanismo com movimentos regulares, ponteiros deslizando sem problemas, alarme em absoluto sincronismo e sonoridade. Cobrou sete pesos – trinta centavos de dólar. “Foram os 30 cents mais divertidos que deixei em 0Cuba”, diz o americano, até hoje encantado com o episódio, recomendando que ninguém deixe de recorrer aos maravilhosos profissionais em que o país é pródigo, “só pelo prazer de ver seus objetos sendo consertados por esses experts”, além de aprender ao vivo o valor que podem ter as coisas usadas e vislumbrar o enorme potencial de reciclagem que deve existir no mundo desenvolvido, onde há muito mais o que consertar.
As cidades vivem simultaneamente em tempo diversos. Talvez Havana seja nosso passado morando numa ilha do Caribe. Porque já vivemos nesse tempo em que a maioria acreditava que as coisas usadas têm um valor intrínseco e é sempre melhor consertá-las quando é preciso, porque sai mais barato; porque os objetos quase sempre são para seu dono algo que escapa à visão do deus burro, ávido e imediatista que é o mercado; porque é útil para o povo que haja espaços de trabalho tão acessíveis como os de relojoeiro, sapateiro, costureiros sem grife, profissionais que podem viver de seu trabalho sem pedir nada a ninguém e sem precisar de formação acadêmica.
Pode ser também que o turista americano tenha sido tocado de modo decisivo por algo de que ele nem ousou se aperceber claramente, porque não lhe é familiar a não ser mediado pela assepsia de palavras impressas ou imagens projetadas da poesia do obscuro, do dia-a-dia sem glamour, do velho neo-realismo italiano ou dos romances russos. Um estado de espírito que já vivemos intensamente, e subsiste apenas em uma faixa cada vez mais estreita da classe média baixa. O resto há muito já embarcou naquele trem de pobres festivos, consumistas e encalacrados, que preferem constar de todos os serasas da vida a cair de novo no limbo de uma vida sem dívidas e sem tevê digital.

quarta-feira, 11 de junho de 2008

Fingidores


Menina a ler. Sem menção de autor.

"Poesia não vende", frase que é o lema de tantos editores e motivo de desalento para tantos autores, deve ter alguma explicação. Não acredito que só os doutores em literatura sejam capazes de apreciar um bom poema. Bem ao contrário, muito saber pode fazer um bom crítico, mas dificilmente fabricar um bom poeta ou leitor de poemas.
Também não creio que o tema seja causa de sucesso no gênero. Às vezes angústia, amor, solidão rendem bons poemas. Mas um poema depende menos do tema escolhido que do modo como é escrito. Boas intenções não fazem bons poemas, dizem os entendidos. Inversamente, um tema sem brilho e até escatológico pode vibrar de poesia. Exemplos mais à mão: Manoel de Barros: "Todos lhe ensinavam para inútil/Aves faziam bosta nos seus cabelos." É ainda ele quem nos ensina: "Há certas frases que se iluminam pelo opaco."* Rimbaud fala de si próprio como "o rapazinho ébrio do mictório da taverna, encantado com a planta diurética que dissolve um cálculo!"** Ezra Pound extrai da palavra usura um canto sombrio e lindo, que é como um baixo-relevo.***
Um poema é a expressão de uma vivência recriada. Tem tudo a ver com a concretude das coisas, os sentidos – "Quero apalpar o som das violetas./Ajeito os ombros para entardecer."* – e é servido pela música das palavras, pelas dobras onde as palavras escondem sua riqueza. Um poema não é desabafo nem panfleto, não está comprometido com um fim fora dele mesmo. É um trabalho artesanal e suas matérias-primas são sensações, percepções, memória, afeto represado (não necessariamente afeto no sentido de amar ou querer bem, mas no de ser afetado por alguma coisa que movimente a energia vital, a libido).
Pessoa diz que "o poeta é um fingidor/finge tão completamente/que chega a fingir que é dor/a dor que deveras sente." Acontece que a poesia, eu acho, é uma forma de viver, de ver o mundo. A realidade é uma mina de poesia, à qual é preciso descer e se dispor a explorar – e quem desce a uma mina já sabe que vai enfrentar passagens estreitas, sujar a roupa, machucar as mãos e eventualmente corre o risco de ficar soterrado. Se o metal valer a pena...
A poesia está onde o senso comum nem desconfia. Quem vira a cara para não ver o mundo através de um olhar próprio, peculiar e intransferível (um pouco como o olhar das crianças); quem se acomoda no conforto do convencional, de certezas e verdades sem saída, não será capaz de reconhecê-la. "Desaprender oito horas por dia ensina os princípios."*
Por tudo isso, acredito que o pouco sucesso de livros de poesia no mercado se deva mais à formação deficiente da sensibilidade das pessoas do que à forma da expressão poética. E para começar a mudar isso, nada seria melhor do que incentivar, muito e desde cedo, a simples leitura de textos que não fossem auto-ajuda nem afins. Se a gente observar bem, verá que o caminho da poesia já se esboça em textos que não pertencem formalmente ao gênero: boa literatura, prosa bem construída, ficção de qualidade trazem sempre um traço de fantasia, linguagem criativa e boas imagens - ou seja, sementes de poesia.

*Barros, Manoel de. O livro das ignorãças. Rio de Janeiro-São Paulo: Record, 1993.
** Rimbaud, Jean Arthur. Uma temporada no inferno. Trad. Paulo Hecker Filho. Porto Alegre: L&PM, 1997.
*** Pound, Ezra. The Cantos. The Pocket Book of Modern Verse, s.d.

terça-feira, 3 de junho de 2008

Notas do cotidiano


Foto Fernando Gonçalves.

Hoje de manhã, quando descia para o trabalho, vi Kafka de pé num ponto de ônibus. Vestia um terno marrom escuro, paletó aberto, e uma gravata com toques castanho-dourados que lhe caía muito bem, um pouco agitada pelo vento. Olhava o mundo e o trânsito com a mesma cara que a literatura imortalizou, com menos gomalina nos cabelos. E imagino que agora terá tantos motivos de inspiração que talvez desista de escrever, porque a realidade já lhe tomou a frente, sendo atualmente mais kafkiana do que ele.
O porquê fica por conta das muitas respostas possíveis, todas certamente muito apropriadas.


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Quanto às ameaças que nos rodeiam, não nos deixam outro remédio (a nós e ao presidente) do que pensar em outra coisa, ao bom estilo histérico de fingir que não está acontecendo nada que uns discursinhos delirantes não resolvam. Brasileiro tem bom coração, povo bom esse, se sensibiliza com qualquer desculpa esfarrapada. Além disso tem em comum com o alto dignitário essa paixão pelo futebol que às vezes facilita tanto a vida dos dignitários. Entende também perfeitamente que o presidente podia estar distraído na hora em que novos golpes eram combinados ao lado dele, acordos ominosos se fechavam e autorizações de desmatamento eram assinadas a seu lado. Vai ver o eu do presidente pairava no céu dos altos desígnios e das metáforas, e quem estava ali era só o mim.