sexta-feira, 25 de maio de 2007

On line, off life



On line todos parecem seres diferentes das pessoas de carne, com cheiros e cores captáveis pelos sentidos; de acordo com as animações que temos visto, são perfeitos, lisinhos, animados por movimentos precisos – e sempre muito jovens. Ou então idealmente maduros, com traços mais fortes e definidos, mas nunca têm um aspecto decadente. A não ser que sejam vilões repulsivos ou bruxos de poderes paranormais, são figuras atraentes – e estereotiapdas. Por isso tanta coragem, poder, beleza, sedução.
É outro relacionamento, outra sociedade que não a dessa gente que vemos de perto? Ou representam aquele ideal de perfeição que a propaganda e a mídia há tanto tempo se dedicam a nos impingir? Solidões compartilhadas por conjuntos de máquinas distantes quilômetros entre si. Pontinhos vermelhos em algum mapa, viramos ficções vivas que se comunicam. Duplas ficções em dose no mínimo dupla, já que em cada ponta existe um ser/pessoa que envia e recebe mensagens traduzidas em letras ou imagens.
Alguma coisa fica faltando. Outro dia uma amiga me dizia que abstrai com facilidade, separa carne e espírito para decodificar as mensagens recebidas e pode agir com a mesma naturalidade com que interage com os semelhantes cara a cara. Confesso que fiquei meio impressionada com esse dom de minha amiga. Tenho muita dificuldade em assumir uma atitude muito natural diante das mensagens que chegam via monitor.
Claro que valorizo o que está escrito, o texto e seu conteúdo, porque esse é o meio de expressão dos internautas para se entenderem, do mesmo jeito que os sinais dos surdos e as palavras e gestos dos cegos. Claro que gosto ou não gosto do que leio, respondo e comento – ou fico em silêncio – de acordo com minhas reações. Mas pertenço a uma “escola” ou tribo que leva em conta a expressão corporal, facial, o olhar, a entonação com que se diz uma palavra ou frase.
Podemos imaginar aqueles a quem não conhecemos nem de retrato, ficcionar sobre seus textos, templates e posts. É certo que fazemos e recebemos companhia trocando palavras bem-intencionadas, gentis, animadas por impulsos de carinho e simpatia ou sentimentos mais fortes. Ou animados pela distância e pela anomia, tanta gente cede à tentação de fazer de quem está em outro nó da rede um alvo sem defesa de ressentimentos ou uma vítima daquele lado mais sombrio que às vezes cresce e engole the sunny side of the soul.
Se chegarem no tempo certo, as palavras podem servir como lanterna de pilha para lançar alguma luz na hora do apagão da tristeza, do sofrimento de que ninguém escapa. E como "tudo vale a pena quando a alma não é pequena", essas lanternas podem até salvar alguém da escuridão do desespero. Mas pode ser pouco para o coração, esse músculo exigente. Ele ainda prefere mão amiga no ombro, calor de abraço ao vivo, coisas ditas cara a cara. Ainda que a amizade virtual dure e crie raízes no tempo, faz falta a imperfeição humana da presença.



Lista extemporânea e anacrônica de propósitos*

o Ser eu mesma sem deixar de descobrir onde mais posso chegar.
o Objetividade. Ou então recusa consciente à objetividade.
o Devaneio faz bem à saúde, contanto que a gente coma os devaneios antes que eles comam a gente.
o Traçar planos periódicos. Remover ou renovar metas.
o Levar cada etapa até o fim mas reconhecer se for hora de recomeçar.
o Ser capaz de recomeçar sempre que necessário.
o Organizar sem matar.
o Reconhecer a poesia de cada coisa, lugar e pessoa.
o Lazer e convívio são a seiva da vida.
o Ser seiva para alguém.
o Se não der tempo de fazer tudo, deitar na rede.
o Ser livre na submissão, estar de férias enquanto trabalho.
*E ainda nem começou dezembro!



O coatá e o mundo cruel

Levamos as crianças ao zoo, ontem de manhã, e eles vibraram. Eu também, meu marido me olhando e achando graça. Gosto quase tanto quanto eles de ver os patos do mato, os quero-queros, os faisões, as harpias, os falcões. A cara engraçada da lontra.
Mas nem as feras me impressionam mais que o coatá de cara preta, triste, de uma tristeza humana de quem passa fome. Lembra os seres híbridos de João Ubaldo em O sorriso do lagarto. Os braços longos, corpo magro, olhos pidões de gente, pretos, redondos. Caminha como quem delibera alguma coisa, mas também como quem está cansado de sofrer. O rabo, muito comprido, o identifica de todo como um macaco.
Velho macaco cansado de guerra.
Vem da Amazônia e, como acontece ao ser humano, está vulnerável às ameaças que o cercam. E apesar de sua origem, parece macaco de primeiro mundo, porque em vez de ser alegre e inconsciente como os outros de seu porte, tem aquela dignidade triste de quem conhece sua condição.
Será esse macaco um fruto do sistema neoliberal?

segunda-feira, 21 de maio de 2007

São Darcy, rogai por nós


Gravura Albert Dührer. Melancolia.

Ligeiramente estarrecida (contradições estão em moda!), li o artigo do Renato Janine Ribeiro no suplemento Mais! da Folha de São Paulo. Janine, um filósofo que até aqui respeitei muito, autoridade intelectual reconhecida, professor de ética da USP, defende idéias nada moderadas quanto à punição penal dos autores do bárbaro assassinato do menino João Hélio aqui no Rio. Entre outras coisas, ele diz que “pena de morte é pouco”. Quer uma “morte hedionda” para os assassinos de João. Parece que o professor está de pleno acordo nesse ponto com muitos prováveis companheiros de cela dos infelizes, com a ressalva de que nenhum deles teve a sorte de cursar uma universidade e conquistar uma carreira brilhante como a de Janine.
Que eu saiba, nem os pais do menino disseram coisa semelhante. Foram até muito moderados, quando ouviram o pedido de perdão da mãe de um dos monstros, e deixaram bem claro seu amor ao filho pela dor que deixaram transparecer, sem qualquer desejo de vingança ou traço de ódio. Ao contrário, em meio a todo o sofrimento pessoal, ouvimos do pai do menino que um povo que pode eleger um presidente e depois expulsá-lo é capaz de consertar o que vai mal na sociedade – uma declaração de confiança e equilíbrio digna de admiração. Pediram justiça, um direito de todos que há séculos nos é negado por aqui. Disseram também que a morte do filho não devia ser em vão, uma declaração que demonstra um espírito de cidadania exemplar.
Entendo que a opinião pública esteja exigindo castigo à altura para assassinos desse tipo de crime, porque qualquer cidadão normal sabe o risco que a impunidade significa. A lei penal em vigor está cheia de defeitos, é insuficiente e ineficaz, e tanto as penitenciárias como as casas de correção para menores são reconhecidamente fábricas de criminosos e oferecem verdadeiros cursos de pós-graduação no crime às pessoas que deveriam sair de lá como cidadãos úteis à sociedade. Isso também os pais de João notaram e expressaram. Todo mundo sabe que o processo penal é uma mentira, está todo ele por assim dizer fora do espírito da lei, porque falha miseravelmente, em todas as instâncias, no objetivo de ressocializar o réu ou proteger a sociedade. O que esse processo tem conseguido é contaminar policiais e representantes da lei com a mentalidade e as ações dos bandidos.
Mas as reformas necessárias, algumas das quais já tramitando nos labirintos do Legislativo, não precisam levar a marca da violência e da brutalidade que infelizmente já vigora nas cadeias e nos meios policiais. Ao contrário, será que não é mantendo a cabeça no lugar e legislando para corrigir o que está errado, isolar o que não tem recuperação e preservar a paz e a liberdade da sociedade que se pode reduzir a insegurança e o pânico que estamos vivendo?
A linha defendida por Janine, ao contrário de trazer mais tranqüilidade às pessoas, seria um incitamento ao crime dentro da cadeia – desnecessário, como todos sabem – e fora dela. O crime, a violência e a barbárie não precisam disso para existir e proliferar. O que se quer e precisa é exatamente do contrário. Penas mais duras, mais longas, sim – mas também presídios em que as pessoas possam aprender viver como gente civilizada.
Os bandidos se formam de muitas maneiras, mas na origem de todas elas está a falta de assistência de uma família digna desse nome, capaz de dar apoio e proteção a suas crianças; a falta de escola ou a escola tardia, e de um Estado que forneça a quem não pode pagar serviços de saúde e educação, emprego e inserção no trabalho e na sociedade. Sem esmolas, sem demagogia: simplesmente cumprindo sua função.
Se o Darcy Ribeiro está nos vendo, não sei como consegue ficar quieto no paraíso sem intervir neste momento de nosso país.

quarta-feira, 16 de maio de 2007

Tezza

O livro acaba sempre por falar-nos de nós mesmos
Gaston Bachelard


Foto Carlos Freire.

Acabei de ler A suavidade do vento, de Cristóvão Tezza. Estava muito curiosa para conhecer o texto dele, porque me parece um tímido, e eu me identifico de imediato com os membros de meu clube.
Para mim, o livro é surpreendente por mais de uma razão. Primeiro porque me fez lembrar Machado, pelo jeito como o narrador se dirige ao leitor. Além disso, certas considerações são machadianas na descrição de personagens e ambientes, assim como nos diálogos e acima de tudo na ironia que rege toda a obra. É também um livro alegórico – lembrai-vos do delírio das Memórias póstumas –, mas aqui o autor utiliza os monstros e monstrinhos que Hyeronimus Bosch espalhou em suas obras e o efeito é uma forma de humor negro cujo epicentro é um personagem quase arquetípico.
Mais que irônico, é um livro cruel. Não da crueldade banalizada que a gente vê no cinema, na literatura e nos jornais de nosso tempo, mas de uma crueldade incruenta, torturante e assustadoramente humana, que me fez lembrar Dogville do von Trier.
(Parêntese: a propósito, leiam o Jabor de terça-feira dia 2. Está muito Jabor mesmo, o que quer dizer radical e um tanto saborosamente alarmista. Mas tudo que ele diz me pareceu familiar e verdadeiro, talvez porque vivamos num tempo alarmante e radicalista a ponto de se aproximar perigosamente da era medieval – vide acareação Dirceu x Jefferson. – Eu disse acareação? Er... Escapou.)
Mas como eu ia dizendo, antes de ser brutalmente interrompida por um impulso que não quis calar, Tezza me deu bons momentos de leitura. Além de tudo que ficou dito, ele monta uma peça... Bom, melhor ler o livro que ficar sabendo das coisas por terceiros. Agora vou partir para O Fotógrafo, outro livro dele.
E ainda resta uma pilha que nem vos conto. Da qual fazem parte o que falta conhecer da obra completa do citado Machado, que encontrei na Traça Sebo Virtual, um William Blake, um Faulkner e alguns outros volumezitos que serão traçados a seu tempo.
Estive relendo também a correspondência entre Clarice e Fernando Sabino, que convém manter viva porque é uma espanada em regra na mesmice e uma oração eficaz contra o estuporamento que ora nos assola (imaginem o que Stanilaw não escreveria nestes tempos rebarbativos!).
Extraí o seguinte pensamento (quiçá frágil) dessa leitura beatífica: é preciso não compreender um pouco. Essa ânsia de tudo entender pode ser fatal para algumas instâncias humanas, como o momento iminente, o fenômeno que se depara a nossos olhos, o assim chamado real no momento mesmo de sua experimentação. Aqueles que compulsivamente ostentam a envergadura de seu saber sempre pisam as florinhas que crescem ao rés do chão e perdem todas as oportunidades de ser simplesmente felizes.

Alguma coisa me diz


Foto Marcelo Coelho.

Antigamente eu me aborrecia quando o cós de uma saia ficava muito amassado na reentrância da cintura. Agora tenho mais com que me aborrecer.
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Hoje encontrei anotado numa orelha de apostila: “o que é espontâneo vive para sempre”.
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Naquele dia, precisava assistir ao jornal das quatro, que ia transmitir uma entrevista de Cosme, meu colega de faculdade. Naquele tempo Cosme era um adolescente magrinho, moreno, descendente de índios do Amazonas; meio rebelde, inquieto, de olhos negros puxados. Naquela altura, já se tornara um caboclo barrigudinho de barbas compridas e grisalhas. O que não me saía da cabeça era que não seria justo deixar de vê-lo naquele dia. Porque talvez ele não vivesse muito mais. Porque talvez eu não tivesse muito mais para viver. Um mês depois recebi a notícia de sua morte.
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Tudo que se consegue saber do futuro com relativa certeza é o que a meteorologia prevê. O que é bem pouco, tendo em vista o percentual de erros na previsão do tempo.
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O mais alto a que consigo chegar é quando procuro de todo coração entender alguém. Nesses momentos me sinto no nível dos cristais de chuva.
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Deve-se perder o presente em nome do futuro?

segunda-feira, 14 de maio de 2007

São dois rios que passam em nossas vidas



Ao contrário do que se imagina, quando sumariamente se condena o ódio, o que se está fazendo não é um julgamento, mas uma redução. O que merece julgamento e condenação são os atos, não os sentimentos. Parodiando a letra do Aldir, os sentimentos e as manhãs são espontâneos, “levantam do escuro e ninguém pode evitar”.
Há muitas formas de amor, e há também muitas formas de ódio – sentimentos muito mais parecidos do que se imagina a uma primeira visada. Por isso o falso impasse: amor e ódio seriam opostos, antagônicos. Um anularia o outro. Por definição – acredita o senso comum – amor quer somente o bem do outro, ódio somente seu mal.
Qualquer conceito – acima de tudo os que o senso comum consagra – requer revisões periódicas. Acontece que entre um e outro extremo as variações são infinitas. Amor e ódio são como dois rios que nascem juntos e correm muito próximos durante a maior parte de seus cursos; por serem líquidos, qualquer chuva forte ou movimento mais brusco faz com que suas águas se misturem. Escandalizar-se com essa afirmação me parece uma daquelas hipocrisias ingênuas (mas não inofensivas) que se repetem todos os dias por hábito ou falta de crítica, que são os dois maiores amigos da mentira e do equívoco.
Quando se idolatra alguém e por ele ou ela, mesmo sem necessidade real, se pratica qualquer ação ou se faz qualquer sacrifício, é provável que já se tenha começado a surdamente odiar esse alguém.
Amores como o materno e o paterno não estão excluídos desses percalços. É claro que existem mães e pais que empenham às vezes os melhores anos de sua vida, enquanto ainda se é jovem e cheio de planos e sonhos, para cuidar de um filho deficiente, prejudicado por um acidente ou um distúrbio sem esperança de cura. Ou filhos, cônjuges, gente que se imola ao cuidado de outro. O senso de responsabilidade e a compaixão têm um papel importante nesses casos. Mas há casos limite em que um ser humano se vê impedido de viver a própria vida, e a vida se torna quase um martírio cotidiano. Acompanhado de culpa, o ódio costuma nesses casos exibir suas manifestações mais contidas, muitas vezes recalcadas. E todos nós conhecemos casos em que o ódio de um dos pais fica explícito na violência exercida sobre uma criança, às vezes mal disfarçado de correção necessária.
Assim como acontece com o ódio extremado, também o amor extremado pode ser destruidor. Como a recíproca é sempre verdadeira quando se trata de sentimentos, a lógica do amor absoluto exige em troca que o ser amado seja tudo aquilo que se atribui a ele e supõe que também o amado seja integralmente dedicado, grato, confiável, amante e encantado com quem o ama tanto. Mas isso não acontece, por vários motivos. Primeiro porque esse tipo de relacionamento é ilusório, idealizado, falso e impossível. Segundo porque o outro é e será sempre o outro, por mais que se projetem nele os próprios sentimentos.
Além desses motivos intransponíveis, o amor que se autodenomina perfeito destrói o ser amado porque não lhe deixa ar e espaço suficiente para a liberdade de se amar a si mesmo e se realizar como ser único. E se o exclusivista não conseguir reciprocidade total e se vir forçado conceder que o outro seja diferente e experimente outras necessidades, começa a se formar a tsunami do ciúme, da possessividade reprimida – e o amor fica tão parecido com ódio que ninguém acreditaria que esse amor não é ódio.
Entre pessoas ditas civilizadas, capazes de autocontrole e autocrítica, o ódio talvez se mostre mais sob a forma de raiva, implicância ou até se volte contra o sujeito que o experimenta, como um escorpião que injeta em si mesmo o próprio veneno. Mas ainda nesses casos, sabemos bem que ele pode eclodir em toda sua força, primário e trágico.
Não há como se iludir: ninguém está isento de ódio, nem é incapaz de manifestá-lo. Ódio não é a outra face da moeda do amor, mas seu continuum. E como certos venenos, em pequenas doses pode ser imprescindível para mover a vida, que sem ele ficaria estagnada num pântano de sentimentalismo e mesmice.
A grande sacada em relação à energia desses sentimentos, capazes de destruir seu objeto, é que ela pode também se metamorfosear em força criativa. Nesse caso, em que se torna capaz de reinventar a visão de mundo de uma pessoa e modificar sua realidade, essa energia pode ser responsável pelo surgimento de obras de arte, grandes invenções, descobertas importantes para a humanidade.
Mas essa metamorfose real da força da libido faz parte de uma outra conversa: aqui entram fatores diversificados e difíceis de precisar. Um deles é com certeza um traço fortemente ligado à educação que muitas vezes não coincide com o conceito do senso comum.