O livro acaba sempre por falar-nos de nós mesmos
Gaston Bachelard
Foto Carlos Freire.
Acabei de ler A suavidade do vento, de Cristóvão Tezza. Estava muito curiosa para conhecer o texto dele, porque me parece um tímido, e eu me identifico de imediato com os membros de meu clube.
Para mim, o livro é surpreendente por mais de uma razão. Primeiro porque me fez lembrar Machado, pelo jeito como o narrador se dirige ao leitor. Além disso, certas considerações são machadianas na descrição de personagens e ambientes, assim como nos diálogos e acima de tudo na ironia que rege toda a obra. É também um livro alegórico – lembrai-vos do delírio das Memórias póstumas –, mas aqui o autor utiliza os monstros e monstrinhos que Hyeronimus Bosch espalhou em suas obras e o efeito é uma forma de humor negro cujo epicentro é um personagem quase arquetípico.
Mais que irônico, é um livro cruel. Não da crueldade banalizada que a gente vê no cinema, na literatura e nos jornais de nosso tempo, mas de uma crueldade incruenta, torturante e assustadoramente humana, que me fez lembrar Dogville do von Trier.
(Parêntese: a propósito, leiam o Jabor de terça-feira dia 2. Está muito Jabor mesmo, o que quer dizer radical e um tanto saborosamente alarmista. Mas tudo que ele diz me pareceu familiar e verdadeiro, talvez porque vivamos num tempo alarmante e radicalista a ponto de se aproximar perigosamente da era medieval – vide acareação Dirceu x Jefferson. – Eu disse acareação? Er... Escapou.)
Mas como eu ia dizendo, antes de ser brutalmente interrompida por um impulso que não quis calar, Tezza me deu bons momentos de leitura. Além de tudo que ficou dito, ele monta uma peça... Bom, melhor ler o livro que ficar sabendo das coisas por terceiros. Agora vou partir para O Fotógrafo, outro livro dele.
E ainda resta uma pilha que nem vos conto. Da qual fazem parte o que falta conhecer da obra completa do citado Machado, que encontrei na Traça Sebo Virtual, um William Blake, um Faulkner e alguns outros volumezitos que serão traçados a seu tempo.
Estive relendo também a correspondência entre Clarice e Fernando Sabino, que convém manter viva porque é uma espanada em regra na mesmice e uma oração eficaz contra o estuporamento que ora nos assola (imaginem o que Stanilaw não escreveria nestes tempos rebarbativos!).
Extraí o seguinte pensamento (quiçá frágil) dessa leitura beatífica: é preciso não compreender um pouco. Essa ânsia de tudo entender pode ser fatal para algumas instâncias humanas, como o momento iminente, o fenômeno que se depara a nossos olhos, o assim chamado real no momento mesmo de sua experimentação. Aqueles que compulsivamente ostentam a envergadura de seu saber sempre pisam as florinhas que crescem ao rés do chão e perdem todas as oportunidades de ser simplesmente felizes.
Alguma coisa me diz
Foto Marcelo Coelho.
Antigamente eu me aborrecia quando o cós de uma saia ficava muito amassado na reentrância da cintura. Agora tenho mais com que me aborrecer.
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Hoje encontrei anotado numa orelha de apostila: “o que é espontâneo vive para sempre”.
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Naquele dia, precisava assistir ao jornal das quatro, que ia transmitir uma entrevista de Cosme, meu colega de faculdade. Naquele tempo Cosme era um adolescente magrinho, moreno, descendente de índios do Amazonas; meio rebelde, inquieto, de olhos negros puxados. Naquela altura, já se tornara um caboclo barrigudinho de barbas compridas e grisalhas. O que não me saía da cabeça era que não seria justo deixar de vê-lo naquele dia. Porque talvez ele não vivesse muito mais. Porque talvez eu não tivesse muito mais para viver. Um mês depois recebi a notícia de sua morte.
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Tudo que se consegue saber do futuro com relativa certeza é o que a meteorologia prevê. O que é bem pouco, tendo em vista o percentual de erros na previsão do tempo.
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O mais alto a que consigo chegar é quando procuro de todo coração entender alguém. Nesses momentos me sinto no nível dos cristais de chuva.
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Deve-se perder o presente em nome do futuro?
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