segunda-feira, 14 de maio de 2007
São dois rios que passam em nossas vidas
Ao contrário do que se imagina, quando sumariamente se condena o ódio, o que se está fazendo não é um julgamento, mas uma redução. O que merece julgamento e condenação são os atos, não os sentimentos. Parodiando a letra do Aldir, os sentimentos e as manhãs são espontâneos, “levantam do escuro e ninguém pode evitar”.
Há muitas formas de amor, e há também muitas formas de ódio – sentimentos muito mais parecidos do que se imagina a uma primeira visada. Por isso o falso impasse: amor e ódio seriam opostos, antagônicos. Um anularia o outro. Por definição – acredita o senso comum – amor quer somente o bem do outro, ódio somente seu mal.
Qualquer conceito – acima de tudo os que o senso comum consagra – requer revisões periódicas. Acontece que entre um e outro extremo as variações são infinitas. Amor e ódio são como dois rios que nascem juntos e correm muito próximos durante a maior parte de seus cursos; por serem líquidos, qualquer chuva forte ou movimento mais brusco faz com que suas águas se misturem. Escandalizar-se com essa afirmação me parece uma daquelas hipocrisias ingênuas (mas não inofensivas) que se repetem todos os dias por hábito ou falta de crítica, que são os dois maiores amigos da mentira e do equívoco.
Quando se idolatra alguém e por ele ou ela, mesmo sem necessidade real, se pratica qualquer ação ou se faz qualquer sacrifício, é provável que já se tenha começado a surdamente odiar esse alguém.
Amores como o materno e o paterno não estão excluídos desses percalços. É claro que existem mães e pais que empenham às vezes os melhores anos de sua vida, enquanto ainda se é jovem e cheio de planos e sonhos, para cuidar de um filho deficiente, prejudicado por um acidente ou um distúrbio sem esperança de cura. Ou filhos, cônjuges, gente que se imola ao cuidado de outro. O senso de responsabilidade e a compaixão têm um papel importante nesses casos. Mas há casos limite em que um ser humano se vê impedido de viver a própria vida, e a vida se torna quase um martírio cotidiano. Acompanhado de culpa, o ódio costuma nesses casos exibir suas manifestações mais contidas, muitas vezes recalcadas. E todos nós conhecemos casos em que o ódio de um dos pais fica explícito na violência exercida sobre uma criança, às vezes mal disfarçado de correção necessária.
Assim como acontece com o ódio extremado, também o amor extremado pode ser destruidor. Como a recíproca é sempre verdadeira quando se trata de sentimentos, a lógica do amor absoluto exige em troca que o ser amado seja tudo aquilo que se atribui a ele e supõe que também o amado seja integralmente dedicado, grato, confiável, amante e encantado com quem o ama tanto. Mas isso não acontece, por vários motivos. Primeiro porque esse tipo de relacionamento é ilusório, idealizado, falso e impossível. Segundo porque o outro é e será sempre o outro, por mais que se projetem nele os próprios sentimentos.
Além desses motivos intransponíveis, o amor que se autodenomina perfeito destrói o ser amado porque não lhe deixa ar e espaço suficiente para a liberdade de se amar a si mesmo e se realizar como ser único. E se o exclusivista não conseguir reciprocidade total e se vir forçado conceder que o outro seja diferente e experimente outras necessidades, começa a se formar a tsunami do ciúme, da possessividade reprimida – e o amor fica tão parecido com ódio que ninguém acreditaria que esse amor não é ódio.
Entre pessoas ditas civilizadas, capazes de autocontrole e autocrítica, o ódio talvez se mostre mais sob a forma de raiva, implicância ou até se volte contra o sujeito que o experimenta, como um escorpião que injeta em si mesmo o próprio veneno. Mas ainda nesses casos, sabemos bem que ele pode eclodir em toda sua força, primário e trágico.
Não há como se iludir: ninguém está isento de ódio, nem é incapaz de manifestá-lo. Ódio não é a outra face da moeda do amor, mas seu continuum. E como certos venenos, em pequenas doses pode ser imprescindível para mover a vida, que sem ele ficaria estagnada num pântano de sentimentalismo e mesmice.
A grande sacada em relação à energia desses sentimentos, capazes de destruir seu objeto, é que ela pode também se metamorfosear em força criativa. Nesse caso, em que se torna capaz de reinventar a visão de mundo de uma pessoa e modificar sua realidade, essa energia pode ser responsável pelo surgimento de obras de arte, grandes invenções, descobertas importantes para a humanidade.
Mas essa metamorfose real da força da libido faz parte de uma outra conversa: aqui entram fatores diversificados e difíceis de precisar. Um deles é com certeza um traço fortemente ligado à educação que muitas vezes não coincide com o conceito do senso comum.
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Um comentário:
...Sim, as nuances entre os rios do amor e ódio são infinitas, variadas e, ás vezes, misturam-se: algo assim como se fossem duas cores, o azul e o alizarim que, em certos momentos, fundem-se, sendo quase impossível detectar ou definir limites...
Adelaide, teu texto me fez pensar em coisas que li do Murilo Mendes, em "A Idade do Serrote" : lá , várias vezes, o autor questiona os limites entre o bem e o mal, o amor e o ódio, percebendo que, muitas vezes, existem apenas tênues e móveis limiares...
Penso, ainda, na questão do entre-lugar... o caminho do meio... ou, quem sabe, o ponto de equilíbrio... in-fusão?...
Vou linkar este teu blog, também, pode ser? Beijos alados , ankorados e equilibrados...
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