Como disse Ítalo Calvino em abençoadas palavras, as cidades
se parecem muito com as pessoas. Umas são briguentas, irritadiças e perigosas.
Algumas comem em excesso, algumas são rancorosas e outras existem que de tão
lindas atraem muita gente, o que complica suas vidas e lhes tira o sossego. De
risonhas paisagens, no entanto, parecem estar sempre de bom humor, dispostas a
viver a vida até as últimas conseqüências. Acredito que o Rio de Janeiro esteja
entre estas, sempre assolado por gente de todos os tipos e latitudes. Muitas
dessas gentes não têm onde morar, não conseguem ganhar dinheiro e acabam
engrossando as legiões inadimplentes dos moradores de favelas e bairros
esquecidos de Deus e dos políticos depois que passam as eleições.
Diferente desse estatuto migratório e social, Havana é
também uma cidade vital, alegre por natureza, embora não tão explicitamente
quanto essa urbe sem superego que é o Rio. Superegos à parte, havaneses e
cariocas têm em comum um passado colonialista quase fatal, a simpatia, o
misticismo de raízes misturadas, o calor humano, a sensualidade e o jeitinho
que quase tudo consegue, permite e encobre. Não é pouca coisa. Não depende de
normas ou medidas governamentais.
Mas há um estágio desses dois povos que se encontra fora do
tempo oficial, e que aqui no Rio tem hoje um sabor de coisa antiga que a gente
vê em fotos cor de sépia e que as gerações chegadas depois dos anos 70 não
testemunharam. Em Havana, ao contrário, essa fase perdura há décadas sem
previsão de mudanças a médio prazo. O fato a seguir, narrado por um turista
norte-americano, mostra que é forte o bastante para marcar uma semelhança
fraterna, ainda que assimétrica, entre as histórias privadas de nossas cidades.
O turista em questão conta que seu despertador parou de
funcionar quando estava em Cuba. Pensou em comprar outro no dia seguinte.
Perguntou à dona da casa em que se hospedara onde encontrar uma relojoaria
pelas imediações, mas a mulher abanou a cabeça sorrindo. “Não seja bobo. Pra
que comprar outro? Leve o despertador a um relojoeiro aqui perto, ele conserta
e pronto.” Mesmo sem fazer muita fé, o turista fez o que ela dizia. Entrou numa
das lojas do ramo nas imediações e alguém lhe indicou uma bancada de madeira
bem gasta, iluminada por uma lâmpada poderosa e coberta de ferramentas e
instrumentos do ofício, diante da qual um profissional trabalhava, os olhos
protegidos da luz por uma pala preta. O turista, um engenheiro americano,
identificou quase todos os instrumentos espalhados sobre a mesa. O homem pegou
o relógio de sua mão e o examinou curioso. “Nunca tinha visto um desse tipo”,
comentou com grande interesse. Depois o depositou na superfície a sua frente e
habilmente checou a bateria, removeu o miolo, os pinos, olhou tudo
cuidadosamente e tornou a montar o mecanismo. Nada. O relógio continuava
parado. O homem refez a manobra toda, ainda mais atentamente.
Dez minutos depois, o engenheiro, acostumado ao pragmatismo
que o mercado cultiva com afinco e eficiência em proveito próprio, perguntou se
não seria melhor desistir, e tentou convencê-lo de vez oferecendo-lhe de
presente as peças de novo dispersas sobre a bancada. Disse-lhe sorrindo que não
perdesse seu precioso tempo com aquilo, não valia a pena. Já ia se despedir do
relojoeiro e voltar à porta da oficina, mas o homenzinho o olhou com um misto
de espanto e leve indignação. “Como assim, desistir? O senhor não trouxe seu
relógio para consertar? Estou aqui para isso. É com isso que ganho minha vida,
fui treinado para consertar qualquer relógio, e mesmo esse, um pouco diferente
dos outros que conheço, pode ser consertado. Palavra de profissional.” O
turista ficou calado, respirou um pouco mais fundo e resolveu esperar. Percebeu
que estava ferindo os brios do homem e que, além disso, ele jamais
compreenderia que o dono de um objeto passível de conserto se dispusesse a
gastar mais dinheiro comprando outro. Recostou-se pois à lateral da bancada e
ficou olhando.
Se fosse um natural da terra, com certeza iria tomar um
trago na esquina e aproveitar o tempo olhando as mulheres que passavam ou
fumando um cigarro. Mas não era, e sofria dessa retidão esterilizante dos
homens pragmáticos, que não sabem gozar as aparas de liberdade que o tempo às
vezes nos oferece de graça. Ficou portanto ali durante quase meia hora,
comprazendo-se em ver e rever tudo que havia na oficina, concentrado na
destreza do relojoeiro, o qual, tendo montado e desmontado as peças vezes
incontáveis, soltou um grunhido de discreta satisfação. “Achei”, anunciou
sorridente. “Entrou um tiquinho de umidade na máquina e ela emperrou.” Remontou
o relógio em poucos segundos e o pôs a funcionar diante do dono. Tudo em ordem:
bateria, mecanismo com movimentos regulares, ponteiros deslizando sem
problemas, alarme em absoluto sincronismo e sonoridade. Cobrou sete pesos –
trinta centavos de dólar. “Foram os 30 cents mais divertidos que deixei em
Cuba”, diz o americano, até hoje encantado com o episódio, recomendando que
ninguém deixe de recorrer aos maravilhosos profissionais em que o país é
pródigo, “só pelo prazer de ver seus objetos sendo consertados por esses
experts”, além de aprender ao vivo o valor que podem ter as coisas usadas e
vislumbrar o enorme potencial de reciclagem que deve existir no mundo
desenvolvido, onde há muito mais o que consertar.
As cidades vivem simultaneamente em tempo diversos. Talvez
Havana seja nosso passado morando numa ilha do Caribe. Porque já vivemos nesse
tempo em que a maioria acreditava que as coisas usadas têm um valor intrínseco
e é sempre melhor consertá-las quando é preciso, porque sai mais barato; porque
os objetos quase sempre são para seu dono algo que escapa à visão do deus
burro, ávido e imediatista que é o mercado; porque é útil para o povo que haja
espaços de trabalho tão acessíveis como os de relojoeiro, sapateiro,
costureiros sem grife, profissionais que podem viver de seu trabalho sem pedir
nada a ninguém e sem precisar de formação acadêmica.
Pode ser também que o turista americano tenha sido tocado
de modo decisivo por algo de que ele nem ousou se aperceber claramente, porque
não lhe é familiar a não ser talvez mediado pela assepsia de palavras impressas
ou imagens projetadas: a poesia do obscuro, do dia-a-dia sem glamour, do velho
neo-realismo italiano ou dos romances russos.
Um estado de espírito que já vivemos intensamente, e
subsiste apenas em uma faixa cada vez mais estreita da classe média baixa. O
resto há muito já embarcou naquele trem de pobres festivos, consumistas e
encalacrados, que preferem constar de todos os serasas da vida a cair de novo
no limbo de uma vida sem dívidas e sem tevê de 29 polegadas.