sexta-feira, 19 de março de 2010

Pensamentos de janela



Foto Alfredo Muñoz de Oliveira.




Estava eu na janela a contemplar os galhos da amendoeira fronteiriça (uia!), quando me veio à cabeça que entre as ideias de estar e ter há nuances quase tão fogosas quanto as conhecidas diferenças entre ser e ter, que já se tornaram meio clichê – o que é mau, desgastante para uma ideia que vale a pena desenrolar de vez em quando.


A gente vive tão massacrada pela filosofia de mercado/lucro que se infiltra em nosso cotidiano, que há quem pense em mudar para as montanhas do Tibet e viver de leite de cabra e frutos silvestres, tecendo a própria túnica e dormindo numa gruta forrada de capim seco. Não seria uma rima nem uma solução, porque estaríamos perdendo os melhores filmes do ano, House e o sorvete de pavê, além dos riscos de faltar repelente de mosquitos e vacina contra veneno de cobra. Quem nasceu pra civilizado ocidental nunca chega a monge budista.


As diferenças entre estar e ter têm a ver com o instante (vide Clarice e o instante-já), única parcela do tempo com que podemos mesmo contar – e que dura... um instante – e o consumo, com todos os envolvimentos que ele supõe e dos quais é impossível fugir. O rolo compressor do mercado ameaça diluir nossos instantes, levando-nos a comprar o que talvez nos fosse inteiramente indiferente sem esse estímulo. O gosto e a criatividade são atingidos pela gosma invasiva da propaganda e pelos imperativos do lucro alheio. É um preço alto demais. Por sua vez, a mídia só colabora com esse estado de coisas, porque também precisa vender seus produtos.


Até a auto-estima está vendida ao mercado, porque só se considera vencedor quem faz dinheiro para si e para quem se dispõe a patrociná-lo. A maior parte da sociedade se marginaliza, escravizada por subempregos, sem falar na parcela dos que buscam afirmação e qualidade de vida na ilegalidade e no crime, nem sempre por falta de recursos, mas por motivos que vão de tendências de caráter a influências negativas do próprio meio.


Já que não dá mesmo pra escapar, é preciso aprender a enfrentar o bicho. Acredito que ajuda um certo descompromisso com os valores vigentes (a maioria deles sugeridos pelas mensagens da propaganda), porque a vida é aqui e agora, e não temos a menor ideia de até quando chegaremos. Não quer dizer desbunde geral, não mesmo. Quer dizer apenas certa autonomia que permita viver mais intensamente o instante-já de que falava Clarice, e que dura o tempo em que a roda em movimento toca o chão. Ir o mais fundo possível naquilo que temos prazer em fazer. Curtir as pessoas importantes para nós, viver o amor de modo pleno, realizar projetos sem comodismo – enfim, ir até onde se puder chegar, tornando a vida uma sucessão de instantes que valha a pena lembrar. O próprio trabalho pode dar muito prazer a quem o faz e gosta do que faz.


Não é preciso ter muito. O essencial é estar bem, estar inteiro no momento em que se vive. Para isso servem o coração e os sentidos, a memória e as mãos, o corpo e o pensamento.

sexta-feira, 12 de março de 2010

O Nada a declarar

Piglia, Ricardo. Prisão Perpétua. Trad.Rubia P. Goldoni e Sérgio Molina, S. Paulo: Iluminuras, 2002.

Um desfile de personagens que têm em comum um descompasso com a vida seria uma primeira impressão, mas não a definitiva. Conheci Piglia pela adaptação de Plata Quemada, o primeiro livro seu de que ouvi falar e um dos melhores filmes que lembro de ter assistido. Confirmo esse ponto de vista com o conjunto harmônico de relatos da desarmonia existencial que compõem Prisão Perpétua.

São personagens com cheiro de gente real, vivendo uma vida nada charmosa. A ambição do poder e do dinheiro se desnuda em sua forma mais cruel e a autoestima não chega sequer a ser cogitada. Isso me leva a pensar nos big brothers da vida, na exaltação do egocentrismo e no sonho de ascensão fácil que eles não só traduzem como realizam. Sinais de nosso tempo, que os textos de Piglia ilidem sem discutir. O pano de fundo dessa maneira de ver as coisas talvez seja mesmo a consciência da finitude que acompanha o homem, único animal capaz de captá-la.

(Noves fora o profetismo ou qualquer coloração mística, todas ou quase todas as religiões conhecidas enfatizam em seus códigos um item sobre o fato de que as civilizações preparam sua própria destruição, à medida que fortalecem seus costumes no que eles possam ter de consentidamente opressivo.)

Mas tal extrapolação não está, ao menos diretamente, ligada à visão de mundo de Piglia. A consciência da finitude, sim, com certeza. Ela informa os personagens de seus textos e lhes dá um caráter literário muito sedutor. Não por acaso, Piglia aparece em O Mal de Montano, de Enrique Vila-Matas, que visitamos há um ou dois meses, e trata de diários de escritores e das referências esclarecedoras que representam para o leitor e a crítica. Há ainda em comum as citações literárias, que de alguma forma remetem às escolhas de Vila-Matas, como Roberto Musil, Witold Grombowicz, o onipresente Borges e alguns outros.

Mais que tudo, há o Nada rondando do início ao fim do livro, como uma forma de filosofia desajeitada. Histórias de crimes e uma violência surda permeiam todos os contos, povoados de figuras marginais e amores pisados. Em um desses relatos – “Anotações sobre Macedonio num diário” – explica que, para o escritor protagonista, o maior problema são “as relações do pensamento com a literatura. O pensar [...] é algo que pode ser narrado como se narra uma viagem ou uma história de amor, mas não do mesmo modo. Parece-lhe possível que num romance possam se expressar pensamentos tão difíceis de forma tão abstrata como numa obra filosófica, mas sob a condição de que pareçam falsos. Essa ilusão de falsidade”, diz Renzi [o comentarista do escritor], “é a própria literatura”

sábado, 6 de março de 2010

O que faz você feliz?


Há muito tempo, o conceito de felicidade perdeu aquele traço de perenidade que os muito românticos ou ingênuos lhe emprestavam. O “foram felizes para sempre” sumiu de todas as histórias que vieram depois de Branca de Neve e Cinderela. Isso, quando se fala de felicidade a dois, ou seja, harmonia, bom entendimento mútuo, respeito e amizade que coexistam com o amor.

Mas ninguém é obrigado a ser feliz a dois. Esse estado ou sensação de plenitude exige mais que apenas a presença de um parceiro. E a despeito das opiniões em contrário, é bem possível ser feliz, genuinamente feliz, vivendo sozinho. Conheço alguns exemplos de pessoas assim.

Analisando a vida e o comportamento desses seres bem-aventurados, cheguei à conclusão de que a primeira condição para ser feliz, sozinho ou acompanhado, é estar bem consigo mesmo. Um bom parceiro pode ajudar, mas não pode ser responsabilizado pela infelicidade do outro, se esse outro viver moído de frustração, mágoa ou inveja. Alguém incapaz de se identificar com um semelhante, de rir ou sofrer junto. Prazeres mesquinhos que deixam um rastro de destruição, drogadição, egoísmo mórbido, egocentrismo irrestrito e seus derivados são inimigos do estado de felicidade. Isso nem é novidade, é quase intuitivo. Mas então, que droga é isso de felicidade?

Há uma propaganda na mídia que começa perguntando “o que faz você feliz?”, para em seguida mostrar o estoque variadíssimo de alguma loja – ou será uma marca de carro? Não importa muito o produto veiculado, mas o espírito da coisa. Confunde-se constantemente a alegria causada por uma boa compra ou por um novo namorado com felicidade. Isso é euforia, satisfação, estado passageiro muito agradável e que se confunde facilmente com felicidade. Passa rápido, e os motivos de tristeza ou ansiedade ficam mais fortes, quando se percebe que nem a estabilidade financeira nem a nova paixão preencheram aquele vazio sabotador do bem-estar.

Uma das pessoas que considero felizes me diz que atribui sua paz interior a vários fatores, um dos quais seria a realização profissional. Imagino que sentir-se satisfeito com o que se faz é meio caminho andado. Ou um terço de caminho, vá lá. Quando se tem a sorte de acertar nessa confusa loteria que é o mercado de trabalho, talvez se esteja conseguindo mesmo uma garantia relativa para viver em paz, e nem falo de altos rendimentos ou posição de destaque. Essa amiga, uma modesta costureira e artesã, vive numa cidade pequena da Bahia e mora numa casa simples de vila, onde cultiva algumas das plantas mais bem cuidadas que já vi. A alegria de ver sair das próprias mãos um objeto ou uma roupa que atrai clientes e merece elogios é um motivo de alegria quase permanente, além de garantir a subsistência dela e do filho de dez anos, que perdeu o pai há três. “Não posso dizer que não sinto falta do Daltro”, ela diz, “mas apesar de chorar muitas vezes com saudade dele, eu me sinto muito feliz com nossa vida”. Será boa consciência? Será o sentimento de ser uma boa mãe? Não sei, mas Dalva – o nome dela é Dalva – é uma mulher inequivocamente feliz.

Outro, um conhecido daqui do Rio, um homem meio calado mas muito bem-humorado, é autor de alguns dos textos mais inovadores e gostosos de ler que conheço. Aposentado há um ano, acha que o que ele e a mulher recebem é suficiente para curtir a vida do jeito deles, sem grandes luxos. Resolveu se dedicar ao que gosta mesmo de fazer, que é escrever e pintar – e são dois pintores, porque Gisela, a mulher, também tem bons trabalhos de pintura e ilustrou um bonito livro artesanal para dar de presente ao marido escritor no Natal. Esse escritor anônimo tem contos, muitos, dois romances, roteiros de novelas e um roteiro de filme. Tentou publicar em editoras “de autor”, mas se desiludiu com o mercenarismo e o descaso delas pelo autor. Está preparando um blog, que talvez vá se chamar Memórias de Agora, onde pretende mostrar seu trabalho. Tem dois filhos que já não moram com ele e a mulher, e seus dias, que tinham tudo para cair numa rotina desesperadora, são preenchidos por pesquisas, exercícios de culinária, bons filmes e longas conversas com os amigos com quem gostam de sair ou convidar para sua casa.

“Não preciso mais correr atrás de nada”, ele me disse, quando perguntei por que não vai mais à luta para publicar seus escritos. “Quero aproveitar os anos que ainda tivermos de vida para viver a fundo nossa felicidade. E acho que não seria justo comigo e com Gisela continuar ralando pra conseguir mais uns trocados”. Gisela não disse nada, mas teve um gesto de carinho explícito, e os dois se abraçaram com a cara iluminada de quem está em paz com a vida – e consigo mesmo.

Há outros casos, gente com a vida limitada por doenças ou perdas que deixariam em desespero quem não tivesse essa âncora interna, difícil de explicar e de entender, que no entanto faz de gente aparentemente “perdedora”, como alguns gostam de dizer, vencedores da guerra mais difícil de ganhar, e que se trava dentro de cada um.




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Prêmio BLOG VIP concedido por Maria Teresa do blog Ouvindo meus Botões.


Obrigada, Maria Teresa!
O Bem, o Mal e a Coluna do Meio agradece todo contente.  Estão todos convidados a visitar o Ouvindo meus Botões, e garanto que vão gostar!

Manda o regulamento que se escolham dez blogs para repassar o selinho e o prêmio. Acontece que sou ruim demais no que diz respeito a regulamentos. Além disso, há muito mais que dez blogs merecendo prêmios por aí, e meus leitores são todos vips. Vou deixar o lindo selinho disponível para quem quiser levá-lo. Caso desejem repassá-lo depois de acordo com os mandamentos do prêmio, fiquem à vontade.

sábado, 27 de fevereiro de 2010

Ser ou não ser, eis o mosaico



Foto Robert Mapplethorpe.
 
Quem pode dizer que está inocente do que acontece a sua volta? Não me atrevo. Nem mesmo posso ter certeza do grau de participação que me cabe em cada acontecimento. Mas que cada um joga seu dadinho nessa grande roleta que é a vida, isso joga sim. Nem me venham dizer que fui a única culpada de tudo que aconteceu a mim ou aos mais próximos, mas é mais que provável que, mesmo sem ter consciência disso, eu tenha atrapalhado a vida de alguém ou dado um empurrãozinho em quem já estava com o pé do lado de fora da janela.

É estranho olhar a vida por esse prisma. É como olhar o mundo através desses cristais facetados, em que as imagens se repetem e multiplicam em ângulos diferentes, cores alteradas, e deixam quem olha fascinado com a diversidade de formas, querendo dar conta de todas elas. É como ver de perto as imagens de Vic Muniz, composições de milhares de imagens mínimas que se perdem na visão de conjunto de cada quadro.

Mas, assim como cada um de meus semelhantes, eu sou um mosaico. Minhas escolhas envolvem fatores e condições que não estavam previstas ou não poderiam ser bem avaliadas antes de se tornarem uma contingência ao vivo.

Quantas vezes quis alguma coisa que deu em outra, errada ou não. Quantas outras vezes acertei em cheio sem querer muito, tateando um pouco no escuro, indecisa quanto ao lado a seguir. Amei alguém que poderia ter sido tudo, e encontrei outro que efetivamente foi tudo. Detestei pessoas que hoje seriam indiferentes e não tiveram qualquer peso em minha vida. Amei gente que não merecia, sofri por causas que não eram minhas, falei mal de pessoas que não eram más, prestei homenagem a quem não valia a pena.

Mas como o que se faz da vida não pode ser o que a vida faz da gente, insisto em ser sujeito de minhas decisões e seguir os rumos que prefiro. Tento amar muito, não sei se sou capaz de querer tanto bem quanto imagino. Tento me realizar no trabalho, mas ainda não encontrei os instrumentos certos – e pior, talvez nas cavernas onde ainda não consegui jogar luz, não queira encontrar. É preciso lidar com as próprias resistências e a idealização, ninguém vive sem elas. Então, se eu disser que sou cem por cento alguma coisa, estarei na certa mentindo. E se quiser aparecer com cara de anjo, vou motivar as pessoas a procurar meus cascos de coisa ruim. É da sabedoria popular: ninguém acredita em auto-elogio. O povo sabe das coisas.

sábado, 20 de fevereiro de 2010

A cidade é a terceira casa


Começa por uma casa, primeiro espaço, interface com o mundo. O primeiro móvel de que se tem memória, os pratos com aquelas figuras engraçadas, a cortina que fazia um barulhinho quando corria. Lá estavam os retratos dos parentes que a gente não conheceu, os primeiros livros, as histórias que a vó contou. Primeiras imagens, comidas, rostos e as paisagem da janela.
Depois se vai mais longe: a pracinha, os brinquedos e as calçadas, carros, árvores e postes, prédios de nossa rua e de outras ruas, muros, flores de um jardim. Logo se chega à escola, pátios, tombos, salas e colegas; os primeiros amigos, recreios e correrias, a merenda, a cantina e a viagem de volta com aquela mochila velha de guerra. A parada no caminho, a brincadeira na rua, chegadas e saídas. As idas ao médico, ao dentista, ao cinema, e logo o shopping, o carro do pai, as casas de amigos.
Repetimos nossos caminhos – a rua que gostamos de olhar, aquele prédio onde mora uma amiga, um garoto que nos olha diferente, o vizinho, o conhecido do pai ou da mãe. A pé, de bicicleta, na condução, as pequenas mudanças na paisagem, uma árvore cortada, uma trepadeira que se encheu de flores, uma obra na rua, o lugar onde outro dia um cachorro foi atropelado, a calçada onde uma velhinha caiu e ralou os joelhos. Da casa ao bairro e a outros bairros, caminhos aos poucos ampliados; parques e brinquedos desconhecidos, e visitas tios, primos, festas e compras.
O primeiro namorado, a cidade transfigurada, os lanches inesquecíveis, os cinemas de mãos dadas, o primeiro beijo, e descobrimos novos lugares, o restaurante do outro lado da cidade, os passeios longe de olhos indiscretos.
Da casa da infância passa-se à segunda, que é o bairro, e chegamos à terceira, a cidade, que decoramos, percorremos a cada dia, vamos reconhecendo como nossa, cada vez mais longe, e da qual saímos rumo ao mundo, quem sabe, outros países, pessoas que falam diferente, caras estranhas que aprendemos a reconhecer e até a amar.
É bom cuidar da casa, do bairro. É bom pertencer a um lugar. É bom amar a cidade onde crescemos e aprendemos a interagir com o mundo, com os outros. Compete a nós cuidar desse lugar que nos acolhe na volta de cada viagem, ainda que tenhamos passado anos longe. Sempre uma alegria voltar às origens. Não é propaganda eleitoral, não. Só estou nostálgica de um Rio que vai pouco a pouco se perdendo. Tenho medo que ele deixe de existir.

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

Nosso passado no Caribe





Como disse Ítalo Calvino em abençoadas palavras, as cidades se parecem muito com as pessoas. Umas são briguentas, irritadiças e perigosas. Algumas comem em excesso, algumas são rancorosas e outras existem que de tão lindas atraem muita gente, o que complica suas vidas e lhes tira o sossego. De risonhas paisagens, no entanto, parecem estar sempre de bom humor, dispostas a viver a vida até as últimas conseqüências. Acredito que o Rio de Janeiro esteja entre estas, sempre assolado por gente de todos os tipos e latitudes. Muitas dessas gentes não têm onde morar, não conseguem ganhar dinheiro e acabam engrossando as legiões inadimplentes dos moradores de favelas e bairros esquecidos de Deus e dos políticos depois que passam as eleições.
Diferente desse estatuto migratório e social, Havana é também uma cidade vital, alegre por natureza, embora não tão explicitamente quanto essa urbe sem superego que é o Rio. Superegos à parte, havaneses e cariocas têm em comum um passado colonialista quase fatal, a simpatia, o misticismo de raízes misturadas, o calor humano, a sensualidade e o jeitinho que quase tudo consegue, permite e encobre. Não é pouca coisa. Não depende de normas ou medidas governamentais.
Mas há um estágio desses dois povos que se encontra fora do tempo oficial, e que aqui no Rio tem hoje um sabor de coisa antiga que a gente vê em fotos cor de sépia e que as gerações chegadas depois dos anos 70 não testemunharam. Em Havana, ao contrário, essa fase perdura há décadas sem previsão de mudanças a médio prazo. O fato a seguir, narrado por um turista norte-americano, mostra que é forte o bastante para marcar uma semelhança fraterna, ainda que assimétrica, entre as histórias privadas de nossas cidades.
O turista em questão conta que seu despertador parou de funcionar quando estava em Cuba. Pensou em comprar outro no dia seguinte. Perguntou à dona da casa em que se hospedara onde encontrar uma relojoaria pelas imediações, mas a mulher abanou a cabeça sorrindo. “Não seja bobo. Pra que comprar outro? Leve o despertador a um relojoeiro aqui perto, ele conserta e pronto.” Mesmo sem fazer muita fé, o turista fez o que ela dizia. Entrou numa das lojas do ramo nas imediações e alguém lhe indicou uma bancada de madeira bem gasta, iluminada por uma lâmpada poderosa e coberta de ferramentas e instrumentos do ofício, diante da qual um profissional trabalhava, os olhos protegidos da luz por uma pala preta. O turista, um engenheiro americano, identificou quase todos os instrumentos espalhados sobre a mesa. O homem pegou o relógio de sua mão e o examinou curioso. “Nunca tinha visto um desse tipo”, comentou com grande interesse. Depois o depositou na superfície a sua frente e habilmente checou a bateria, removeu o miolo, os pinos, olhou tudo cuidadosamente e tornou a montar o mecanismo. Nada. O relógio continuava parado. O homem refez a manobra toda, ainda mais atentamente.
Dez minutos depois, o engenheiro, acostumado ao pragmatismo que o mercado cultiva com afinco e eficiência em proveito próprio, perguntou se não seria melhor desistir, e tentou convencê-lo de vez oferecendo-lhe de presente as peças de novo dispersas sobre a bancada. Disse-lhe sorrindo que não perdesse seu precioso tempo com aquilo, não valia a pena. Já ia se despedir do relojoeiro e voltar à porta da oficina, mas o homenzinho o olhou com um misto de espanto e leve indignação. “Como assim, desistir? O senhor não trouxe seu relógio para consertar? Estou aqui para isso. É com isso que ganho minha vida, fui treinado para consertar qualquer relógio, e mesmo esse, um pouco diferente dos outros que conheço, pode ser consertado. Palavra de profissional.” O turista ficou calado, respirou um pouco mais fundo e resolveu esperar. Percebeu que estava ferindo os brios do homem e que, além disso, ele jamais compreenderia que o dono de um objeto passível de conserto se dispusesse a gastar mais dinheiro comprando outro. Recostou-se pois à lateral da bancada e ficou olhando.
Se fosse um natural da terra, com certeza iria tomar um trago na esquina e aproveitar o tempo olhando as mulheres que passavam ou fumando um cigarro. Mas não era, e sofria dessa retidão esterilizante dos homens pragmáticos, que não sabem gozar as aparas de liberdade que o tempo às vezes nos oferece de graça. Ficou portanto ali durante quase meia hora, comprazendo-se em ver e rever tudo que havia na oficina, concentrado na destreza do relojoeiro, o qual, tendo montado e desmontado as peças vezes incontáveis, soltou um grunhido de discreta satisfação. “Achei”, anunciou sorridente. “Entrou um tiquinho de umidade na máquina e ela emperrou.” Remontou o relógio em poucos segundos e o pôs a funcionar diante do dono. Tudo em ordem: bateria, mecanismo com movimentos regulares, ponteiros deslizando sem problemas, alarme em absoluto sincronismo e sonoridade. Cobrou sete pesos – trinta centavos de dólar. “Foram os 30 cents mais divertidos que deixei em Cuba”, diz o americano, até hoje encantado com o episódio, recomendando que ninguém deixe de recorrer aos maravilhosos profissionais em que o país é pródigo, “só pelo prazer de ver seus objetos sendo consertados por esses experts”, além de aprender ao vivo o valor que podem ter as coisas usadas e vislumbrar o enorme potencial de reciclagem que deve existir no mundo desenvolvido, onde há muito mais o que consertar.
As cidades vivem simultaneamente em tempo diversos. Talvez Havana seja nosso passado morando numa ilha do Caribe. Porque já vivemos nesse tempo em que a maioria acreditava que as coisas usadas têm um valor intrínseco e é sempre melhor consertá-las quando é preciso, porque sai mais barato; porque os objetos quase sempre são para seu dono algo que escapa à visão do deus burro, ávido e imediatista que é o mercado; porque é útil para o povo que haja espaços de trabalho tão acessíveis como os de relojoeiro, sapateiro, costureiros sem grife, profissionais que podem viver de seu trabalho sem pedir nada a ninguém e sem precisar de formação acadêmica.
Pode ser também que o turista americano tenha sido tocado de modo decisivo por algo de que ele nem ousou se aperceber claramente, porque não lhe é familiar a não ser talvez mediado pela assepsia de palavras impressas ou imagens projetadas: a poesia do obscuro, do dia-a-dia sem glamour, do velho neo-realismo italiano ou dos romances russos.
Um estado de espírito que já vivemos intensamente, e subsiste apenas em uma faixa cada vez mais estreita da classe média baixa. O resto há muito já embarcou naquele trem de pobres festivos, consumistas e encalacrados, que preferem constar de todos os serasas da vida a cair de novo no limbo de uma vida sem dívidas e sem tevê de 29 polegadas.

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

O Deus dos leigos

Vista da cidade de Mariana, MG.
 
 
Não me considero autoridade no assunto. Nem por isso no entanto deixo de refletir sobre as religiões, um tema universal, que nenhuma cultura ou civilização deixou de lado.

Sempre tive grande dificuldade de acreditar, não propriamente em um Deus – “o Deus”, como dizia Clarice – mas no que alguém chamou com propriedade de os amigos dele. Para mim, todas as religiões são verdadeiros obstáculos a esse sentimento reconfortante que é a fé. Dogmas, promessas de castigo eterno e coisas no gênero me parecem muito mais um discurso humano do que divino, ao menos no que se refere ao único Deus que consigo imaginar. E na verdade, as religiões, todas ou quase, vivem e prosperam sobre os fundamentos da ameaça e de uma forma de chantagem – ou você acredita e obedece, ou – e lá vem ira divina, cólera do todo-poderoso e frases aterradoras tiradas do antigo testamento. Frases escritas por homens dos quais se afirma terem sido inspirados por uma luz divina.

O que me parece mais cruel nas religiões é a invasão da liberdade individual e, acima de tudo, a exploração do que há de mais vulnerável na natureza humana – a falta que todo homem carrega consigo vida afora, e o leva a se apegar a qualquer pessoa que lhe pareça apta a preenchê-la. Essa incompletude, a sensação de abandono, o medo da solidão e seus derivados deixam o homem à mercê de quem souber tirar partido deles. Todo homem é um indigente afetivo, incluindo os que se julgam mais espertos, se aproveitam da fraqueza dos outros e depois têm que conviver com a culpa e o medo de sanções. Encontramos gente assim em toda parte. Conhecemos esses seres confusos e escorregadios, que precisam viver sempre alerta para não serem apanhados em flagrante nas ações que sua esperteza os impele a cometer.

Sei bem que dentro de cada religião existe gente sincera e sensível, gente que chega a ser abnegada por dedicação genuína ao próximo. Fui educada dentro de uma religião, frequentei a igreja durante minha infância e juventude, participei de atividades das quais nunca me arrependi. Mas a gente amadurece e aprende a ser um pouco mais crítica em relação aos acontecimentos e ao comportamento das pessoas. Uma religião institucional, por mais respeitável, abre muitas brechas para a impostura, a hipocrisia e o preconceito. Das menos respeitáveis, essas que se inventam da noite para o dia, nem é bom falar. Mesmo porque, quase sempre o mau caráter de seus fundadores e arautos fala por elas.

Por tudo isso, e porque a gente sempre se sente um pouco órfã em relação a esse Deus que é mais um desejo intenso do que uma crença tranquilizadora, o poema do catalão José Palau mexeu comigo. Porque ele diz exatamente o que eu gostaria de ter dito, se escrevesse um poema a esse respeito. Ao menos pela beleza das palavras e das frases, que falam dessa humana necessidade de alguém maior em quem se possa descansar a certeza da plenitude.
  

Canto espiritual


Não creio em ti, Senhor, mas tenho tanta necessidade de crer em ti, que muitas vezes falo e te imploro como se existisses.
Tenho tanta necessidade de ti, Senhor, e de que sejas, que chego a crer em ti – e penso crer em ti quando não creio em ninguém.
Mas depois desperto, ou me parece que desperto, e me envergonho de minha fraqueza e te detesto. E falo contra ti que não és ninguém. E falo mal de ti como se fosses alguém.
Quando, Senhor, estou desperto e quando adormecido?
Quando estou mais desperto e quando mais adormecido? Não será tudo um sonho e eu que, desperto e adormecido, sonho a vida? Despertarei algum dia deste duplo sonho e viverei, longe daqui, a verdadeira vida, onde sonho e vigília sejam uma mentira?
Não creio em ti, Senhor, mas se és, não posso dar-te o melhor de mim a não ser assim: senão dizendo-te que não creio em ti. Que forma de amor tão estranha e tão dura! Que mal me faz não poder dizer-te: creio.
Não creio em ti, Senhor, mas se és, tira-me deste engano de uma vez.
Faz-me ver bem a tua cara! Não me queiras mal pelo meu amor
mesquinho. Faz com que, sem fim e sem palavras, todo o meu ser possa dizer-te: És.


José Palau, poeta catalão, traduzido por Augusto de Campos.