quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Os gatos




Consultava o céu estrelado sem saber bem o que esperaria ver além das estrelas e dos insetos que costumam cruzar as janelas em setembro. A escuridão por si só não explicaria aquela intensidade que a fazia vibrar como as cordas graves de um violão. Não esperava ninguém, e no entanto toda se voltava para um personagem poderoso do dia que agora dominava sua noite. Não se espantava de ouvir gritos lá fora, gemidos como queixas a atravessar o tempo. A lua estava distante, quase sumida no horizonte.
Os gritos dos gatos no jardim a atravessaram. Sempre pensara que a voz dos gatos da noite os transcende, faz deles mais que simples gatos: mesmo no caso dos gatos, o desejo é capaz de criar muito mais do que gatinhos. Sabia o fogo que os consumia – favos retirados da colméia escorrendo no meio da noite bruta. Os gatos lhe haviam feito muito medo na infância porque não conseguia entender o fascínio que lhe causavam. Agora podia conviver com eles na intimidade, pulsar com eles, buscar os frutos que a noite lhe traria se apenas consentisse em se perder. Os gatos cantavam a morte antes de germinar.
A escuridão protege formas que ninguém vê à luz do sol. Naquela noite em particular, adivinhava movimentos e atividades ocultos pela treva a sua volta, mas não queria acender as lâmpadas, porque nesses momentos tinha a sensação de ser uma polpa intensa e perfumada, um fruto da noite suportando seus delírios, e muda viajava nesse terror secreto que antecede o gozo.
Um sonho lhe havia mostrado mais que imagens enigmáticas: ela as reconhecia nas incertezas do futuro. Sabia que estava a ponto de criar outro rumo para sua vida – e na verdade já traçava esse rumo na fantasia. Mas relutava em deixar que a imagem daquele homem se instalasse de vez no olho do pequeno furacão que se armava, porque com isso estaria mergulhando – quem sabe – no mar em que se afogaria. Secretamente estremecia em seu claustro de semente, sabendo que nada a justificaria senão a perda.
Os gestos se alteravam, levava as mãos em concha até a boca e soprava dentro delas para testar o hálito que ele lhe sentiria, e por um segundo esse hálito não foi o seu, mas o do outro ainda oculto. O desejo dele se fortalecia, atravessava seus caminhos, exalava pelos poros e a escravizava. Pulsava imóvel, fixando a nesga de céu que podia alcançar por sua janela aberta, e sabia o que esperar, mas não até quando. Não ia demorar. Os seios intumescidos, uma ânsia em febre que a retorcia, chegaria antes do desejado, pelo sumo que se permitia, sugando os dedos na delícia atroz dessa noite de espera sem chegada. Bem sabia, ia chegar sozinha.
Começou a sentir náusea pela escuridão riscada de gritos que a deixavam no cio, que a atingiam como pedaços de vidro vindos de longe a cortar sua carne.
O corpo lhe escapava. Um futuro oblíquo já penetrava em seu sangue e se confundia com sua própria pulsação. Não havia mais como mantê-lo à distância. Não queria, não ia ficar sozinha para se deixar resvalar na metade muda de um prazer vazio. Ele estava ali como um ser da noite, na certa pensava nela naquele momento e a queria também. Abandonou então sua própria vertigem à vertigem do desejo dele e deixou que aquele homem secreto a cobrisse e lambesse no pescoço, nos seios, na bunda, na barriga que se arregaçava para que seu falo rijo entrasse e se esfregasse lá dentro entre suas pernas até tocar no mais fundo que a fazia gritar de gozo; que magoasse sua carne macia com as mãos pesadas, apertasse suas coxas até deixá-las marcadas de seus dedos e sugasse suas partes doces e cheirosas, mordesse seus seios e derramasse seu caldo quente dentro dela duas, três, quatro, as vezes sem conta em que toda desabrochou por suas mãos, querendo morrer de tanto gozar por todo o corpo sobre o lençol molhado que os vestia.
Quando o sol a despertou, viu no travesseiro do lado a marca côncava da cabeça dele. Sentia ainda o calor de seus membros sobre seu próprio corpo.

2 comentários:

césar disse...

Gostei do conto, Dade!

Beijo

Tania regina Contreiras disse...


Ah, muito bom! Na prosa e na poesia, brilha!

Beijos, Dade.