sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

Sutilezas

                                       Imagem Cézanne. Vaso de flores.

Não há como fugir: os dias são diferentes, mas iguais no que se sucede – manhãs tardes noites madrugadas horas batendo martelo nos segundos. Os dias são como um leilão do que você quer mas só vai levar se perceber a música do martelo.
As cores mudam, porém, tanto as do céu como as do coração, e os tons são inacreditáveis, de uma pessoa para outra e até para a mesma. As diferenças na mesma pessoa são mais claro-escuro, ton-sur-ton, porque o fundo é meio repetitivo mesmo, fazer o quê? Cada um se faz repetitivamente recaindo no refazer do que mais procura evitar. E quando o sol aparece, por causa desse estado de mesmice aparente, pode dar a sensação de que tudo está igual. Mas até o sol tem matizes e variações, é só prestar atenção para ver: o sol não mostra sempre a mesma face, e às vezes está furioso e queima com raiva, mas às vezes acaricia a pele que nem homem enamorado.
As diferenças de uma mesma pessoa se devem a que os poros deixam entrar sempre o que lhes interessa mais. Além disso, o nunca tem muitas frestas. Se digo “nunca”, na mesma hora meus poros se abrem. Daí advém toda contradição do ser humano, e também suas repetições inesgotáveis e seus melhores prazeres.
Os dias podem parecer iguais naquilo que os outros exigem da gente.
A coisa acontece assim: a gente se repete e recai e refaz o que já andou fazendo a vida toda. Quem vive a nosso lado também recai e repete. Quando alguém refaz seu refazer e ressoa em nossa alma como repetição, é a rotina. A rotina não é o que eu faço, mas o que os outros querem que eu faça, e eu faço, repetindo – não o que eu quero e repito por minha própria conta, porque é meu e é como eu sou, mas o que os outros querem que eu refaça por eles. Nisso consiste o poder de uma pessoa sobre a outra: ser capaz de ressoar sua própria repetição no outro. E quanto maior o poder, maior o número de pessoas a refazer a repetição do poderoso. O que obviamente não é justo nem salutar para ninguém.
Quem apenas ressoa o que o outro repete e o refaz sem conseguir deixar de refazer é um candidato a passa humana. Quem não se libera da gaiola da repetição do outro, é pássaro morto dentro da gaiola sem ninguém para chorar por ele. Quem não olha em volta e procura sintonia para ouvir melhor a música do outro, chama-se submisso e nem merece muito que se chore por ele.


7 comentários:

Juci Barros disse...

Me emocionei... Lindo!
Beijos.

Tania regina Contreiras disse...

Dade, querida, sutilezas ditas com uma delicadeza e uma perspicácia incríveis. Nuanças de poesia límpida. Escuta aguçada a ovir de outros o som...e a poesia, eu diria, que carregamos todos na alma, de um jeito ou de outro.
Seu texto é um primor. Feito e sentido com delicadeza.
É prazer e grande ler seus textos.
Saudades estava deles.
Beijos

AC disse...

Abrir a porta da gaiola e cantar para a vida tem que se lhe diga.
Excelente texto, Dade!

Beijo :)

Domingos Barroso disse...

uma alma sensível
não apressa o relógio
dança ao som dos ponteiros
e se transforma
...

Que mergulho,
Dade.

Beijo carinhoso.

Zélia Guardiano disse...

Texto lindo, importante, necessário!
Um primor, Dade!
Como tudo que você escreve... Coloca as palavras exatas no cadinho e o resultado é toda essa lindeza que ,constantemente, nos oferece!
Grata, querida!
Abraço apertado
Zélia

Halem Souza disse...

"A rotina não é o que eu faço, mas o que os outros querem que eu faça"

Adorei essa definição!

Dade, tenho andado um pouco surdo; vou ver se apuro a audição para ouvir essa música de que fala.

Um abraço.

o refúgio disse...

Moça, ocasionalmente apareço por aqui (e bote ocasionalmente nisso...) mas sempre silenciosamente. Hoje deu vontade de comentar. Gostei muito do texto.
Beijo