Começa por uma casa, primeiro espaço, interface com
o mundo. O primeiro móvel de que se tem memória, os pratos com aquelas figuras
engraçadas, a cortina que fazia um barulhinho quando corria. Lá estavam os
retratos dos parentes que a gente não conheceu, os primeiros livros, as
histórias que a vó contou. Primeiras imagens, comidas, rostos e as paisagem da
janela.
Depois se vai mais longe: a pracinha, os brinquedos
e as calçadas, carros, árvores e postes, prédios de nossa rua e de outras ruas,
muros, flores de um jardim. Logo se chega à escola, pátios, tombos, salas e
colegas; os primeiros amigos, recreios e correrias, a merenda, a cantina e a
viagem de volta com aquela mochila velha de guerra. A parada no caminho, a
brincadeira na rua, chegadas e saídas. As idas ao médico, ao dentista, ao
cinema, e logo o shopping, o carro do pai, as casas de amigos.
Repetimos nossos caminhos – a rua que gostamos de
olhar, aquele prédio onde mora uma amiga, um garoto que nos olha diferente, o
vizinho, o conhecido do pai ou da mãe. A pé, de bicicleta, na condução, as
pequenas mudanças na paisagem, uma árvore cortada, uma trepadeira que se encheu
de flores, uma obra na rua, o lugar onde outro dia um cachorro foi atropelado,
a calçada onde uma velhinha caiu e ralou os joelhos. Da casa ao bairro e a
outros bairros, caminhos aos poucos ampliados; parques e brinquedos
desconhecidos, e visitas tios, primos, festas e compras.
O primeiro namorado, a cidade transfigurada, os
lanches inesquecíveis, os cinemas de mãos dadas, o primeiro beijo, e
descobrimos novos lugares, o restaurante do outro lado da cidade, os passeios
longe de olhos indiscretos.
Da casa da infância passa-se à segunda, que é o
bairro, e chegamos à terceira, a cidade, que decoramos, percorremos a cada dia,
vamos reconhecendo como nossa, cada vez mais longe, e da qual saímos rumo ao
mundo, quem sabe, outros países, pessoas que falam diferente, caras estranhas
que aprendemos a reconhecer e até a amar.
É bom cuidar da casa, do bairro. É bom pertencer a
um lugar. É bom amar a cidade onde crescemos e aprendemos a interagir com o
mundo, com os outros. Compete a nós cuidar desse lugar que nos acolhe na volta
de cada viagem, ainda que tenhamos passado anos longe. Sempre uma alegria
voltar às origens. Não é propaganda eleitoral, não. Só estou nostálgica de um
Rio que vai pouco a pouco se perdendo. Tenho medo que ele deixe de existir.
11 comentários:
Querida escritora,
Este "lugar" mora em tantos outros lugares espalhados pela nostalgia de cada um.
Li e revivi imensas lembranças; embora a cidade seja outra, muitas das descrições são comuns.
Só te posso agradecer por esse momento. E dizer que feliz é o Rio de Janeiro que tiver alguém como tu a habitá-lo.
Um beijo.
.
.
.
Katyuscia
Realmente o mundo vai mudando e em certo sentido algumas coisas vão se perdendo...mas percebo também que esse fluxo continuo é necessário e até sádio...o que me incomoda mais é a transformação no trato.. a impessoalidade com a qual, cada vez mais, tratam-se uns aos outros, esses nossos semelhantes.
Ps. "Quebrou tudo" nesta trilha sonora aí!! è Charlie Parker ou Jonh Coltrane? Eu adoro Jazz!!
Ah, podem até tentar destruir nossa cidade natal, mas nossa primeira casa sempre permanece, não é mesmo, Dade? Muito sensível este seu texto. Beijo.
E aquela história de que a aldeia é que é universal - cantando-a, falamos para o mundo - é mais que verdadeira.
As ruas, as praças, os becos de São Luís - cheios de histórias e de memórias. Acabo de passear por eles, graças ao seu texto.
E o Rio não vai acabar nunca. São Sebastião não permitiria!
Um fraterno abraço, Dade!!!
Perfeito!
Mais que perfeito!
Como sempre.
Penso igualzinho a você, Dade - o Rio tá fazendo água.
Beijo
Ana Luísa
Belo texto em que as memórias se passeiam... É bom cuidar dos lugares que amamos.
Um beijo.
Foto e texto formando um poema!
Olá Dade!
Perfeito!
se vc puder
Está acontecendo até o dia 07/03
a BlogagemColetiva,
proposta pelo blog http://fio-de-ariadne.blogspot.com
Meu Oscar Vai Para:
Venha conferir e comentar minha participação no:
http://sempretensoesamorcontos&causos.blogspot.com/
Boas energias
Mari Amorim
"O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia,
Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia
Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia."
Sinto o mesmo aqui na "minha aldeia" paulistana.
Beijos
Postar um comentário