quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

A liberdade doente

Os convites para sites de relacionamento e chat, que chegam todo dia no e-mail da gente, em geral vêm em nome de alguém de nossa lista que pode não ser o autor da mensagem. Não são somente os vírus e spams declarados que chegam assim. Vêm em tom invasivo e falsamente descontraído, mas não passam de marketing descarado, já tão incorporado a nosso dia-a-dia que às vezes nem nos damos conta. Por que estranhos a léguas de distância estariam preocupados em nos trazer de volta amigos extraviados ou antigos colegas de escola e de trabalho? Quase sempre o mesmo pretexto para oferecer produtos supérfluos, serviços que ninguém pediu e outras mercadorias perfunctórias, esse tipo de mídia eletrônica onde piscam mil e um patrocínios de construtoras, lojas, hotéis, carros, utilidades, inutilidades, garotos(as) ou amigos de programa, que em certos casos pagam para se ofertar via internet.

Cada vez mais forças externas tentam dirigir os atos que deveriam ser de iniciativa exclusiva de cada um. Isso lembra muito 1984, de George Orwell, ou Admirável mundo novo, de Aldous Huxley. Outro dia, revendo Zorba, o Grego (que filme!), e vendo os camponeses de Creta esperando a morte de Hortense para saquear sua casa, pensava na analogia entre aquela cena e a constante intrusão de empresas e pessoas que insistem em nos convencer de que o melhor para nós é o que eles querem – e eles sempre querem nos passar alguma coisa em troca de nosso dinheiro e/ou nossa submissão para fomentar seu poder.

Por conta dessa luta de interesses, que se disfarça de luta de ideias, este mundo às vezes parece um grande manicômio. O inconsciente coletivo virou um amontoado de noções sem fundamento e preconceitos distorcidos explorados por aventureiros. Diante destes, os sofistas da antiga Grécia eram seres sem malícia. Nos anos 1960 passamos por um período em que as ideologias se digladiavam e geravam debates e contendas sem fim. Agora porém as ideias e visões de mundo chegam aos pedaços, mal assimiladas e achacadas pelo mercado, pelos políticos e por aquele tipo de gente que corre atrás da fama a qualquer preço.

O lado virtuoso da comunicação em tempo real, que chega da televisão e da internet, traz em seu bojo dois vícios capazes de anular grande parte das vantagens de tanta rapidez: a informação chega muitas vezes mal elaborada e quem a recebe na outra ponta quase sempre deturpa seu sentido, por estar mal preparado ou desinformado de dados anteriores, sem os quais a notícia perde seu sentido principal. Diante disso, a mentalidade do público em geral flutua entre juízos precipitados e dúvidas sem resposta; e grande parte das pessoas desiste de entender e se acomoda na alienação, ou então assume uma atitude irracional diante dos acontecimentos.

Talvez tenha chegado a hora de reunir de novo na praça os pensadores, os artistas e o povo, como faziam os antigos gregos na ágora. Quem sabe ainda se consegue plantar em nossas cabeças a semente de uma reflexão sem compromisso com os interesses do dinheiro, do poder e da violência? A liberdade humana é um conceito pouco claro, porque, em qualquer caso, é sempre muito limitada. Mas sem essa reflexão, a liberdade de cada um de nós se reduz a miragem, palavra vazia do vocabulário politicamente correto, e só.

Foto Bey Harrison.

13 comentários:

Gerana Damulakis disse...

Fui guardando várias pontos para comentar, só que, como concordo com tudo, resolvi apenas dizer que o texto está excelente.
E, claro, também acho que deveríamos fazer como os meus ancestrais: todos para a ágora, vamos discutir sobre limites.

jurisdrops disse...

De grande lucidez e propriedade seu texto. De fato fica cheio de neblina o caminho futuro e turvas as chances de opção se se continuar tratando como coisa banal a teletela que atualmente já nasce dentro das cabeças das crianças como estigma.
Grande abraço.

Hazel Evangelista disse...

Querida Dade, o prazer é meu!
Gosto muito dos seus textos!

Beijos mágicos

claudio rodrigues disse...

OI, Dade. A primavera dos LIvros foi realmente muito legal, os temas diversos favoreceram as palestras. E o lançamento do meu livro foi muito bom, com o auto do boi e apresentação do coro Loas e Luas. O livro se encontra na LIvraria da Travessa e na Saraiva. Pode, inclusive, encomendar lá, caso não o encontre. Obrigado!

Anônimo disse...

"Este mundo às vezes parece um grande manicômio??? Permita-me discordar, Dade: ele é um manicômio o tempo todo!

E eu acrescentaria outro problema nessa quase ubiquidade da televisão e da Internet mencionada por você: a perda de sentido histórico; parece que vivemos sempre um "imenso e perpétuo presente", como disse o E. Hobsbawm.

Um abraço.

ALUISIO CAVALCANTE JR disse...

Penso que a grande doença da sociedade atual, é o não pensar.
Propagandas de bebidas trazem pessoas saudáveis.
Uma propaganda de chinelas traz uma avó estimulando uma neta ao sexo livre.
Políticos nos roubam a luz do dia, e oram sobre os corruptores.
Músicas sem letra e sem sentido tomam conta dos nossos ouvidos e mentes.
Por isso o convite ao pensar trazido pelo texto estimula.

Parabéns pela postagem e reflexões.

cristinasiqueira disse...

Passei por aqui em boa hora.Endosso sua argumentação letra a letra,pausas e entrelinhas.
Ótimo blog.Vou te seguir.
E com um tempinho venha me visitar no www.cristinasiqueira.blogspot.com

Beijos,

Cris

Barbara disse...

Muito bem colocada a questão mas confesso que sempre vi (errôneamente talvez) a liberdade como algo interno e só.
A pessoa , os grupos, a civilização desde que existem pessoas, grupos, civilizações, estiveram de algum modo, presos a um, a qualquer esquema que chamamos sistema.
Por sobrevivência, por necessidade de ser aceitável no núcleo social, ou por comodismo não sei.
Não que eu não creia na essência e na importância da liberdade, mas porque estas sempre foram mascaradas de acordo com os poderes - todos - de todos os tempos.
Obrigada e perdoa o pessimismo.

Graça Pires disse...

Um texto cheio de ideias lúcidas, com as quais estou de acordo.
Um beijo.

L. Rafael Nolli disse...

Gosto de sua lucidez. Uma análise interessante desse mundo cada vez mais rumando para o futuro orweliano. Me tirou do mundo da memória o livro "O Vidiota", que trata desse tema de forma inteligente. Abraços.

Lord Broken Pottery disse...

Dade,
Tenho o mesmo tipo de inquietação que você. O mais grave, porém, é que na hora de reunir os pensadores ficará difícil. O pior do cenário real que você apresenta, é que ele diminui a capacidade que as pessoas têm de pensarem, limitando-as demais. O futuro será muito pobre intelectualmente, pelo menos em termos de um conhecimento mais sensível, elaborado, fora dos bits e bytes.
Beijo grande

Paulo Tamburro disse...

Parabéns, belo texto.

Se me permite, no livro do sociólogo americano que deu certo nas suas prospeçãões de cenários futuros - pois o outro Herman Khann não deu - você necontrará extamente, estudos intensos sobre a sua matéria.

O nome do livro é o "Choque do Futuro" e extraordináriamente bem elaborado.

Nesta oportunidade, convido que dê um pulinho ao meu blog de humor:HUMOR EM TEXTO.

COMO VOCÊ TAMBÉM, MORA NO RIO, QUEM SABE ACHE GRAÇA DE ALGUMA COISA(RS).

Os outros dois blogs são:FOTOFALADA E COMO ERA FÁCIL FAZER SEXO!

Voltarei sempre aqui, é preciso ler tudo .

Um abração carioca!

Eduardo Santos disse...

Olá amiga. Passei para conhecer melhor o seu espaço. Gostei da abordagem dos temas, excelente a sua visão sobre os assuntos. Será com o maior prazer que espero voltar. Tudo de bom, são os meus votos.