terça-feira, 3 de novembro de 2009

De dentro para fora


Monet. Lilases.


Sabe quando você está quase dormindo, naquele estado beatífico de entregar o corpo à cama depois de um dia de trabalho, e de repente começam a vir à tona fragmentos de coisas, pessoas, palavras, lembranças do dia que passou, da véspera, de um acontecimento qualquer que arrastou consigo um monte de referências como uma onda carrega conchas, areia, bolinhas de frescobol, siris sobreviventes ou brinquedos? São imagens, poeira do dia ou dos dias mais recentes ou mais marcantes, tudo misturado, porque a memória reconhece mas não respeita a ordem cronológica nem qualquer outra. São ciscos que os ventos do dia deixaram em nossas janelas interiores e o sono, com sua forma peculiar de atenção, registra e recolhe.

E como é assimétrica a percepção do sono! Não conhece limites nem conveniências; nada censura. Não tem lógica, mistura tudo sem cerimônia e dá nomes trocados às coisas. Nesse estado de quase-sonho, assim como no sonho mesmo, o mundo é diferente. Os sentimentos, as emoções, as sensações vêm num estado mais puro porque estão concentradas. De olhos fechados, sem ouvir outros sons nem ver outras imagens senão os que vêm de dentro de nós mesmos, vivenciamos esse mundo interior de um modo privilegiado, que a atenção dispersa da vigília não permite. Descemos ao paraíso ou ao inferno sem interferências do exterior.

O mundo da semivigília e do sonho, regido pelo desejo ou pelo medo, é pura delícia ou puro terror. Prazeres e angústias passeiam soltos pelos corredores de nosso labirinto e se expressam de um jeito insólito, às vezes muito estranho, que é preciso decifrar depois, à luz do sol, com a ajuda da razão. E às vezes são extremamente produtivos; dão dicas decisivas para a solução de problemas que nos pareciam confusos demais. Apesar de não agirem de acordo com a razão, usam nossa teoria, nossa prática, os conhecimentos que armazenamos pela vida afora, e sabem fazer uso dessas aptidões de um jeito que nos surpreende. Assim um cientista encontra a resposta para uma fórmula que não funcionava, artistas têm intuições fundamentais, negociantes são dotados de insights salvadores. Poetas recebem poemas praticamente prontos, como médiuns recebendo entidades, com linguagem própria. O pintor percebe a tonalidade que estava faltando para dar o toque final em sua obra.

Apesar de crenças e doutrinas, tenho a impressão de que é esse mundo interior que os místicos buscam em suas meditações e jejuns, os intelectuais tentam acionar em suas pesquisas e elaborações, os atores põem em movimento quando fazem laboratório para desempenhar seu personagem e os técnicos de esporte querem atingir durante a concentração de seus atletas. É a irrupção dessa matéria interior e o modo como aprendemos a lidar com ela que nos permitem criar, agir e atuar com maestria e eficiência em nosso ambiente de trabalho, de família, nos relacionamentos.

Quando começar um outro ano – outra fatia do tempo que se convencionou racionalizar desse jeito para vagamente poder fazer uma idéia do que significa o tempo maior, onde se move o universo que nosso conhecimento não consegue abranger – talvez seja o momento de maior motivação para pensar nessas coisas. Mas pode se pensar nelas a qualquer momento. Calendários e relógios são artifícios criados para nos orientar à nossa própria medida, marcadores de um tempo possível durante seus 365 dias de 24 horas, dividido em semanas de sete dias e 12 meses de cerca de 30 dias cada um.

Terminar um ano é como deitar pra dormir: relaxamos e começamos a sonhar, a lembrar de tanta coisa e de tanta gente. Já não temos a obrigação de tomar as rédeas desse tempo que se foi e nos libertou de sua carga. Por pior que tenha sido, o ano que termina liberta nossos sonhos para prever, acreditar, esperar – desejar sem censura. E mesmo que o ano tenha sido esmagador, tenha trazido muita dor, traumas, angústias em dose insuportável – e decepções, com toda certeza, para quase todo mundo que leu jornais e viu o espetáculo deprimente oferecido por nossos políticos e homens públicos –, mesmo assim ainda temos licença de sonhar. Podemos usar essa licença de um modo trivial, fingindo que a lentilha vai nos trazer fortuna, o vermelho uma paixão inesquecível, as uvas, os pulinhos por cima das sete ondas e as flores para Iemanjá serão eficazes e benéficos.

Dá para entender por que o ano novo é uma espécie de carnaval para tanta gente. Tem tudo a ver: ambos são, como o sono, tempos de suspender a dura realidade e acreditar que o sonho tem poder sobre ela. Ambos soltam a imaginação e a fantasia – que são os sonhos da vigília – e permitem retocar e atenuar as lembranças ruins e dolorosas, os desamores e os medos, e sair dando vivas à vida, trocando beijos e abraços. Grande invenção essa de fatiar o tempo e domesticá-lo.

Cada um sabe exatamente o que mais o incomoda, o que está precisando de mudança, o que o impede de ser ele mesmo de um modo mais pleno. É uma boa hora para refletir um pouco, e acima de tudo tratar de entender melhor a si mesmo e aos outros, ir um pouco além da mera simpatia e ver o outro com olhos de empatia, sem medo de amar, mesmo sabendo que amar é para os fortes.

6 comentários:

Anônimo disse...

Adelaide, que bom que voltaste!

E eu já vou sendo cri-cri...

Seu texto, como sempre, é delicioso - adoço pra depois amargar - mas (e sempre tem um "mas") fiquei encasquetado com este trecho:

"um cientista encontra a resposta para uma fórmula que não funcionava, artistas têm intuições fundamentais, negociantes são dotados de insights salvadores. Poetas recebem poemas praticamente prontos, como médiuns recebendo entidades, com linguagem própria. O pintor percebe a tonalidade que estava faltando para dar o toque final em sua obra

Será mesmo? Eu duvido um pouco. Todos os grandes pensadores e artistas que admiro (ou pelo menos a maioria deles) eram adeptos da "vigilância". Acredito mais no esforço racional, consciente, do que no poder do "onírico"...

Um abraço.

Janaina Amado disse...

"Sabe quando você está quase dormindo, naquele estado beatífico de entregar o corpo à cama depois de um dia de trabalho, e de repente começam a vir à tona fragmentos de coisas, pessoas, palavras, lembranças do dia que passou, da véspera, de um acontecimento qualquer que arrastou consigo um monte de referências como uma onda carrega conchas, areia, bolinhas de frescobol, siris sobreviventes ou brinquedos?"
Sei, sim, Dade. Adoro a vigília. É meu momento de criação. Que bom que você voltou! :-))

Mauro Castro disse...

Passando para por a leitura em dia, Adelaide. Nada como um sábado chuvoso...
Há braços!!

Barbara disse...

EXCELENTE POSTAGEM E COMENTAR SERIA ATÉ UMA PROFANAÇÃO .

Gerana Damulakis disse...

Que bom que você voltou a escrever aqui seus textos tão instigantes. Eu adoro o estado "em cima do muro", nem nos braços de Morfeu, nem com os pensamentos concentrados apenas em certa preocupação.
Muito bom encontrar um texto novo.

luís filipe pereira disse...

"de dentro para fora": soberbo texto fecundado pela interessantíssima reflexão à volta do Espaço interior". Entrei no texto como se mergulhasse numa câmara magmática.Segui pela "assimétrica percepção do sono" e acedi, entre lavas e "ciscos", às "janelas interiores" ao rés do "quase-sonho". o chão da exterioridade estremeceu. então regressei ao lugar que sou, ao que em mim fica, umbilicalmente atado, como numa casa erigida por dentro dos "corredores de nosso labirinto".

meus genuínos parabéns pelo excelente texto.
saudações literárias, luís filipe pereira