quarta-feira, 30 de setembro de 2009

Em casa?

Será que todo mundo se sente “em casa” na própria casa?

Penso nas casas onde falta quase tudo, nessas casas de tábuas ou de taipa, no interior mais abandonado, onde se come e se dorme mal, sem qualquer conforto, onde a seca ou a enchente são motivos de pânico, porque os moradores sabem que podem perder o pouco que conseguiram. Onde o trabalho pesado e sem retorno, o frio ou o calor devastam os corpos. De onde às vezes é preciso migrar em busca de um clima onde se possa viver. Ou então nas casas de tijolos expostos das favelas de nossas cidades, sem esgoto, sem espaço, onde as ruas são muitas vezes escadarias de degraus desiguais e os ratos passeiam livremente. Onde se vive com medo do vizinho ou da polícia, que significam risco de perder alguém ou de perder a própria vida. Pontes e viadutos também podem servir de casas para famílias inteiras, que na certa não entendem “sentir-se em casa” do mesmo jeito que aqueles que moram entre paredes sólidas e contam com fechaduras de segurança e janelas herméticas para afastar o barulho e a sujeira das ruas.

Sei que “sentir-se em casa” evoca um número quase inesgotável de imagens bonitas, doces, românticas e cálidas. É estar no quarto, em repouso, diante do programa predileto da tevê ou vendo um bom filme, lendo um livro escolhido; é estar na casa do amigo querido, bem recebido, embalado por uma conversa alegre, descontraída, tomando um bom vinho; é estar nos braços de quem se ama, o coração livre, solto para expressar e receber amor. É reunir a família em torno da mesa, trocar as impressões do dia, dar boas notícias, ouvir a piada mais divertida da semana, curtir os filhos, os netos, estar satisfeito com o que realizou na vida. Esse é um tipo de alegria muito lícita, uma felicidade que todo ser humano mereceria viver. E no entanto, não é dada a muitos, talvez apenas a uma minoria. Em parte porque os bens materiais não garantem que alguém se sinta “em casa”, às vezes é o contrário: muito dinheiro pode ser motivo de ansiedade, medo e desconfiança, discórdia na família e traições entre os associados. E em parte, porque mesmo possuindo todo o necessário, há pessoas que simplesmente não conseguem relaxar, e nunca conseguem se sentir em casa. Nem mesmo... em casa.

No entanto, nem todos os desfavorecidos da fortuna são infelizes. Há pessoas extremamente pobres, que dão um duro desmedido e vivem como se diz “da mão para a boca”, mas têm alegria, conseguem agregar uma família, têm um círculo estável de amigos. Não parecem sentir-se aterrorizados pelo futuro incerto. São estimados no trabalho, riem com facilidade, interessam-se pelos outros, têm bom humor. Estão longe da segurança econômica ou do conforto físico. Mas constroem seu ambiente de modo acolhedor, inventam jeitos de driblar a carência, gostam do pouco que possuem e tiram o melhor proveito possível de todas as oportunidades. Eu diria que eles se sentem “em casa” no mundo.

Acho que é nisso que os seres humanos mais se aproximam, não importa se ricos, pobres ou remediados: sentir-se em casa no mundo. É isso que pode conferir algum carisma, que torna uma pessoa capaz de despertar sentimentos de amor, amizade ou simpatia. A boa notícia é que isso também se aprende. Para começar, aprender a relaxar fisicamente, para que o bem-estar possa vir à flor da pele. Feito isso, olhar as pessoas com vontade de compreendê-las, conversar, querer o melhor para si e para os outros.

12 comentários:

fernanda sal m. disse...

Eu senti-me em casa, aqui e agora.
E é raro sentir-me em casa fora da «minha casa», dentro da casa...
Um abraço.

Janaina Amado disse...

Esta imagem é da sua casa? Se for, é lindo.
O sentimento de deslocamento no mundo, de nunca sentir-se em casa, é horrível. Já o tive, durante anos. Agora sei que são várias as minhas casas. :-)
Beijo!

claudio rodrigues disse...

OI, obrigado por me encontrar na blogosfera e postar um comentário. Seus textos são ótimos. Virei por aqui mais vezes.

Gerana Damulakis disse...

É isso mesmo, o importante é "sentir-se em casa", que equivale a estar de bem com a vida.

Adriana Riess Karnal disse...

DAde,
Gostei muito do texto porque sempre gosto de pensar na casa como um lar. em inglês há muita diferença entre house e home...eu adoro estar em casa, mas realmente há os q não tem uma casa decente, há os q sofrem a enchente, há os q nem no mundo estão em casa,,,estes são os piores...dá muito o que pensar...

Janaina Amado disse...

Dade, bom domingo! Vim aqui pra te dizer que a Cia das Letras publicou uma antologia poética ("Poesias Escolhidas", creio que se chama) da Sophia de Mello Breyner. É pouco, deveríamos ter muito mais publicações desta grande poeta aqui. Você chamou atenção para o fato.

jurisdrops disse...

Olá: De fato, a casa é espaço terno aqui, aí, lá, no meio do bem, do mal e da coluna do meio. Gostei bastante de seu espaço, dos arcanjos de carinha lambuzada de doce. Abraços.

Barbara disse...

A família mais contente , mais autêntica que conheço, vive em um terreno em comunidade pobre, onde cada um foi trabalhando e construindo suas casinhas.
Tal família é liderada pela matriarca Dona Tininha, que mal sabe ler e escrever mas mesmo assim, escreve e lê como pode, devagarinho, tem sempre um semblante maravilhoso e que cativa a quem chega perto.
Toda rara vez que vou até lá, dá vontade de pedir prá eles me adotarem.
Questão de uma sabedoria instintiva, intuitiva de um grupo , que soube captar e receber o tanto de amor que sai daquela senhora.

sueli aduan disse...

Adorei seu texto, parabéns!

"Eu quero uma casa no campo
Onde eu possa compor muitos rocks rurais E tenha somente a certeza
Dos amigos do peito e nada mais
Eu quero uma casa no campo
Onde eu possa ficar no tamanho da paz"... Elis Regina

penso que é isso que importa a paz, os amigos..a família..

Lais Castro disse...

Lindo texto Dade. Eua gradeço todo dia por ter uma casa de paredes sólidas, como diz você, sobretudo quando sei e vejo, a cada dia, que tem tanta gente que não tem um teto...
Eu me sinto em casa... em minha casa e no mundo!
Felicidades para ti.

Barbara disse...

A casa em que eu me sentiria bem não existe.
Porque eu me sinto estranha o tempo todo mas, SE eu fosse ou pudesse construir uma, seria como a do personagem gordão barbudão que é um professor na escola do Harry Potter.
Em pedra, redonda, com um bosque em volta.
Assim.

antonior disse...

De facto tudo isso se aprende e cultiva. E tanta coisa depende disso. Estarmos "em casa" dentro de nós, no convívio com os outros, faz que estajamos em casa no mundo e que este possa ser uma casa acolhedora para todos.