quinta-feira, 21 de maio de 2009

Pequenos nadas

...
se vieres à minha procura
vem devagar e suavemente para não quebrar a porcelana da minha solidão.
Sohrab Sepehry. Irã, 1928-80.


Outros além do poeta iraniano já disseram, em palavras diferentes, que abordar uma pessoa não é para qualquer um. A começar pelo modo como se acorda quem está adormecido, evitando uma transição muito brusca do sono para a vigília, que faz disparar o coração de susto e começar mal o dia. A não ser no caso de dorminhocos notórios e contumazes, basta um leve toque, uma chamada em voz baixa, e quem estava dormindo acorda sem traumas.
Chamar alguém aos gritos é, mais que uma questão de educação, uma agressão sem motivo. Excetuando-se as situações-limite, como estar preso por dentro, ameaçado de cair da janela ou com a casa em chamas, ninguém precisa pôr a boca no mundo para chamar a atenção dos outros.
Em circunstâncias normais, as pessoas gostam de ser lembradas e procuradas, mas nunca perturbadas por um chato inconveniente. Igualmente incômodo é ser lembrado sempre com intenções utilitárias, como empréstimos de coisas ou dinheiro (argh!), pequenos serviços que não nos competem ou pedidos que às vezes se tornam um transtorno para quem precisa obedecer a horários apertados ou desviar-se de seu rumo para atender ao pidão.
Pouca gente hoje em dia ainda se sente obrigada a aceitar encargos que não lhe digam respeito. Deixou de ser embaraçoso dizer “não”, ao menos para quem vive nas cidades e tem o tempo contado para suas próprias obrigações, mais escasso ainda para seu lazer e o cuidado de si. Mas ainda existe gente, tímida ou inadaptada aos hábitos urbanos, que não tem coragem de se negar a fazer o que lhe pedem. Às vezes viram verdadeiros servidores do outro. E sofrem por isso de um modo insuspeitado.
A abordagem amorosa é um caso aparte, mas nem por isso pode invadir a privacidade do ser amado, como se amar desse carta-branca para ignorar a necessidade que todo mundo tem de um tempo só para si. Nesse caso, mais que em qualquer outro, o respeito à solidão do parceiro pode fazer crescer o amor, um sentimento cada vez mais raro e valioso, que todos desejam mas nem todos experimentam e praticam de verdade.
Quanto mais íntimo se fica de alguém, mais é preciso estar atento ao tempo de que esse alguém necessita para respirar, cultivar sua paz interior ou refletir e tomar decisões sobre seus problemas. Quando o ser amado não preza nem mesmo seus próprios momentos de solidão e parece ter horror a ficar sozinho, ao menos um pouco todos os dias, pode ser que a porcelana de que fala o poeta esteja quebrada. E porcelana não dá pra colar.

Foto Vasilis Artikos. Birds.

9 comentários:

Cezarina Devos Macedo disse...

Parabéns,Adelaide!Excelente texto!
Passei pra te fazer uma visitinha e te deixar meu carinho sob a forma de um presente!Passa lá no Alma Cigana e pega o selo!Tu mereces!Bjo!

Unknown disse...

«Deixou de ser embaraçoso dizer “não”...»

Excelente texto. É bem verdade que os mais velhos de nós tínhamos uma certa relutância em dizer 'não'. Vamos aprendendo.

Valdemir Reis disse...

Amiga Adelaide é sempre com grande alegria que visito este importante espaço. Honrado e feliz. Quero agradecer sua amizade, atenção e gentileza. Muito obrigado! Parabenizo você pela harmonia e qualidade deste trabalho. Grande tema, ótima escolha, excelente texto, belo visual, muito bom mesmo, uma preciosidade, fantástico, gostei. Valeu ter passado aqui. “Muitas vezes basta ser: colo que acolhe, braço que envolve, palavra que conforta, silêncio que respeita, alegria que contagia, lágrima que corre, olhar que acaricia, desejo que sacia, amor que promove. E isso não é coisa de outro mundo, é o que dá sentido à vida. É o que faz com que ela não seja nem curta, nem longa demais, mas que seja intensa, verdadeira, pura enquanto durar. Feliz aquele que transfere o que sabe e aprende o que ensina.” Cora Coralina. Encontrar-nos-emos sempre por aqui. Aguardo sua visita, passa lá! E volte sempre! Tenha um agradável e feliz fim de semana. Muita paz, brilho, proteção e sucesso. Tudo de bom, prosperidade... Fique com Deus. Forte e caloroso abraço.
Valdemir Reis

ANALUKAMINSKI PINTURAS disse...

Querida amiga Adelaide, mui lindo o teu texto. E sábio: sim, algumas pessoas tornam-se inconvenientes ou invasivas, às vezes, exatamente por não suportarem ou não saberem tirar proveito da própria solidão: por terror ao vazio, por vezes exigem do outro, dos outros, ou mesmo do ser amado, a presença e atenção constante , na tentativa vã de preencher seus abismos interiores. Sem a sabedoria para cultivar os próprios jardins da alma, e respeitar a necessidade de luz e ar, espaço e tempo, dos outros, mesmo as mais íntimas relações de afeto podem estar fadadas à falência. Perceber estes limites sutis, e exercitar a capacidade de "crescer" com a própria solidão existencial pode ser a oportunidade de se aprimorar como ser e, até, de tornar-se mais atraente aos olhos dos seres amados, que notam quando um jardim íntimo viceja, floresce, reluz!
Beijinhos pintados e alados,azuis.

Valdemir Reis disse...

Amiga Adelaide de volta para ser também seu seguidor. Desculpe a demora. Feliz e honrado por sua amizade. Muito sucesso. Fique com Deus. Felicidades.
Valdemir Reis

gabidogato disse...

Disse tudo.

Eu demorei mas aprendi a dizer "não". E não me arrependo.

Anônimo disse...

Excelente texto lúdico e reflexivo parabens,já agora parabéns pelo espaço informativo e cultural,já estou seguido-a, desculpa a demora.

Uma otima semana pra voce.

big bjcss

Graça Pires disse...

Execelente texto. Para ler e reler e reflectir. Um beijo.

Adriana Riess Karnal disse...

Que lindo tudo aqui, delicado como porcelana.Volto sempre.