quinta-feira, 2 de abril de 2009

O gato, o lobo, o menino e Mary Sarojini e seu mainá


Foto Antônio Melo. Nos últimos raios de sol.



A coluna de João Pereira Coutinho, na Folha de São Paulo de 31 de março, fez lembrar O filho eterno, de Cristovão Tezza, e A ilha, de Aldoux Huxley, relido em março.

O tema de Coutinho, aprender dos animais, trata de nossa fuga sistemática ao presente, que diluímos entre a bagagem da memória e a ansiedade pelo futuro, deixando para o momento que se vive apenas um naco de atenção e a quase impossibilidade de ser feliz. Explicar isso equivale a dizer que é impossível ser feliz no passado ou no futuro, porque felicidade, queridas pessoas, ou se vive agora, ou não se vive. Existem, sim, a nostalgia da felicidade ou o desejo de ser feliz, mas nenhum dos dois pode ser considerado felicidade propriamente dita.

“(...) compre um gato”, preconiza o colunista. “Ele não espera nada, ele não deseja nada. A felicidade, para ele, não existe por adição (...). Mas por repetição: ele repete as experiências que são significativas. E, em cada repetição, existe a certeza da mesma felicidade.” Mais adiante, Coutinho relata a experiência do professor inglês Mark Rowlands, que comprou um lobo, domesticou-o (depois de ver destruída metade de seus móveis e objetos) e conviveu com ele durante 11 anos, levando o animal até para as aulas na universidade. O relato está em “O filósofo e o lobo: lições do selvagem sobre amor, morte e felicidade”, livro ainda não traduzido por aqui, e segundo a crônica “uma longa meditação sobre a natureza da felicidade humana. Ou, se preferirem, sobre a sua impossibilidade.”

Mas se o texto de Rowlands envolve um viés metafísico, no caso do romance premiadíssimo de Tezza o assunto fica restrito a uma experiência existencial, em que seu filho, portador da síndrome de Down, recebido pelo pai como empecilho a uma dinâmica de vida e trabalho normais, termina por “ensinar” o significado desse presente sem misturas de que falava Coutinho. Nada tipo livro de autoajuda. Aqui se trata de uma pessoa humana, que por uma deficiência neurológica está impossibilitada da constante referência ao passado, assim como da construção inesgotável de planos e projeções que a tirem do presente.

Em comum com o gato e o lobo, há um presente “puro”, isento de elementos que o fraturem; mas diferente dos animais, há uma sensibilidade a ser trabalhada e a educação da atividade motora, visando conseguir alguma autonomia física, além de uma afetividade peculiar, que precisa ser atentamente orientada. É um conjunto de métodos e dedicação que busca ajustar o menino a seu meio: repete indefinidamente as experiências que o levarão a adotar o melhor modo de agir, e nisso a família e os instrutores têm um papel fundamental. Não há superproteção, mas estímulos continuados sem descanso. Em outras palavras, o condicionamento não acontece simplesmente por uma compensação fisiológica à la Pavlov, como com os animais, mas por uma série de experiências que não privilegiam a memória, e sim todo o corpo; uma repetição constante que afinal o levará a agir de modo socialmente aceitável e a assimilar alguns conhecimentos de que irá precisar na vida adulta. Do fundo de seus limites, ele não entende, mas vive essa felicidade do momento, e é por ela que se abre caminho para a aceitação familiar e social.

Os personagens de Huxley, em A ilha, agem na linha de um psicologismo que reforça o papel psicanalítico da terapia da palavra. Logo no início, quando a menina Mary Sarojini e seu irmão encontram Will, o protagonista e narrador do romance, muito ferido e taumatizado, ela põe em prática a cura pela palavra – uma chimney-sweeping, como a chamava Ana O., a primeira paciente histérica de Freud. O procedimento da menina – uma “análise selvagem”, por assim dizer – pretende, e consegue, livrar o navegador dos traumas por que passou com o naufrágio de seu barco e a escalada pelas pedras, ferido e aterrorizado por serpentes ameaçadoras. Ao fundo, um mainá, pássaro da ilha, repete sem parar “Atenção”, “Vamos, rapazes, é agora”. Mary quebra a resistência de Will e o faz repetir tantas vezes quantas fossem necessárias o que havia acontecido, até que tudo ficasse relegado ao passado e ele se convencesse de que afinal estava livre para seguir o conselho do mainá no presente, único tempo que realmente precisa de toda a atenção disponível.

Acho que a conclusão lógica desses exemplos todos é que, excetuando os crentes extremados que preferem se abster de muitas alegrias terrenas em favor da vida eterna no Paraíso, continuamos interessados basicamente em conseguir a felicidade durante esta vida. É em torno desse desejo – e em contraponto da morte – que giram nossa razão, nossas pesquisas e a busca de conhecimento.

O pensamento contemporâneo continua correndo atrás das condições que nos permitirão viver a vida de modo mais pleno, e portanto ser mais felizes, quando pintar uma chance de ser feliz. Não acontece todo dia. Nem é tão simples assim. Mas pode-se falar disso de outra vez.

3 comentários:

Anônimo disse...

Eu li essa coluna do J. P. Coutinho (Aliás, apesar de em 90% das oportunidades eu detestar as opiniões dele, sempre dou uma conferida). O conselho do gato não serviu pra mim: detesto animais dentro de casa.

Quanto à essa relação que você estabelece entre o presente e a idéia de felicidade, eu concordo plenamente. O futuro, se pararmos para pensar, não tem existência palpável.

Acho que uma das coisas mais bacanas de O filho eterno é justamente essa idéia de um sujeito sempre por se construir (tanto o filho, quanto o escritor na sua trajetória). Ou seja, há sempre uma expectativa do que pode acontecer a ambos, num futuro que só um dos dois sabe que é futuro (não sei se o que acabei de escrever ficou compreensível).

Adorei a postagem! Um abraço.

Bianca Helena disse...

A palavra "felicidade" realmente me confunde rs. Ela se choca com a palavra "efemeridade" e, apesar disso, ou possivelmente, por isso, nos faz correr tanto em sua busca.
A felicidade só existe hoje, de fato. E esta simplicidade nos é muito complexa.
beijos e uma bela semana, Adelaide!

Marcelo Amorim disse...

Eu tenho gatos. Nenhum comprado, os 4 adotados. Mas embora eu ainda me pegue sofrendo pelo passado e ansiando pelo futuro (sou humano, somos), há tempos os gatos - e cães que também tenho, mas especialmente os gatos, me ensinaram e me ensinam que grande parte do que nos aflige é produto de como pensamos muito mais do que sentimos. O instinto, no animal, rege sua vida em torno do que ele sente, do que o sensibiliza. Não há um por que o tempo todo. Apenas há. E talvez nisso - também - talvez neste aprendizado, resida parte disso que chamamos de felicidade.