domingo, 30 de dezembro de 2007

Sublime, conceito em transformação


Foto Boris Kossoy.

A história da idéia de sublime é bem antiga, vem da Antiguidade clássica e pode ser reportada a Platão: tudo que tendesse à idéia suprema do Bem seria sublime. Durante muito tempo, o sublime foi considerado o perfeito, o quase-divino, acima da realidade humana e de toda contingência. O sublime nessa acepção só poderia levar à serenidade.
A Longino, retórico grego que viveu cerca de 220-273, atribui-se – sem certeza – o Tratado do Sublime, que aponta entre os oradores de seu tempo os que teriam produzido as peças oratórias mais perfeitas, exemplos do sublime: aquilo que eleva a alma, que se aproxima da perfeição, mas entusiasma. Falando muito superficialmente, pode-se dizer que esse autor já apresenta uma diferença significativa em relação à idéia mais antiga do que seria o sublime, pois ele envolve nessa experiência uma sensação prazerosa. Em seu tratado, Longino – ou alguém que ficou conhecido como “o falso Longino” – já dizia, entre outras coisas, que o sublime é aquilo que surpreende, em contraste com o racional, em que se demonstra alguma coisa passo a passo.
O tratado de Longino se referia principalmente à oratória. Mas a questão não está centrada na matéria sobre a qual versam seus comentários e sim no conceito que ele abstraía dos efeitos excepcionais conseguidos por alguns oradores. A intermediação das palavras aqui não se refere ao texto dos discursos examinados por Longino, mas ao resultado arrebatador desses discursos sobre seus ouvintes. Aí se encontra um sinal de alguma ruptura, de uma qualidade que não mais se caracteriza pela perfeição irretocável e distante: o sublime não é mais somente contemplado, mas atinge o ouvinte.
Mais próximo da noção atual é o sublime sensualista de que Edmund Burke fala, num texto de 1757 chamado A Philosophical Enquiry Into the Origin of Our Ideas of the Sublime. A noção de sublime que Burke expõe quebra a serenidade e a tendência à paralisação que o conceito da Antiguidade sugeria; fala de um prazer paradoxal e complexo, o sublime no novo espaço de uma estética da “sensibilidade subjetiva". É um prazer ligado à dor, horror delicioso que ocorre quando temos uma idéia de dor e de perigo sem estar diretamente expostos a eles. Essa experiência estética do sublime, para Burke, não está ligada à elevação, mas à intensificação. Diferente do sublime antigo, intimamente ligado à idéia do belo relacionado à calma e à serenidade, àquilo que não se altera e fica na pura contemplação platônica, o sublime de Burke está ligado a extrema tensão e agitação. Não é mais a busca entusiástica da completude do Ser.
O conceito de sublimação, que Freud elaborou durante suas pesquisas sem chegar a fechá-lo, trata de um destino dado à pulsão, ou manifestação da energia da libido, que não busca diretamente sua satisfação primária, mas se desvia para outra finalidade, que hoje pode ser até mesmo uma atividade cotidiana ou de trabalho, contanto que seja feita em harmonia com o desejo subjetivo de quem a realiza. A condição do humano seria investir sem necessariamente encontrar o objeto que o satisfaça. Nessa tentativa, tudo pode acontecer.
As influências culturais, sociológicas e dos conceitos psicanalíticos trouxeram a idéia do sublime para o corpo, seus acontecimentos e apresentações. Ainda que o verbete sublime esteja ligado no dicionário a perfeição, condição do que é superior, em literatura e psicanálise ele está hoje encarnado e difundido no dia-a-dia, misturado ao grotesco, ao sofrimento e ao riso. Dessa idéia do que seja o sublime, são exemplos bem ilustrativos os filmes de Chaplin-Carlitos e as vicissitudes de muitos personagens da literatura de ficção.

quinta-feira, 27 de dezembro de 2007

Bolinha de pinball



Estranha relação aquela com o mar. Se ao menos fosse coisa do astral, se tivesse nascido em Peixes, Aquário, Câncer... Mas que nada, era de fogo, fogo duplo: Leão com ascendente em Sagitário – embora um Leão-quase-Virgem, que lhe rendera uns vestígios de obsessividade e a fizera fã de histórias de detetive. Não era um motivo de origem – além das origens aquáticas de todos nós, é claro –, mas um traço debussiano aprendido muito cedo nos discos que o pai ouvia a toda hora. E mais: ainda que nascida no Rio, nunca havia morado perto do mar. Não conhecia senão de ouvir falar a aporrinhação dos metais oxidados, da umidade, do cheiro de maresia.
Aprendeu o mar em contatos encantados, nas praias da infância, e as recomendações dos adultos a maravilhavam: então era perigoso, e perigoso passou a ser sinônimo de bonito, inefável, de não ter muita certeza de nada e olhar com uma desconfiança arrebatadora todas as coisas desconhecidas. Com o mar aprendeu o mistério das palavras – vá alguém confiar nas palavras. Aprendeu com o mar a ver as coisas pela luz que transforma tudo, das cores ao sentido. Entrar no mar a deixou "séria de ventura e aventura", como diz Clarice, e lhe ensinou que se pode experimentar uma ausência de limites sem se diluir no nada, ficando criança para sempre.
Nunca mais deixaria de ser criança, mesmo quando a maturidade lhe ensinasse a dura lição das impossibilidades. Aprendeu a vida embalada pela marola da calmaria, espancada pelo caixote inesperado, lutando contra a corrente e furando a onda verde para sair meio torta do outro lado, mais forte e mais humilde. Mergulhou na vida para confirmar o que já previa: para a vida como para o mar somos pouco mais que uma bolinha de pinball.
A diferença é que a bolinha vai e vem sem dizer nada e, tanto quanto se sabe, sem se alterar em sua natureza de bolinha. Mas com gente é diferente, já dizia Geraldo Vandré. Gente às vezes não consegue ficar à tona e pode mesmo escolher não ficar. Deve ter acreditado que entrando no mar daquele jeito voltaria ao perigo inefável, ao desconhecido arrebatador. Deve ter ido a busca, quando não havia mais nada para buscar em terra firme. Tinha mesmo fortes motivos para preferir o mar.

sexta-feira, 21 de dezembro de 2007

A rede



Mudaram-se na véspera de Natal. A ele doía como uma perda a conquista de tanto território, chão novo refletindo tudo e paredes espelhadas. Não gostava. Sentia calafrios desde que entrara, a cabeça estourava a cada movimento. Nem do balcão do quarto, que ela chamava de varanda, ele gostava, por causa da grade fria, escura, arabescos exatos que aprisionavam a paisagem em outro lado do mundo. A cama não o acolhia, e seu desejo gritava por uma rede que tinham deixado no velho apartamento numa ruazinha em Laranjeiras.
Tinha pendurado a rede onde pudesse ver as folhagens que quase entravam pela janela, e ali balançava debaixo dos galhos como quando era criança no Ceará. Estava aposentado por causa de uma doença de nome esquisito e tinha dado muita sorte com dinheiro: dias antes de sair a aposentadoria, caiu em suas mãos um prêmio de loteria, um prêmio grande o bastante para tudo aquilo que Angélica tinha inventado, e seus pulos de alegria o assustavam. Nunca mais dormiria sossegado, nunca mais teria uma rede debaixo das árvores do sonho. Na casa nova sua rede não combinava com a decoração. As árvores ficavam distantes, a paisagem não o incluía. Tudo era novo, lustroso e cheirava a tinta.
Ela queria que ajudasse a pendurar os quadros, empurrasse uns móveis detestáveis, atendesse ao telefone que não parava de tocar. Multiplicada em braços, dava ordens aos homens da mudança e tomava providências que lhe pareciam confusas, repentinas, que não chegava a entender. Nem queria.
Fechou os olhos com força diante da janela e quando os reabriu houve um segundo de espanto num ponto qualquer entre o estômago e o esterno. Um momento solto no fio do tempo. A paisagem se moveu e estacou como se brincasse. Sentiu náuseas, os calafrios voltaram. Um inimigo oculto teria sido mais confortável, pensou, passando a mão na testa. Havia um inimigo dentro dele, não era culpa de Angélica. Sua culpa não ia mais longe que as medidas da sala. Ela não sabia.
Estirou-se na cama sem lençol. Os olhos ardiam. Se ao menos dormisse! O pensamento ia além das palavras e lhe escapava. Percorria um terreno secreto para si mesmo, muita lama pelo chão e até o desejo da rede havia fugido, para sua aflição. Estava imóvel, mas dentro dele havia uma procura que o fazia girar e se agitar sem descanso num lugar tão interior que sua vontade não alcançava. Tinha medo dessa coisa incontrolável. Estava cansado demais para responder à voz alheia, amortecida por um ruído insistente entre ele e o mundo exterior. Desistiu de ouvir o que ela dizia, desistiu de tudo e deixou-se afogar numa penumbra morna de água.
Ainda notou quando ela apareceu na porta do quarto e perguntou alguma coisa. Viu seus olhos muito abertos e um silêncio escuro foi engolindo tudo – Angélica, a janela da prisão, o teto com uns desenhos intrigantes – até que não viu nem ouviu mais nada. Não ia passar o Natal naquela casa.
Quando o Natal o alcançou, balançava leve na rede do Norte, tão macia que era como não estar em lugar nenhum.

domingo, 16 de dezembro de 2007

Tempo de utopias

"Caminho dez passos, ela se afasta dez passos.
Corro cem metros, ela se afasta cem metros.
Por mais que eu a persiga, jamais a alcanço.
Então para que serve a utopia?
Serve para isso: para fazer caminhar."
(Eduardo Galeano)

Fim de ano é tempo de bons votos e festas que dedicamos à esperança.
Mesmo sabendo que o mundo continua o mesmo, ou muda muito lentamente para nossas expectativas, continuamos a acreditar que o ano que vem será melhor.
Mas para que isso aconteça, é preciso caminhar, ou seja, mudar as condições que levam o mundo a ser essa fábrica de sofrimento para os homens. Não só para os que estão lá longe, sobre os quais ouvimos e lemos notícias aterradoras de guerras e genocídio. Por diferentes que possam ser seus costumes e suas etnias, são feitos de carne e osso, capazes de amor e ódio – iguaizinhos a nós, que até há pouco acreditávamos que o Brasil era imune a guerras e catástrofes naturais, no temperamento pacífico e cordial de nosso povo e outras balelas desse tipo.
Temos tudo para provocar as iras de uma divindade justiceira - uma das piores distribuições de renda do mundo, hábitos coloniais arraigados, preconceitos e uma mentalidade em tudo parecida com a dos coronéis donos de terra do sertão do século passado. Sorrimos com superioridade dessas mazelas, principalmente nas megalópoles, acreditando que ficaram para trás.
Então tá. Vamos combinar que consideramos nossa doméstica igual a nós, respeitamos os garis de nossa rua tanto quanto nossos parentes e cumprimentamos diariamente os porteiros de nosso edifício, agradecendo toda vez que facilitam nossa vida ou abrem o portão do estacionamento. Não vale objetar que eles são uns grossos ou que estão sempre prontos a dar um golpe e nos passar a perna: são argumentos genéricos, que jogam no mesmo saco todo tipo de gente só porque se trata de serviçais. Podemos até sentir pena de pessoas desfavorecidas, mas isso não muda em nada sua condição, apenas nos redime da culpa (mesmo inconsciente) que essa condição nos provoca. Ter pena de alguém é como ter medo de chegar perto e se incomodar com seu infortúnio.
Respeito, atenção, gentileza e solidariedade, além de atestarem uma boa educação, fazem todo mundo se sentir um pouco melhor. É bem pouco. Mas é um começo, um modo eficaz de produzir bem-estar, e pode nos proporcionar surpresas muito agradáveis a respeito de gente que até então nos passava despercebida - e se sentia humilhada com isso.

O texto a seguir, também de Galeano, pode parecer desporporcional ao que está dito acima. Mas ele fala apenas sobre outra localização geográfica da injustiça. Nem mais nem menos cruel que a injustiça praticada entre nós; a grande diferença é o calibre das armas usadas e a oficialização da violência. Não estamos muito longe disso.


Pai libanês segura filho morto nos ataques de Israel

"Os terroristas se parecem entre si: os terroristas de Estado, respeitáveis homens de governo, e os terroristas privados, que são loucos soltos ou loucos organizados desde os tempos da Guerra Fria contra o 'totalitarismo comunista'. E todos agem em nome de Deus, seja Deus, Alá ou Jeová. Até quando continuaremos a ignorar que todos os terrorismos desprezam a vida humana e que todos se alimentam mutuamente. Não é evidente que nesta guerra entre Israel e Hezbolá são civis, libaneses, palestinos, israelenses, os que choram os mortos? Não é evidente que as guerras do Afeganistão e do Iraque e as invasões de Gaza e do Líbano são incubadoras do ódio, que fabricam fanáticos em série?
Somos a única espécie animal especializada no extermínio mútuo. Destinamos US$ 2,5 bilhões, a cada dia, para os gastos militares. A miséria e a guerra são filhas do mesmo pai: como alguns deuses cruéis, come os vivos e os mortos. Até quanto continuaremos a aceitar que este mundo enamorado da morte é nosso único mundo possível?"

Eduardo Galeano

quarta-feira, 5 de dezembro de 2007

O mesmo e o outro


Foto Jayme Serva.

Não há como fugir: os dias são iguais. São diferentes, é claro. Mas são sempre iguais em que se dividem – manhãs tardes noites madrugadas horas batendo martelo nos segundos, como um leilão do que você queria, mas só vai levar se perceber a música do martelo.
As cores mudam, tanto as do céu como as do coração, e os tons são inacreditáveis, de uma pessoa para outra e até para a mesma. A diferença na mesma pessoa é de mais claro-escuro, ton-sur-ton, e o fundo é meio repetitivo mesmo, fazer o quê? Cada um se faz repetitivamente recaindo no refazer do que mais procura evitar. E quando o sol aparece, por causa desse estado de mesmice aparente, pode dar a sensação de que tudo está igual.
O de fora pode estar igual. (Não no tempo que faz, que até o sol tem matizes e variações que só falta prestar atenção para ver: o sol não mostra sempre a mesma face, e às vezes está furioso e queima com raiva, mas às vezes acaricia a pele que nem homem enamorado.) Mas o de fora pode estar igual no que exigem da gente.
A coisa acontece assim: a gente se repete e recai e refaz o que já andou fazendo a vida toda. Quem vive a nosso lado também recai e repete. Quando alguém refaz seu refazer e ressoa em nossa alma, é a rotina. A rotina não é o que eu faço, mas o que os outros querem que eu faça, e eu faço, repetindo então – não o que eu quero e repito por minha própria conta, porque é meu e é dessa cor que eu sou, mas o que os outros querem que eu refaça por eles. Nisso consiste o poder de uma pessoa sobre a outra: ser capaz de ressoar sua própria repetição no outro. E quanto maior o poder, mais outros refazem a repetição do poderoso.
O que obviamente não é justo nem salutar para ninguém – nem os mesmos nem os outros.
Quem apenas ressoa o que o outro repete e refaz sem conseguir deixar de refazer é um candidato a passa humana. Quem não se libera da gaiola da repetição do outro, é pássaro morto dentro da gaiola sem ninguém para chorar por ele. Quem não olha em volta, procurando sintonizar o rádio para ouvir a melhor música que o outro é capaz de tocar, nem merece muito que se chore por ele.