sexta-feira, 21 de dezembro de 2007

A rede



Mudaram-se na véspera de Natal. A ele doía como uma perda a conquista de tanto território, chão novo refletindo tudo e paredes espelhadas. Não gostava. Sentia calafrios desde que entrara, a cabeça estourava a cada movimento. Nem do balcão do quarto, que ela chamava de varanda, ele gostava, por causa da grade fria, escura, arabescos exatos que aprisionavam a paisagem em outro lado do mundo. A cama não o acolhia, e seu desejo gritava por uma rede que tinham deixado no velho apartamento numa ruazinha em Laranjeiras.
Tinha pendurado a rede onde pudesse ver as folhagens que quase entravam pela janela, e ali balançava debaixo dos galhos como quando era criança no Ceará. Estava aposentado por causa de uma doença de nome esquisito e tinha dado muita sorte com dinheiro: dias antes de sair a aposentadoria, caiu em suas mãos um prêmio de loteria, um prêmio grande o bastante para tudo aquilo que Angélica tinha inventado, e seus pulos de alegria o assustavam. Nunca mais dormiria sossegado, nunca mais teria uma rede debaixo das árvores do sonho. Na casa nova sua rede não combinava com a decoração. As árvores ficavam distantes, a paisagem não o incluía. Tudo era novo, lustroso e cheirava a tinta.
Ela queria que ajudasse a pendurar os quadros, empurrasse uns móveis detestáveis, atendesse ao telefone que não parava de tocar. Multiplicada em braços, dava ordens aos homens da mudança e tomava providências que lhe pareciam confusas, repentinas, que não chegava a entender. Nem queria.
Fechou os olhos com força diante da janela e quando os reabriu houve um segundo de espanto num ponto qualquer entre o estômago e o esterno. Um momento solto no fio do tempo. A paisagem se moveu e estacou como se brincasse. Sentiu náuseas, os calafrios voltaram. Um inimigo oculto teria sido mais confortável, pensou, passando a mão na testa. Havia um inimigo dentro dele, não era culpa de Angélica. Sua culpa não ia mais longe que as medidas da sala. Ela não sabia.
Estirou-se na cama sem lençol. Os olhos ardiam. Se ao menos dormisse! O pensamento ia além das palavras e lhe escapava. Percorria um terreno secreto para si mesmo, muita lama pelo chão e até o desejo da rede havia fugido, para sua aflição. Estava imóvel, mas dentro dele havia uma procura que o fazia girar e se agitar sem descanso num lugar tão interior que sua vontade não alcançava. Tinha medo dessa coisa incontrolável. Estava cansado demais para responder à voz alheia, amortecida por um ruído insistente entre ele e o mundo exterior. Desistiu de ouvir o que ela dizia, desistiu de tudo e deixou-se afogar numa penumbra morna de água.
Ainda notou quando ela apareceu na porta do quarto e perguntou alguma coisa. Viu seus olhos muito abertos e um silêncio escuro foi engolindo tudo – Angélica, a janela da prisão, o teto com uns desenhos intrigantes – até que não viu nem ouviu mais nada. Não ia passar o Natal naquela casa.
Quando o Natal o alcançou, balançava leve na rede do Norte, tão macia que era como não estar em lugar nenhum.

Um comentário:

ana v. disse...

Como eu gosto de ler os seus textos, Adelaide. Esta história é uma lição de humanidade e de ironia. Amei.

beijos e um BOM NATAL, aí no calorzinho do Brasil