quinta-feira, 27 de dezembro de 2007

Bolinha de pinball



Estranha relação aquela com o mar. Se ao menos fosse coisa do astral, se tivesse nascido em Peixes, Aquário, Câncer... Mas que nada, era de fogo, fogo duplo: Leão com ascendente em Sagitário – embora um Leão-quase-Virgem, que lhe rendera uns vestígios de obsessividade e a fizera fã de histórias de detetive. Não era um motivo de origem – além das origens aquáticas de todos nós, é claro –, mas um traço debussiano aprendido muito cedo nos discos que o pai ouvia a toda hora. E mais: ainda que nascida no Rio, nunca havia morado perto do mar. Não conhecia senão de ouvir falar a aporrinhação dos metais oxidados, da umidade, do cheiro de maresia.
Aprendeu o mar em contatos encantados, nas praias da infância, e as recomendações dos adultos a maravilhavam: então era perigoso, e perigoso passou a ser sinônimo de bonito, inefável, de não ter muita certeza de nada e olhar com uma desconfiança arrebatadora todas as coisas desconhecidas. Com o mar aprendeu o mistério das palavras – vá alguém confiar nas palavras. Aprendeu com o mar a ver as coisas pela luz que transforma tudo, das cores ao sentido. Entrar no mar a deixou "séria de ventura e aventura", como diz Clarice, e lhe ensinou que se pode experimentar uma ausência de limites sem se diluir no nada, ficando criança para sempre.
Nunca mais deixaria de ser criança, mesmo quando a maturidade lhe ensinasse a dura lição das impossibilidades. Aprendeu a vida embalada pela marola da calmaria, espancada pelo caixote inesperado, lutando contra a corrente e furando a onda verde para sair meio torta do outro lado, mais forte e mais humilde. Mergulhou na vida para confirmar o que já previa: para a vida como para o mar somos pouco mais que uma bolinha de pinball.
A diferença é que a bolinha vai e vem sem dizer nada e, tanto quanto se sabe, sem se alterar em sua natureza de bolinha. Mas com gente é diferente, já dizia Geraldo Vandré. Gente às vezes não consegue ficar à tona e pode mesmo escolher não ficar. Deve ter acreditado que entrando no mar daquele jeito voltaria ao perigo inefável, ao desconhecido arrebatador. Deve ter ido a busca, quando não havia mais nada para buscar em terra firme. Tinha mesmo fortes motivos para preferir o mar.

2 comentários:

Maria disse...

Lindo Adelaide !!!

Me senti em tantas palavras aqui...

Adorei.

Beijo grande

Marcelo F. Carvalho disse...

E a gente prefere você.
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Abraço forte!