sexta-feira, 13 de setembro de 2013

Leituras





Imagino que leitura quer dizer alguma coisa que vai desde pegar um texto e juntar as letras, as palavras, perceber um sentido nesse texto, até fazer uma leitura dinâmica, transversa, de frente pra trás e vice-versa, e perceber um ou mais sentidos nesse texto, concordar ou não com ele ou simplesmente ficar sabendo o que alguém ou alguma instituição quis dizer com aquilo.
Existe também uma leitura de puro lazer, como algumas pessoas encaram a coisa – “adoro ler!” – sem maiores conseqüências. Nesse caso fica muito vago definir o que significa “ler”. Pode ir desde mera fofoca até folhetos de propaganda para alimentar um consumismo desenfreado; recreio para o pensamento, curiosidade, vontade de aprender ou conhecer alguma coisa ainda muito distante; viajar por lugares desconhecidos, auto-ajudar-se, aprender novas receitas ou busca de romantismo e emoções que o dia-a-dia em bruto não oferece muito.
Leitura pode ser distração, e geralmente é, mas pode também abrir caminho para uma quase cumplicidade com quem escreveu. Isso acontece quando o leitor se identifica com o que lê, se sente atingido por um modo de expressão, desperta para novas visões de si próprio ou das pessoas e do mundo que o cercam.
É nesse ponto, eu acho, que se abre um caminho que pode levar muito longe, a um jeito novo de conceituar a leitura, que a torna imprescindível, parte integrante do cotidiano. Pode formar um leitor que interage com o que lê, que se integra ao texto, pondo nele sua contribuição pessoal, suas vivências, todo o conjunto de suas experiências de prazer e dor, e conjuga essas experiências às que o autor expressa. Um leitor que se mistura subjetivamente ao texto e tira desse processo uma satisfação que pode ser chamada de estética.

terça-feira, 10 de setembro de 2013

Pequenos nadas




                        ...
se vieres à minha procura
vem devagar e suavemente para não quebrar a porcelana da minha solidão.
Sohrab Sepehry. Irã, 1928-80.



Alguém já deve ter dito que abordar uma pessoa não é para qualquer um. Se ninguém disse ainda, é tempo de dizer. A começar pelo modo como se acorda quem está adormecido, evitando uma transição muito brusca do sono para a vigília, que faz disparar o coração de susto e começar mal o dia. A não ser no caso de dorminhocos notórios e contumazes, em geral basta um leve toque, uma chamada em voz baixa, e quem estava dormindo acorda sem traumas.
Chamar alguém aos gritos é, mais que uma questão de educação, uma agressão sem motivo. Excetuando-se as situações-limite, como estar preso por dentro, ameaçado de cair da janela ou com a casa em chamas, ninguém precisa pôr a boca no mundo para chamar a atenção dos outros.
Em circunstâncias normais, as pessoas gostam de ser lembradas e procuradas, mas nunca perturbadas por um chato inconveniente. Igualmente incômodo é ser lembrado sempre com intenções utilitárias, como empréstimos de coisas ou dinheiro (argh!), pequenos serviços que não nos competem ou pedidos que às vezes se tornam um transtorno para quem precisa obedecer a horários apertados ou desviar-se de seu rumo para atender ao pidão.
Pouca gente hoje em dia ainda se sente obrigada a aceitar encargos que não lhe dizem respeito. Deixou de ser embaraçoso dizer “não”, ao menos para que vive nas cidades e tem o tempo contado para suas próprias obrigações, mais escasso ainda para seu lazer e o cuidado de si. Mas ainda existe gente, tímida ou inadaptada aos hábitos urbanos, que não tem coragem de se negar a fazer o que lhe pedem. Às vezes viram verdadeiros servidores do outro. E sofrem por isso de um modo insuspeitado.
A abordagem amorosa é um caso aparte, mas nem por isso pode invadir a privacidade do ser amado, como se o fato de amar desse carta-branca ao apaixonado nesse particular. Há que acredite – ou finja acreditar – que amar é pretexto suficiente para ignorar a necessidade que todo mundo tem de um tempo só para si. Nesse caso, mais que em qualquer outro, o respeito a nossa solidão pode ser motivo para firmar e fazer crescer o amor, um sentimento cada vez mais raro e valioso, que todos desejam e pouca gente conhece de muito perto e pratica de verdade.
Quanto mais íntimo se fica de alguém, mais é preciso estar atento ao tempo de que esse alguém necessita para respirar, cultivar sua felicidade ou refletir e tomar decisões sobre seus problemas. E se o ser amado não preza seus momentos de solidão e parece ter horror a ficar sozinho consigo mesmo ao menos um pouco todos os dias, pode ser que a porcelana de que fala o poeta esteja quebrada. E porcelana não dá pra colar, sorry.
 

domingo, 1 de setembro de 2013

Transgressão sem culpa




A dupla fantasia da ficção



“Poderíamos basicamente
dizer que a ficção é um meio
para os seres humanos estenderem-se
além de seus limites.”
Wolfgang Iser
em entrevista ao JB, 5.10.1996.

As afinidades de psicanálise e ficção se encontram no terreno da fantasia e do sonho. Os motivos e os fantasmas do texto são os do escritor, que por sua vez ganham vida própria a partir dos motivos e fantasmas do leitor. A livre associação está presente na construção de um texto, mesmo que o autor não esteja pensando nela, porque as pulsões passeiam livremente entre as linhas e o desejo marca o ritmo das frases. Seja falando de coisas sérias, burocráticas, prosaicas, desagradáveis ou desinteressantes, seja tecendo um texto que ressuma prazer e fruição, o ficcionista está compondo alguma coisa que se constrói de muitas faces, de muitos elementos diversos e contraditórios, todos necessários para o resultado final.
Quando se propõe a construir um edifício bem planejado, com princípio, meio e fim, no entanto, o escritor pode estar produzindo por isso um texto monótono, previsível ou mais pobre do que seria de desejar, porque exerceu uma censura, deixou o superego escrever por ele, não foi generoso o suficiente e não deixou nada de novo vir à tona, e dificilmente vai conseguir suscitar muito interesse em seus leitores.
Os textos de Freud se assemelham muitas vezes a ficções, se atentarmos para a quantidade de sentidos que eles encerram, às vezes até contraditórios. O toque romântico com que às vezes vemos suas exposições é circunstancial, uma questão de estilo e de época, mas o conteúdo de seu pensamento é absolutamente revolucionário e subversivo para os padrões da sociedade em que ele vivia. Não é que a subjetividade só tenha conseguido lugar nas obras de ficção a partir de Freud; mas daí em diante existem mais elementos teóricos para justificá-la e lhe conferir um novo status.

segunda-feira, 26 de agosto de 2013

Manhã de junho

Um balão, um grande balão branco, restinho da noite de São João. Sabia que era proibido, mas não resistiu.
Devia ter vagado boa parte da noite, confundindo sua estrela dourada e móvel com as estrelas quietas e prateadas, ameaçando incendiar as nuvens. Deve estar cansado, ele pensou, é tão diferente de tudo que já vi em matéria de balão! No início seria talvez divertido conhecer lugares novos, a amplidão do céu, luzinhas, fitando-o sem parar de todos os lados.
Mas tudo cansa nesta vida. Devia sentir-se inútil, porque nada se beneficiava de sua mobilidade e não podia compreender a fixidez das estrelas, das nuvens, do próprio céu. As nuvens deslizam, vem de lá para cá, não tem personalidade como ele mesmo, desmancham-se, se contradizem. Além de tudo, ele lutava contra seu próprio fogo, que ameaçava reduzi-lo a cinzas. Contra o desespero do infinito, que não podia entender. Começou a achar que as estrelas eram de uma indiscrição abusiva.
Então, o grande balão branco, restinho da noite de São João, chorou. As lágrimas deslizaram para o horizonte e - milagre - o horizonte se incendiou pouco a pouco. Tudo foi ficando claro. Mesmo as estrelas não puderam resistir e fugiram. Cansado mas feliz, o balão se deixou levar. Mais uma vez, a liberdade tinha surgido das lágrimas.

quarta-feira, 21 de agosto de 2013

A vila

Esse arzinho úmido após a chuva sempre mexe com minha alegria número oito, a mais discreta. Uma alegria tão discreta, que às vezes fico na dúvida, sem saber se é mesmo uma alegria.
À noite, lembra outras noites, já longínquas. Lembra um chão de cimento rachado, poças dágua, um tufo de mato escapando das rachas. muros cobertos de hera.
Naquele tempo, o mundo era limitado por um pomar à esquerda, um casarão à direita e uma rua sem calçamento. Habitavam-no dez pessoas, alguns vizinhos e alguns moleques. Às vezes havia tios e primos, uma avó de colo gostoso ou uma senhora gorda, que manchava de batom os biscoitos que mamãe lhe servia e puxava de uma perna. Havia também um médico de orelhas grandes e olhos pequenos, que fazia brincadeiras muito engraçadas. Suas visitas coincidiam com um céu profundamente azul, que me dava um aperto na boca do estômago.
Havia ainda os imensos sapos encantados. Eram negros, luzidios, de olhos cintilantes, e nós os fazíamos pular uma varinha. Mas só nas áreas iluminadas, porque nos escuro eles ficam bravos e jogam um líquido capaz de cegar as pessoas.
Havia estrelas puríssimas, penduradas nos galhos das árvores. Nós as colhíamos e serviam de adereço nas brincadeiras mais sofisticadas, como princesa, rainha, cinema, aventuras. Enfeitavam véus diáfanos, de mistura com as roupas das histórias de Monteiro Lobato. Aí aconteciam lances trágicos, suspense, dramatizações suntuosas em florestas encantadas, salões de baile e haréns. Sem esquecer, é claro, as emocionantes aventuras dos castelos deslumbrantes ou assombrados. Dos navios piratas em pleno mar alto.
A vila era céu azul, com ou sem nuvens. Podia também ser um cemitério à meia noite, praia ou piscina.
Um dia, não me contive e fui rever a vila grande, clara, alegre, cheia de folhas verdes por todos os lados. Fui buscar um sol morno e dourado, que me fez feliz como poucas vezes consegui ser depois, Ouvi um coro de roda. Olhei os tufos de mato e as poças jeitosas. Ver como estavam as florestas, o salão, o castelo, o mar e o sol, o cemitério. Fui buscar pureza, colher estrelas, sacudir os galhos das árvores, espantar sapos encantados.
Mas nada disso aconteceu. Chorei sobre uma vila estreita, pequena e suja, de chão de cimento liso, sem plantas, de casas duras, pintadas de novo. As janelas me olharam com a severidade dos mortos. As portas sorriram frias, hostís. Não nascem mais estrelas nas árvores ao lado.

quinta-feira, 15 de agosto de 2013

O cine Metro



Às vezes as coisas podem acabar bem. Experiência própria. Tinha um medo supersticioso de confessar isso. Quebrei o tabu, desmanchei a crendice e abri o jogo num fim de sábado em maio. Mês dos finais felizes.
Mamãe ia comigo ao cinema. Andávamos de casa até a praça Saenz Peña, não era longe, dez a quinze minutos a pé. O hall de entrada do cine Metro era gelado, chegava um frio delicioso lá de dentro. Naquele tempo não fazia o frio que faz hoje no Rio. O lugar pedia drops de hortelã, o verde, redondo, de embalagem também verde com as pontas prateadas. Só depois apareceu o quadradinho, embrulhado um a um.
Era o bom começo. O cheiro de ambiente fechado se espalhava como uma surpresa pela sala de espera. Havia tapetes vermelhos nas escadas que levavam à sala de projeção, passadeiras presas por tubos de metal bem dourado. Era luxuosa, a sala, art-déco meio art-nouveau, balcão de balas à direita dos que entravam pela roleta geladinha. E lá dentro as poltronas macias, fria escuridão que lhes escondia a cor, talvez vermelha. Não sei bem por que a lembrança do Metro Tijuca me vem cheia de toques vermelhos, agradáveis ao tato e com esse inseparável sabor de hortelã.
O mais importante surgiria logo depois do jornal, colorido, irretocavelmente glamoroso, um mundo fácil e leve, ritmado, cintilante, fantasioso, onde tudo vinha pronto e em harmonia. E sempre, sempre dava tudo certo. A filosofia era a mesma dos números de show. Afinação, ritmo perfeito, rostos perfeitos até na possível feiúra. Tons e texturas, caras e bocas. Como igualar o brilho dos cabelos, o talhe quase etéreo, o torneado das pernas, o afago das vozes – hoje eu sei – melosas demais? Os lábios, o azul de certos olhos, os dentes? Gestos como golpes de asas, pernas sem peso.
As atrizes de musicais foram na certa as primeiras pernas a conseguir fama internacional. As primeiras estrelas mundialmente famosas. Os musicais da Metro ocuparam por muito tempo o lugar que hoje ocupa a novela das oito. Ou talvez a novela mexicana das caras de boneca-de-porcelana, dos galãs sem jaça que não poderiam ser outra coisa senão galãs, além, é claro, de cantarem tão bem. Ou então apareciam Fred Astaire, Gene Kelly, aqueles caras que dançavam com a gente.
Um mundo assumido de fantasia e ilusão sem limites. Dourado sobre azul a imaginação ouriçada, os olhos fartos de surpresas que iam do sublime ao kitsch com extremo prazer, como era bom. E tudo sempre dava certo. As imitações de gente daqueles filmes sofriam, duvidavam, mentiam, amavam e eram às vezes mais pastiches que paródias, absurdos contos simplórios que apenas abriam espaço para as doces visões e os números incríveis dos shows inocentes de Hollywood, dos números ainda ingênuos até para pintar alguma forma de malícia ou erotismo.
Alienações e críticas de pessoas tidas como doutas, quanto à intenção do que se mostrava nos musicais: propaganda imperialista, mentira, tudo mentira, futilidade e vanglória, alegria postiça e sem conteúdo. Leviandade, oportunidade aberta à moral tolerante, proclamavam os religiosos de nariz torcido. Situações tênues e irreais do roteiro, mesmo assim, ofereciam material aos reparos dos censores de plantão, naquele tempo mais numerosos e respeitados que agora. Sempre uns chatos, porém.
Mas havia uma forma artificial de perfeição naqueles espetáculos que conseguia remi-los de todas as falhas que se alegassem. Mesmo porque, ninguém que percebesse alguma coisa poderia levar a sério neles mais que o espetáculo em si, o show, a música, a dança e os cenários deslumbrantes, a técnica perfeita, os figurinos e a sincronia perfeita dos pares, os arranjos adequados ao romantismo das situações. Qualquer carrancismo ou seriedade da trama teria feito daqueles filmes dramalhões insuportáveis ou óperas falidas. Fazia parte da especificidade de sua forma mimética que fossem frágeis as cenas e as circunstâncias, de uma linha de ação própria para fazer sobressair a trilha sonora e os números de dança, e só. Apenas dava certo, tudo tinha que dar certo, porque o segredo da eficácia da obra como um todo era dar certo. Não era um folhetim, embora às vezes parecesse, assim de leve. Era talvez uma forma sutil de marketing, não agressivo como os de agora, num tempo em que a televisão apenas se tornava conhecida de uns poucos e o cinema era a grande oportunidade de deslumbramento das almas simples de moçoilas em flor.
Havia uma forma superficial de perfeição, em parte graças à técnica, que dava suporte ao vazio e ao brilho. Mas havia acima de tudo a filosofia fresca e sem dobras, a ludicidade dos ritmos sincronizados, sapateados, estilizados; das pernas gêmeas e sensíveis, belas ou miraculosas; dos corpos expressivos, quando ainda não se falava em expressão corporal; das imagens clean, coloridas, certas, bem combinadas. Um conjunto de gestos precisos, estereótipos teatrais sem culpa e até uma sensibilidade que às vezes acertava em cheio pelo encanto da representação encenada, na música perfeita para sustentar as sensações do momento e as saias que deviam esvoaçar reciprocamente, complemento visual e auditivo de paz, tramando gaiatamente um final feliz que a ninguém poderia incomodar, uma vez que o tema era sempre a harmonia. Só insensíveis não veriam isso e não se deixariam embevecer naquelas duas horas de impossibilidades deliciosas.
Dane-se a impossibilidade. Tudo pode sempre dar certo. Era essencial internalizar a mensagem tantas vezes e de tantas lindas formas repetida. Naquele tempo não seria justo não crer no impossível.

quarta-feira, 14 de agosto de 2013

Assunto não falta

Toda vez que alguém me pergunta por que não estou escrevendo mais, tenho que responder alguma coisa. Então respondo: falta assunto. O que não é verdadeiro. A verdade é que minha vida mudou (em parte para melhor) e fiquei sem tempo livre para anotar minhas novidades.
Tenho esperanças de conseguir voltar a escrever mais que poesia, quem sabe?