segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

O planalto, os anjos e as estrelas

Eu podia falar de cidades velhas, empoeiradas, calçadas de lajes coloniais. Podia falar de um ar transparente, de um céu aceso de crepúsculo, montanhas intermináveis de veludo verde. podia descrever um rio que espelhava o céu, num dia claro ou umas árvores recortadas contra o azul, ou o ballet dos profetas, num balcão de igreja. Podia ainda pôr em meus relatórios um frio translúcido e devassante.
Seria fácil e agradável falar da hospitalidade, do carinho com que um povo recebe seus irmãos de outro estado, do calor e do riso alegre daquela gente. Das ruas, das ladeiras íngremes, das rosas puras, das rosas sensuais, das florinhas inconsequentes. Folhagens sobre o muros seculares. Das ruínas.
Podia falar de tanta coisa...
Mas não quero. O que eu trouxe, aquilo que achei bonito, foi compartilhado palmo a palmo. Foi bem vivido. Serviu de elo entre pessoas, foi comum. Um passo de ligação, que não se pode mais desfazer. Foi vida, mas passou. Teve  seu momento, deixou pegadas; agora há outros momentos, outros dias, outros crepúsculos, outros risos. Outros laços.
Além disso, um momento maior que todos. Este, sobretudo, é preciso calar. Vai perdurar mais, é um eco, além de uma lembrança.

O planalto do cruzeiro fica a umas cinco ladeiras do centro. O cume do mundo. Cinco ladeiras escuras,
onde os casebres vão rareando, os rostos na janela vão ficando para trás. É preciso deixar os rostos e as casas, quando se quer chegar ao planalto.  Um pouco misterioso.
Quando se conquista o planalto, ele está dormindo.
Coberto por um céu próximo, tão próximo que, ao primeiro assobio, toma de repente um sentido. O caminho de estrelas se anima, vibra, cintila, vai chegando mais e mais perto.
As estrelas escolhem modos diferentes de cair no planalto. Na noite em que estávamos lá, escolheram crianças. Eram uns dez ou doze, um número sagrado. Como não houvesse nuvens, vieram da escuridão, com grande alarido. Todos - eram sujos, maltrapilhos, magros. Só um, o menorzinho, era gordo e corado, com arzinho cruel nos olhos brilhantes. Notava-se claramente sua condição de anjo do aleijadinho. Ninguém dizia absolutamente nada.

Ninguém ficaria assustado vendo crianças espalhando pequenas chamas por um planalto escuro. Ninguém ficaria assustado ao ver crianças espalhando. Mas qualquer um desmaiaria de susto. se soubessem que eram anjos semeando estrelas.
Ficamos à volta da chama central. Nossas mãos terrestres são impuras. Mentimos, e vamos morrer nossas estrelas, que morriam a nossos pés. Arrastaram-nos para a borda do planalto, Desse dia em diante, ninguém mais vai se preocupar com um anjo que treme de frio.
Quando descemos já era tarde, bem tarde. As estrelas tinham sono, os anjos murcharam, pouco a pouco. Se o dia nos apanhasse ali, não haveria salvação. O planalto só existe à noite. Um milagre da noite.

4 comentários:

AnaC disse...

Adorei, muito bom, Dade!

Beijos

Aloísio disse...

Bom demais, querida!

Beijos

Ivan disse...

Achei encantador, Dade!

Beijos do Ivan

AC disse...

Uma subida de múltiplos sentidos.
Em grande, Dade!

Beijo :)