sexta-feira, 11 de outubro de 2013

Poço sem fundo




Adelaide Amorim

                                                           Tu queres ilha: despe-te das coisas,
                                                           Jorge de Lima, Invenção de Orfeu


Olhou o homem alto de cabelos grisalhos que se aproximava, absorto, os olhos perdidos em algum lugar de tristeza. Rapidamente fixou as mãos dele, os dedos longos e fortes segurando o cigarro.
“Não me viu” – pensou, e sem querer completou o pensamento – “e se visse não ia dar a mínima.”
Por quê? Por que tinha que ser assim? Os homens só olhavam para as outras. Nesses momentos era a imagem do cansaço, a boca descaía, as rugas ao redor da boca se alongavam, os sulcos fininhos se acentuavam em volta dos olhos. Lembrou os cabelos sem brilho, tinha esquecido de novo de comprar aquele xampu que iria resolver tudo. Ou não.
O desalento tomou conta dela, e aí se viu refletida na vidraça da tinturaria antiga da Marquês de Abrantes. Num gesto reflexo levantou a cabeça e ergueu os ombros. Encolheu a barriga o mais que pôde e deu em cheio com o olhar do porteiro do prédio ao lado. O homem percebeu sua confusão e deslizou os olhos sonsamente com um meio-sorriso.
Pensamentos misturados e sem palavras a deixavam muito aflita, e acabou tropeçando numa rachadura da calçada. Por que tanta aflição? Sofria como se usasse seios postiços e um deles caísse de repente em plena rua no meio dos passantes. Nada tão grave, só tinha tentado uma postura que não era a dela, nunca ia ser. Só tinha criado um de seus momentos de ilusão, mas logo esqueceria e voltaria a ser ela mesma, curvada e sem jeito. Às vezes achava que sua vida era como uma dessas nuvenzinhas ralas que vagam pelo céu ao sabor dos ventos. Nuvens como as linhas indecisas de sua mão.
Não tinha sabido aproveitar as oportunidades. Queria tanto ajudar as pessoas, ser útil e querida, que causava desconfiança ou desconforto aos outros. Vivia contando suas gafes às colegas – por que, se isso só reforçava a imagem que gostaria de desfazer? Precisava ter mais dignidade, parar de contar tudo para todos, de se expor assim ao julgamento de pessoas que nem a conheciam direito, parar de bancar a boba. Além disso pedia licença demais, desculpas demais, preocupava-se demais com o bem-estar dos outros, mesmo dos estranhos que cruzassem seu caminho. Isso não lhe dava nenhum prazer, ao contrário, era como uma obrigação, quase uma compulsão atropelando sua vontade. Qualquer miúdo interesse dos outros era maior que os dela mesma. Sempre se exigia atitudes forçadas, excessivas, por isso vivia tão cansada.
Aí entendeu o miolo da coisa: a aflição era justamente ser esse irremediável. “Primeiro é preciso a gente mesma acreditar e depois os outros vão se convencendo”, pensou, e de novo pisou em falso. O pensamento não lhe agradava, antes a fazia sentir-se ainda mais deplorável, como se estivesse recorrendo a expedientes de mentira.
Estava sozinha agora como sempre tinha estado. Só lhe restava viver dos pequenos gestos de todo dia e esperar. Seria mesmo verdade que as melhores coisas da vida só acontecem quando se está distraído?

2 comentários:

Ivan disse...

Delícia de ler, Dade!

Beijos do Ivan

Aloísio disse...

Gosto sempre de suas histórias, Dade!

Beijo