quarta-feira, 21 de agosto de 2013

A vila

Esse arzinho úmido após a chuva sempre mexe com minha alegria número oito, a mais discreta. Uma alegria tão discreta, que às vezes fico na dúvida, sem saber se é mesmo uma alegria.
À noite, lembra outras noites, já longínquas. Lembra um chão de cimento rachado, poças dágua, um tufo de mato escapando das rachas. muros cobertos de hera.
Naquele tempo, o mundo era limitado por um pomar à esquerda, um casarão à direita e uma rua sem calçamento. Habitavam-no dez pessoas, alguns vizinhos e alguns moleques. Às vezes havia tios e primos, uma avó de colo gostoso ou uma senhora gorda, que manchava de batom os biscoitos que mamãe lhe servia e puxava de uma perna. Havia também um médico de orelhas grandes e olhos pequenos, que fazia brincadeiras muito engraçadas. Suas visitas coincidiam com um céu profundamente azul, que me dava um aperto na boca do estômago.
Havia ainda os imensos sapos encantados. Eram negros, luzidios, de olhos cintilantes, e nós os fazíamos pular uma varinha. Mas só nas áreas iluminadas, porque nos escuro eles ficam bravos e jogam um líquido capaz de cegar as pessoas.
Havia estrelas puríssimas, penduradas nos galhos das árvores. Nós as colhíamos e serviam de adereço nas brincadeiras mais sofisticadas, como princesa, rainha, cinema, aventuras. Enfeitavam véus diáfanos, de mistura com as roupas das histórias de Monteiro Lobato. Aí aconteciam lances trágicos, suspense, dramatizações suntuosas em florestas encantadas, salões de baile e haréns. Sem esquecer, é claro, as emocionantes aventuras dos castelos deslumbrantes ou assombrados. Dos navios piratas em pleno mar alto.
A vila era céu azul, com ou sem nuvens. Podia também ser um cemitério à meia noite, praia ou piscina.
Um dia, não me contive e fui rever a vila grande, clara, alegre, cheia de folhas verdes por todos os lados. Fui buscar um sol morno e dourado, que me fez feliz como poucas vezes consegui ser depois, Ouvi um coro de roda. Olhei os tufos de mato e as poças jeitosas. Ver como estavam as florestas, o salão, o castelo, o mar e o sol, o cemitério. Fui buscar pureza, colher estrelas, sacudir os galhos das árvores, espantar sapos encantados.
Mas nada disso aconteceu. Chorei sobre uma vila estreita, pequena e suja, de chão de cimento liso, sem plantas, de casas duras, pintadas de novo. As janelas me olharam com a severidade dos mortos. As portas sorriram frias, hostís. Não nascem mais estrelas nas árvores ao lado.

2 comentários:

Enylton disse...

Dade, que histórias mais bacanas você está escrevendo aqui!

Beijos e obrigado!

dade amorim disse...

Gracias, Enylton, fiquei contente!

Abração.